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Problemas causados pelo garimpo na terra Munduruku seguem até hoje

Mais de um após início da operação para expulsar garimpeiros ilegais, líderes Munduruku cobram governo federal

Reportagem
7 de julho de 2025
04:00
Valdemir Cunha / Greenpeace.

“Hoje em dia a gente está mais doente que antes”. Foi assim que a líder indígena Hidelmara Kirixi descreveu as condições de saúde nas aldeias Munduruku, apesar das recentes operações do governo federal para combater a mineração ilegal que causou contaminação generalizada por mercúrio. “As mulheres grávidas não conseguem mais ter um filho por parto normal por causa disso”.

Uma ampla gama de doenças ligadas à poluição e destruição trazidas pelo garimpo ilegal se espalhou nas terras indígenas do povo Munduruku, no Pará, como diarreia, coceira, gripe, febre, paralisia infantil e problemas cerebrais, afirma. “Crianças também nascem com essas doenças,” disse Kirixi, uma das coordenadoras da Associação de Mulheres Munduruku Wakoborũn, em entrevista em vídeo à Mongabay.

Em novembro de 2024, o governo federal lançou uma operação para expulsar garimpeiros ilegais da Terra Indígena Munduruku. As autoridades destruíram 90 acampamentos, 15 embarcações, 27 máquinas de grande porte e 224 motores de garimpo, e aplicaram multas de R$ 24,2 milhões.

No entanto, pouco foi feito para lidar com os problemas de saúde oriundos da destruição causada pela mineração de ouro, afirmam líderes indígenas e pesquisadores. “Vem a desintrusão dentro do território, mas não levam políticas públicas para o território, não levam saúde, não levam alimento, não levam nada. Simplesmente tiram [o garimpo] e deixam o povo abandonado”, Alessandra Korap, líder Munduruku e presidente da Associação Indígena Pariri, disse à Mongabay durante o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre Questões Indígenas, em Nova York.

A atenção primária à saúde para os povos indígenas no Brasil é fornecida pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), vinculada ao Ministério da Saúde. Mas essa assistência diminuiu nos últimos anos, de acordo com Toya Manchineri, coordenador-geral da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

“A assistência da SESAI já foi bem melhor. Havia equipes que, de 15 em 15 dias, iam nos territórios. Hoje tem uma demanda grande de equipes e não têm condições de ir nos territórios. O Ministério da Saúde tem que repassar mais recursos para a SESAI para que ela possa fazer um bom atendimento nos territórios e fazer infraestrutura dentro dos territórios”, disse ele à Mongabay por telefone.

Doenças ligadas à contaminação por mercúrio e decorrentes da mineração ilegal de ouro se espalharam pelas terras Munduruku

A SESAI e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) não responderam aos pedidos de resposta da Mongabay até a publicação da reportagem.

Entre janeiro e outubro de 2024, 381 casos de efeitos tóxicos de mercúrio e seus compostos foram registrados nos territórios indígenas Munduruku e Sawré Muybu, informou o Ministério da Saúde à Mongabay em novembro de 2024. No entanto, o ministério não respondeu aos pedidos da reportagem por dados atualizados, nem forneceu informações sobre quaisquer medidas de saúde direcionadas ao povo Munduruku após a operação de desintrusão.

“O que estamos ouvindo das lideranças é que ainda se mantém a invasão garimpeira. Também ouvimos relatos da fome até aumentar em algumas regiões durante a desintrusão, pois a ação do governo ainda não foi atendida com ações de serviços sociais”, Ailén Vega, pesquisadora e doutoranda em geografia na Universidade da Califórnia, Berkeley, disse à Mongabay por e-mail. Vega tem acompanhado as questões territoriais nas regiões do médio e alto Rio Tapajós desde 2016, focando nos impactos da exposição e contaminação por mercúrio para o povo Munduruku.

O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) informou à Mongabay, por e-mail, que a TI Munduruku é uma das 15 terras indígenas que receberão apoio do projeto Ywy Ipuranguete para a implementação de instrumentos de gestão territorial e ambiental. O projeto também visa promover a soberania alimentar, a geração de renda sustentável e a preservação das culturas e tradições indígenas. Ywy Ipuranguete significa “terra bonita” em tupi-guarani, em referência à fertilidade e riqueza da sociobiodiversidade dos territórios indígenas. Com financiamento total de US$ 9 milhões, o projeto é coordenado pelo MPI com apoio técnico da Funai. O Território Indígena Sai-Cinza, também lar de comunidades Munduruku e incluído na operação de repressão ao garimpo ilegal, não foi incluída no programa.

O MPI disse que não poderia fornecer informações específicas sobre problemas de saúde nas terras Munduruku por ser “responsabilidade direta” da SESAI.

