Por muito tempo, o sonho de ter energia elétrica na aldeia povoou as mentes e os corações dos povos da Terra Indígena Xingu, em Querência, município no nordeste do Mato Grosso. A chegada do Programa Luz para Todos, em plena pandemia, contraditoriamente, trouxe apreensão em vez de realização. Um relatório da Rede Energia e Comunidades revela falhas na implementação do programa. A rede é um grupo formado por organizações da sociedade civil que atuam pela democratização do acesso à energia limpa e sustentável, especialmente na Amazônia.
Segundo o documento, a Energisa (MT), empresa responsável pelo fornecimento de energia, não consultou corretamente os indígenas antes de implementar o programa, o que levou a falhas, como a voltagem da rede. Os indígenas usam equipamentos adaptados para 220 volts, mas a rede instalada foi de 110. “A empresa instalou a rede de 110 volts e deu problema. Nossos equipamentos não estavam funcionando, então pedimos para parar”, conta Wintxi Poquincidé, liderança do povo Kisêdjê, uma das 16 etnias abrigadas no Parque Xingu. Ele vive na Aldeia Khikatxi, formada por 87 famílias.
A Energisa é parte de um dos maiores grupos de transmissão de energia do país, com sede em Minas Gerais – a empresa tem um valor de mais de R$ 23 bilhões. Inicialmente, ela contratou uma terceirizada para realizar o diagnóstico e a implantação dos sistemas solares. Algum tempo depois, segundo Wintxi, a empresa substituiu os inversores para 220 volts, o que não durou muito tempo. Em seguida, a Energisa contratou outra empresa para assumir o abastecimento elétrico no Xingu.
“Chegou a segunda empresa. A gente disse que não queria 110 volts, mas eles disseram: ‘a gente vai instalar e depois ver’. Instalaram e deu problema”, conclui.
Por que isso importa?
- O programa Luz Para Todos é a principal iniciativa do Governo Federal para universalizar o acesso à energia elétrica no país e tem mais de 20 anos de implantação;
- A falta de consulta prévia a povos indígenas na implantação do programa, caso seja comprovada, contraria convenções internacionais das quais o Brasil faz parte, e pode levar a processos em tribunais.
Wintxi explica que a solução encontrada foi colocar transformadores para adequar à rede. “Aquilo esquentou muito e quase pegou fogo”, queixa-se a liderança.
O pesquisador Vinicius Silva, do Instituto Energia e Meio Ambiente (Iema), que faz parte do grupo Rede Energia e Comunidades, explica que os transformadores desperdiçam energia. “O transformador é um sanguessuga! Desperdiça até 5% da energia usada e ainda aquece, causando risco de incêndio, já que as casas são feitas de palha e madeira”, frisa o pesquisador.

O relatório aponta que a falta de consulta prévia aos indígenas fere a regra da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que determina que os povos indígenas devem ser informados e consultados sobre ações que impactem em suas vidas em seus territórios. O Brasil é signatário da convenção, isto é, suas regras valem e o Estado brasileiro é obrigado a cumprir o que ela determina, sob risco de ser condenado em tribunais internacionais.
A Agência Pública procurou a Energisa, que respondeu em nota “que vem desenvolvendo ações operacionais e de relacionamento com a comunidade indígena no Xingu, durante o período de implantação e adaptação do sistema do Projeto Luz Para Todos”. Nas atividades mais recentes, ocorridas nos meses de agosto e setembro, a empresa afirma que “foram visitadas dez aldeias na Terra Indígena Xingu com o objetivo de levar e colher informações sobre o uso e a implantação do sistema Individual de Geração de Energia Elétrica com Fonte Intermitente (SIGFI) nas aldeias.”

