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Crônica

Áudios nossos de cada dia

Em respeito à etiqueta de uso do áudio, prescrevia-se que fossem curtos, um minuto no máximo

Crônica
26 de julho de 2025
04:00

Áudios de celular era um negócio com o qual ela implicava, entre tantas outras implicâncias. A pessoa grava alguma coisa, envia para o destinatário, o material gravado fica ali esperando até que a outra pessoa ouça. Recomenda-se que ela responda também por áudio, porque o pessoal hoje alega dificuldade para ler qualquer coisa que ultrapasse duas linhas, seja por falta de espaço mental para abrigar um pensamento mais denso, seja por preguiça de processar uma informação mais complexa, ou pela falta de tempo da vida corrida, como costumam justificar.

O áudio, diziam, era vantajoso no quesito expressão emocional, pois a pessoa- receptora poderia dialogar com a respiração, as pausas, o silêncio, a consternação ou o deboche presentes nas nuances da voz, coisa que não aconteceria num texto de mensagem digitada no celular ou e-mail. Isso fazia algum sentido, mas ela se perguntava se a moçada que mandava e recebia áudios estava atenta a essa humanidade toda, talvez ela existisse entre casais, talvez, mas os casais como par de gente que vive a vida junto estavam em processo de extinção.

Ainda, em respeito à etiqueta de uso do áudio, prescrevia-se que fossem curtos, um minuto no máximo. O vivente devia evitar a todo custo entrar para o índex dos protagonistas de áudios gigantescos, pois isso podia interferir em amizades e paqueras, e você poderia ficar estigmatizada como aquela pessoa que manda áudios de três minutos, ou seja, alguém a ser evitado. Em menor grau, criam constrangimentos, também, aqueles seres que picotam as falas numa dezena de áudios de quinze segundos. Nesses casos, espera-se que o emissor atinja um grau mínimo de organização mental que lhe permita agrupar aquelas informações em três áudios de um minuto, com uma sobra confortável de trinta segundos.

Coisa incompreensível para ela, se dava quando as pessoas conversavam por áudio em tempo real: uma gravava um texto, a outra ouvia, registrava sua resposta, enviava, e as pessoas seguiam assim, por dez, quinze minutos, desferindo áudios uma contra a outra. Por que uma não discava o número da interlocutora e conversavam? Ela se perguntava e especulava respostas, mas não se satisfazia, até que ela mesma venceu a barreira do som e enviou áudios pela manhã, a uma amiga que falava demais. Às vezes ela queria perguntar algo simples e rápido, mas a amiga queria falar sobre outros amigos, sobre querelas do século passado, sobre as demandas do futuro ancestral pelo bem-viver. E ela só queria resolver uma dúvida, receber uma informação, uma confirmação.

O áudio descortinou um mundo novo de possibilidades de fuga dos dramas alheios e de dribles afetivos de grande eficácia. Depois da primeira experiência, vieram outras, muito satisfatórias. Ela passou a contabilizar a economia de tempo por não oferecer escuta a subjetividades que insistiam em saltar da respiração, dos intervalos, dos silêncios encerrados numa conversa; também por não precisar mais ouvir histórias do cotidiano, próprias de gente que se relaciona com gente e com as coisas do mundo. Ela se adaptou à felicidade e à paz da falta de conversa e passou a militar em favor do áudio como estratégia comunicacional rápida, anódina, insípida e inodora.

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