Desintrusão nas TIs Munduruku x Yanomami

Os territórios Munduruku integram o grupo de sete terras indígenas da Amazônia onde o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva concentrou os esforços para a expulsão de invasores. Agentes federais realizaram incursões em quatro estados, incluindo a TI Yanomami em Roraima e a TI Arariboia no Maranhão. Na maioria dos casos, os esforços responderam a uma decisão do Supremo Tribunal Federal que exigia que as autoridades federais protegessem essas comunidades tradicionais.

A primeira operação do tipo ocorreu na TI Yanomami em janeiro de 2023, assim que Lula assumiu o cargo. Além de remover garimpeiros ilegais, o governo também declarou estado de emergência de saúde pública e fez da prestação de assistência à saúde e alimentação ao povo Yanomami uma prioridade máxima.

No período de dois anos desde a desintrusão, mais de 6.200 Yanomami foram tratados em centros de saúde indígenas dentro do território. Em Boa Vista, 15 das 19 crianças Yanomami hospitalizadas por desnutrição aguda, com idade entre 6 meses e 5 anos, ganharam peso e melhoraram para uma condição moderada.

As incursões no final de 2024 no Pará visaram os territórios Sai Cinza e Munduruku, uma área contínua quase do tamanho do estado de Alagoas, onde vivem mais de 11 mil indígenas. Localizados nos municípios de Jacareacanga e Itaituba, conhecidos como o epicentro do ouro ilegal na Amazônia, esses territórios têm uma presença histórica de garimpeiros.

As autoridades rastrearam 21 pistas de pouso clandestinas e mais de 7 mil hectares de minas ilegais que, segundo as autoridades, foram totalmente paralisadas após as incursões federais. Para evitar o retorno dos garimpeiros, o governo prometeu manter o patrulhamento e o monitoramento da região.

No entanto, ao contrário da força-tarefa na TI Yanomami, o povo Munduruku reclama que a operação em seu território não foi acompanhada de ações focadas na saúde. . Segundo as lideranças, o descaso do governo com seus pedidos de ajuda ocorre há vários anos.

Em abril, líderes Munduruku enviaram uma carta à SESAI exigindo ações para fornecer assistência à saúde ao seu povo. Assinada pela Associação de Mulheres Munduruku Wakoborũn, a Associação Indígena Pariri e o Movimento Ipereğ Ayũ Munduruku, a carta se refere a um documento anterior de abril de 2024. “As comunidades Munduruku do Alto e Médio Tapajós têm sistematicamente denunciado a realidade de violações a que estão submetidas”, disseram os líderes na carta. O documento aponta problemas específicos, como o aumento de doenças, contaminação por mercúrio ingerido nos peixes, insegurança alimentar e outras formas de destruição de seus territórios.

Eles também enviaram uma lista detalhada de ações necessárias para lidar com os problemas de saúde nos territórios Munduruku, como mais financiamento para montar estruturas apropriadas para prestar assistência na região e medidas para combater a contaminação por mercúrio, malária, insegurança alimentar e falta de água potável. “Gostaríamos de ter respostas dos andamentos destas exigências”, escreveram as lideranças.

O Coletivo Audiovisual Wakoborũn produziu o documentário Awaydip Tip Imutaxipi (A Floresta Doente), que mostra os impactos da mineração ilegal no território.

Peixes contaminados retirados de rios afetados pelo garimpo na terra Munduruku.
Líderes Munduruku enviaram uma carta ao governo federal solicitando ações para combater a contaminação por mercúrio, malária, insegurança alimentar e falta de água potável.

Contaminação por mercúrio e doenças ligadas à mineração ilegal

Uma pesquisa de 2019 encontrou vestígios de mercúrio em amostras de cabelo de todos os 200 indígenas que participaram do estudo em três aldeias Munduruku no médio Tapajós. As análises realizadas pela Fiocruz, principal centro federal de pesquisa em saúde do Brasil, revelaram que seis em cada 10 indígenas apresentavam níveis de mercúrio acima do limite seguro; peixes também estavam contaminados.

Nas áreas mais impactadas pela mineração ilegal, nove em cada 10 participantes registraram altos níveis de contaminação por mercúrio, segundo a pesquisa. De acordo com a análise, 16% das crianças menores de 5 anos que foram submetidas a testes de neurodesenvolvimento apresentaram problemas de coordenação motora e fala. A pesquisa foi realizada em resposta a uma carta enviada à Fiocruz por Alessandra Korap Munduruku em 2017.

A pesquisa foi coordenada pelo pesquisador da Fiocruz Paulo Basta, que, desde 2023, vem liderando um estudo para avaliar a contaminação por mercúrio em gestantes Munduruku e as consequências para seus bebês. “E a gente tem aí um contingente de 80 crianças já que nasceram, desde o início do acompanhamento, e as crianças já nascem com níveis de mercúrio nas amostras de cabelo”, disse Basta à Mongabay em entrevista em vídeo.