A Energisa disse ainda que “foram feitas conversas individuais com cada indígena, entendendo a demanda e orientando sobre eficiência energética e segurança no uso da eletricidade.” E, por fim, afirmou que “profissionais da área de atendimento fizeram uma força-tarefa para atender cada um dos indígenas, explicando cada detalhe da fatura e que também foram distribuídos manuais com dicas de eficiência da energia elétrica em sete idiomas diferentes dos povos originários do Xingu.”
O Ministério de Minas e Energia, também contactado pela reportagem, informou “que recebeu formalmente a Carta dos Povos Indígenas Xinguanos, com denúncias, demandas e proposições sobre a implementação do Programa Luz para Todos no território.” Ainda segundo o órgão, foram feitos encaminhamentos para a Aneel, Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional S.A (ENBPar) e à Energisa MT, “apontando revisão de cláusulas contratuais do Luz para Todos para que sejam atendidas as demandas específicas apresentadas pelas comunidades.”
Em outro trecho da nota, o órgão informa que “está marcada uma reunião adicional para apresentação das ações que serão empreendidas nos territórios do Xingu, com participação da ANEEL, Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Energisa‑MT, lideranças xinguanas e organizações da sociedade civil, de forma a atender às solicitações expressas na Carta dos Povos Indígenas Xinguanos.” Perguntamos à assessoria do MME sobre a data, local e horário da reunião, mas não obtivemos resposta até o momento.

Problemas no sistema de energia prejudicam mulheres e o processamento da mandioca
A baixa tensão da rede elétrica no Xingu não permite que as famílias usem vários equipamentos simultaneamente, um problema que afeta sobretudo as mulheres. Isso porque o plantio, a colheita e o beneficiamento da mandioca são atividades realizadas pelas mulheres, que usam raladores elétricos para adiantar o trabalho. A mandioca é um dos itens mais importantes da base alimentar dos Kisêdjê.
Kuyayutxi Suya, vizinha de Wintxi, possui um sistema de placas solares adquirido pela mãe, mas a lida contínua difícil. “Quando liga a máquina, tem que desligar a geladeira. O ralador elétrico só pode ligar um para toda a aldeia, que tem 87 famílias, muito difícil”, explica. Cálculos do Iema, com base em acompanhamento da rotina de campo nas aldeias dão conta de que “as mulheres trabalham até quatro horas a mais do que os homens devido à falta de acesso pleno à energia elétrica”, informa Vinicíus Silva.
O estudo “Mulheres, igualdade e acesso à energia: Lições emergentes para a eletrificação rural de última milha no Brasil”, publicado na revista Pesquisa Energética e Ciências Sociais, corrobora que a pobreza energética afeta as mulheres de maneira específica. “Para beneficiar ambos os gêneros, é necessária uma maior capacidade energética, capaz de alimentar eletrodomésticos e eletrificar serviços comunitários onde as mulheres desempenham um papel fundamental”, conclui o levantamento.

Poucos moradores do Parque Xingu falam e leem português. A barreira da língua, ainda segundo o diagnóstico, levou dezenas de indígenas do Xingu a terem dificuldade de compreensão das “siglas, termos técnicos e informações pouco instrutivas da fatura de energia”. Com isso, várias famílias estão nos cadastros de restrição de crédito por terem deixado de pagar a fatura.
“Para alguns, haveria isenção de pagamento por alguns anos. Outras achavam que tinha que pagar logo. As pessoas não foram instruídas quanto a forma correta de pagar a fatura, tanto que estão no Serasa”, resume o pesquisador.
Os indígenas também se queixam de estarem pagando tarifas diferenciadas uns dos outros. Hoje, na aldeia, vigora a Tarifa Social de Energia Elétrica na faixa de 80 kw/mês, com 100% de isenção para indígenas, quilombolas e famílias com renda per capita de até meio salário mínimo. “O problema é que nem todos os cadastros foram realizados em nome da pessoa que está vinculada ao CadÚnico, com isso, algumas famílias estão pagando pelo consumo, mesmo tendo direito ao desconto”, explica o pesquisador.
Wintxi, por exemplo, conta que o cadastro do sistema foi feito em seu nome e não do membro da família que possui o CadÚnico. “É isso que a gente também está reclamando, porque o valor tá variado. Se for R$ 55 por mês, é R$ 55 para todo mundo”, queixa-se o indígena.