É um dos lugares mais lindos e preservados do Rio de Janeiro: um pequeno paraíso verde, ao lado do Jardim Botânico e do Parque Nacional da Tijuca, em uma das áreas mais valorizadas da cidade, que inclui os bairros do Jardim Botânico e da Gávea. O pedaço em questão se chama comunidade do Horto Florestal. Tem 2 mil moradores, casas pequenas – algumas delas tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) – e muitas árvores, bambus gigantes, cachoeiras, trilhas, animais silvestres. Uma vizinhança que faz esquecer que estamos no meio de uma grande metrópole.
“Aqui sempre foi um lugar maravilhoso”, comenta a senhora Olívia da Silva Alves, que chegou ao local em 1945, quando o pai dela, funcionário do Parque Nacional de Itatiaia, foi trazido pelo Serviço Florestal Brasileiro para trabalhar no Jardim Botânico. A casa é simples, de um andar só, onde mora com a filha e o neto. Ao lado, outro conjunto de casas, antigas e brancas, forma a ruazinha. “Antigamente era muito bom morar aqui, mas também era difícil porque era só mata. Não tinha nem estrada nem eletricidade, mas era muito tranquilo. E ninguém vinha mexer com a gente”, acrescenta. Há 30 anos, a situação mudou. Desde os anos 1990, a administração do Jardim Botânico – o histórico jardim criado por dom João VI no século 19 – reivindica as terras da comunidade para expandir suas atividades.
Afinal, no último dia 3 de novembro, o Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico recebeu por doação da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) “o domínio pleno” das terras tanto do Jardim Botânico como do Horto Florestal, estimadas em 142 hectares. A SPU obedece assim à última decisão judicial do caso, julgado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em 2012 a pedido da Associação dos Moradores e Amigos do Jardim Botânico (AMAJB).
Em seu julgamento, os ministros do TCU não consideraram o argumento central da comunidade – sua longa história nessas terras – para pedir a sua permanência. Ao contrário: todos os ministros consideraram os habitantes como “invasores”, sem precisar a data da tal invasão. “Hoje, o terreno do Jardim Botânico está ocupado por mais de 2 mil pessoas”, disse ao início da sua fala o ministro Walton Alencar Rodrigues, que exigiu “retirar essas pessoas” dali.
O atual diretor do Jardim Botânico, Sérgio Besserman, também segue essa linha: “Nós não tivemos expansão”, diz ele sobre a decisão do TCU. “Aquele terreno da comunidade já era considerado do Jardim Botânico até pela própria comunidade”.
A historiadora Laura Olivieri contesta essa visão. “Não pode falar que os moradores são invasores do parque, porque não são. Isso aqui não era parque”, diz. No seio do Horto, ela encontrou as ruínas de um dos primeiros engenhos de açúcar do Rio, fundado em 1578, mais de 200 anos antes do próprio Jardim Botânico.
“A primeira onda de ocupação foi escrava e portuguesa. Onde havia engenho de açúcar, havia mão de obra escrava, provavelmente indígena também, mas muito pouco se sabe. Depois, no século 18, o Horto sediava uma fazenda de café, também com mão de obra escrava. A fundação do Parque Jardim Botânico trouxe a terceira onda populacional da região, composta por trabalhadores escravos daquela grande obra”, comenta a historiadora.
O Horto Florestal foi chamado oficialmente com esse nome pela primeira vez em 1875, como um órgão ligado à Sociedade das Florestas do Brasil e subordinado ao Ministério do Planejamento. Durante todo o século 20, o Horto foi o local essencial da engenharia florestal brasileira, onde se produziam espécies florestais e se faziam experimentos com elas. Um mapa de 1929 apresenta o seu perímetro com 83,3 hectares de terra e um limite bem demarcado com os 54 hectares pertencentes ao Jardim Botânico. Ali dentro, havia 25 hectares de cultivos que incluíam 180 plantas medicinais. “O Estado abandonou esse setor nos anos 1980, as empresas começaram a financiar a pesquisa e os investimentos públicos pararam”, explica Clayton Ferreira Lino, presidente do Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, da Unesco. Ele completa: “O Horto Florestal do Rio era especial, por ser da capital, com mais recursos, tinha mais floresta nativa e plantas medicinais. Todos os hortos florestais do Brasil tinham e têm moradores e moradias dentro. Eles ainda têm viveiros e pessoas capacitadas”.
Junto com o Jardim Botânico e o Parque Nacional da Tijuca, o Horto do Rio foi inscrito em 1991 como Reserva da Biosfera no Programa sobre o Homem e a Biosfera da Unesco. “A gente imaginou essa reserva como um conjunto das três entidades, porque cada uma tinha características e componentes particulares. O Horto Florestal tem a historicidade, o desenvolvimento da silvicultura e um papel fundamental na formação dos pesquisadores. O Jardim Botânico tem mata atlântica e espécies exóticas, e o Parque da Tijuca tem floresta nativa e replantada”, explica Ferreira Lino.
Segundo ele, a Unesco nunca considerou a comunidade como um problema. Pelo contrário: “A reserva já pensa no homem dentro da natureza, e por isso se chama ‘Homem e Biosfera’. A comunidade do Horto vive ali há muito tempo, deve-se considerar os moradores. Sem dúvida no Horto tem remanescentes da escravidão, ali se encontram laços dominantes de descendentes. Eles não são invasores, nem de má-fé”, conclui o especialista.
Conflito por terra no meio da floresta carioca
Até 2006, o governo federal também não considerava a comunidade como “invasora”. Naquele ano, a SPU encarregou o Laboratório de Habitação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/UFRJ) de levar a cabo um projeto de regularização fundiária de interesse social, que deveria considerar as necessidades da comunidade, mas também considerar uma demanda antiga do Jardim Botânico, de expandir suas terras – pleito que vem desde a década de 1990.