A pesquisa está em andamento e os resultados preliminares devem ser apresentados ao povo Munduruku este mês, segundo Basta. Uma pesquisa semelhante foi publicada em maio, focada na TI Yanomami.

A proliferação da malária também é uma preocupação nas terras Munduruku, já que a região é endêmica para a doença. De acordo com o governo federal, o território Munduruku responde por 60% dos casos de malária registrados no Distrito Sanitário Especial Indígena Rio Tapajós (DSEI Rio Tapajós), que atende comunidades de nove grupos indígenas no Pará e Amazonas. O DSEI Rio Tapajós registrou 4.808 casos de malária em sua área de atuação em 2023, e 3.142 de janeiro a setembro de 2024, de acordo com um comunicado publicado em dezembro de 2024. O Ministério da Saúde não forneceu dados atualizados.

“Eu costumo dizer que o mercúrio é só a pontinha do iceberg. Na base desse iceberg tem uma série de problemas, às vezes até mais graves do que a contaminação pelo mercúrio”, disse Basta.

Crateras alagadas deixadas pelo garimpo na terra Munduruku, com áreas desmatadas e solo exposto.
Associações de indígenas Munduruku tentam encontrar alternativas para o consumo de peixe, já que os garimpeiros ilegais contaminaram os rios com mercúrio

Em maio, a Fiocruz, o Ministério da Saúde e o MPI lançaram um manual técnico para o atendimento de indígenas expostos ao mercúrio no Brasil. Segundo Basta, o objetivo é fornecer orientação para o tratamento adequado, dada a falta de uma rede de serviços estabelecida para atender a essas pessoas e a falta de conhecimento entre profissionais de saúde e pacientes.

“Os profissionais de saúde não estão habituados a lidar com esse tipo de situação. Os sintomas da contaminação por mercúrio podem se confundir com outras doenças e, na verdade, os profissionais de saúde nem sequer pensam na contaminação por mercúrio como um diagnóstico diferencial”, disse Basta. “E os pacientes, por sua vez, não têm o conhecimento da difusão do mercúrio no ambiente, não têm a compreensão ampla de que afeta os peixes. E como esse processo de contaminação é lento e insidioso, os sintomas vão aparecendo discretamente e conforme o tempo vai passando eles vão se avolumando”.

O objetivo do lançamento do manual, afirma Basta, é lançar as bases para que o sistema de assistência a pacientes indígenas seja amplamente implementado, acompanhado de treinamento de equipes de saúde em áreas prioritárias. Segundo Basta, se a contaminação já afetou o sistema nervoso central e a pessoa já tem déficits motores, sensitivos e cognitivos relacionados ao mercúrio, não há cura.

Por isso, a única coisa que pode ser feita é evitar que as complicações evoluam e dar a essas pessoas uma melhor qualidade de vida, afirmou. A detecção da doença nos estágios iniciais e intervenções apropriadas são especialmente importantes para permitir que crianças contaminadas tenham “uma vida mais próxima do normal”, acrescentou.

Para Vega, a pesquisadora de Berkeley, a questão da exposição ao mercúrio não será resolvida a curto prazo, a despeito de quaisquer incursões governamentais ou do declínio na atividade de mineração. Segundo ela, o metal permanece no solo e os sintomas tendem a ser latentes. “No meu ver, isso quer dizer que qualquer ação realizada já está gravemente atrasada”.

Ela destaca também a “urgência” para que as demandas de saúde sejam atendidas com orientação e consulta permanente aos especialistas em saúde dos povos indígenas, como os pajés e os anciãos, que trabalham com a medicina tradicional e consideram os efeitos dos tratamentos sobre outros seres que fazem parte da cosmologia Munduruku e que são cruciais para garantir sua sobrevivência.

“Qualquer proposta sobre como combater a exposição ou contaminação por mercúrio precisa ser vista em relação à habilidade do povo de manter sua alimentação tradicional e fortalecer a sua soberania alimentar, dois aspectos que têm sido totalmente afetados pela invasão garimpeira”, ela disse. “O garimpo não só tem contaminado os peixes, como também diminuído a caça, impedido a abertura de roças em certas regiões, devastado árvores frutíferas, e também facilitado a proliferação de comidas industrializadas na aldeia e outras doenças, como a malária. Isso significa que a habilidade do povo Munduruku viver bem e ter boa saúde está sendo cronicamente atacada”.

Essa reportagem foi publicada originalmente pela Mongabay e republicada em parceria pela Agência Pública.

Cortesia do Coletivo Audiovisual Wakborun
Cortesia do Coletivo Audiovisual Wakborun
Cortesia do Coletivo Audiovisual Wakborun

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