Naqueles anos, o Jardim se tornou instituto de pesquisa e ganhou a posse do Solar da Imperatriz, a casa-grande da antiga fazenda de café, para nele fundar a Escola Nacional de Botânica. Pouco a pouco, implantou vários viveiros ao redor do solar e também dentro de um clube que havia sido construído pela comunidade na década de 1950, onde os moradores jogavam futebol.
Foram os primeiros lances nessa disputa por terra no meio da floresta.
Desde então, explica o advogado da comunidade, Rafael da Mota Mendonça, “o JB mexe na vida da comunidade, botando lixeiras grandes na frente das casas dos moradores, impede que eles consertem suas casas ou usem carros”. Por outro lado, o instituto passou a pedir ao governo federal a ampliação de suas terras para novas pesquisas.
Os argumentos foram considerados válidos pela SPU em 2006. “O projeto que a SPU nos confiou era de regularizar tanto a comunidade quanto o Jardim Botânico, definir as fronteiras entre um e outro, permitir a expansão do Jardim ao lado de um conjunto de núcleos urbanos, sendo alguns realocados por estar em zona de risco, como a beira do rio”, explica o urbanista e professor Ubiratan de Souza, que concebeu o plano.
O projeto propôs uma expansão do Jardim Botânico para 80% dos 142 hectares, e, ao mesmo tempo, a regularização da comunidade em 8% das terras. A área da comunidade do Horto, que é de 19,3 hectares hoje, seria reduzida para 11,1 hectares, e a vizinhança seria adensada. E o Jardim Botânico, que em 2006 tinha 54 hectares, teria 113 hectares.
O resto da área está ocupada por outras instalações de empresas públicas e privadas, como a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a empresa de eletricidade Light.
Porém, esse projeto não agradou à Associação dos Moradores e Amigos do Jardim Botânico, que resolveu levar o caso ao TCU. O tribunal, por sua vez, determinou em 2012 “a imediata suspensão do Programa de Regularização Fundiária”.
Visões opostas
Nessa disputa, os dois lados têm uma visão oposta sobre o direito que deve prevalecer. A comunidade se vale do direito à moradia, contemplado pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto das Cidades de 2011.
“Toda a legislação aprovada nos anos 1990 levou em conta a necessidade de trazer assentamentos informais para formalidade. Na Constituição, tem um capítulo de políticas urbanas, um instrumento chamado de concessão de uso especial para fim de moradia, para ocupantes particulares de áreas públicas”, assegura Rafael Mendonça, advogado da comunidade.
Já o outro lado reafirma que não existe direito a moradia em terras da União. Há, sim, uma série de direitos ambientais que devem prevalecer.
O diretor do Jardim Botânico, Sérgio Besserman afirma que o trabalho ambiental é prioritário, e o Horto tem necessidade de expandi-lo. “Somos responsáveis, por exemplo, pelas espécies ameaçadas de extinção. Nós precisamos de árvores, de mudas, de sementes, senão a maior restauração florestal do mundo será feita sem biodiversidade.”
Foi essa também a interpretação do TCU. Segundo os ministros, o Jardim Botânico é um Patrimônio da Humanidade. “As invasões ocorrem a cada dia no país como se fosse algo normal. Não é possível que o Brasil continue passando para o mundo essa impressão que aqui não tem lei, de que as leis não são obedecidas e de que qualquer um pode se instalar em qualquer lugar, que o poder público vai trazer de presente uma casa com todas as instalações necessárias à sua boa sobrevivência”, argumentou o ministro Aroldo Cedraz.
Também para Sérgio Besserman é inimaginável que a comunidade permaneça no local: “O Jardim Botânico de Paris tem pessoas morando dentro? O King Garden de Londres tem pessoas morando? Não é compatível com o funcionamento de uma instituição de pesquisa e um centro de visitação”.
Segundo ele, a expansão não pode acontecer mantendo ali a comunidade, como propôs o estudo da UFRJ: “Nessa comunidade, como em todas as comunidades do Rio, há crime organizado, narcotráfico”, garante. O mesmo argumento foi usado pela predecessora de Besserman, Samyra Crespo, em entrevista à Pública: “Tem narcotráfico e milícia”, disse ela, explicando que a presença dos moradores traria insegurança.
No entanto, a acusação não foi constatada pela reportagem. Funcionários da Serpro e da Light garantem que nunca viram nenhuma ilegalidade e que se sentem seguros ali. “Eu tenho 20 anos trabalhando no Serpro e nunca escutei falar de violência, nunca vi ninguém com uma arma aqui. E sei o que estou dizendo porque eu morro na Rocinha”, comenta uma senhora. Em seguida, ela nos leva a falar com os guardas do estacionamento da empresa. “Aqui as pessoas deixam os carros abertos. Pode caminhar tranquila, aqui não tem traficantes nem polícia”, comentam os guardas.
“O discurso do narcotráfico na comunidade é um discurso que cai muito bem no senso comum, que todo mundo compra. Dizem: ‘Vou tirar porque tem criminosos’. É uma prática comum dos administradores públicos de criminalizar os movimentos sociais”, considera o advogado Rafael Mendonça.
Os dois diretores também se preocupam com uma possível expansão da comunidade. Sérgio Besserman diz que os moradores “têm interesses imobiliários” e pretendem vender suas casas. “Que garantia haveria que não crescerá a comunidade?”, pergunta.
O urbanista Ubiratan de Souza rebate: “A gente fez o projeto [de regularização] impossibilitando toda expansão. Nas pouquíssimas casas que têm um terreno livre, colocamos três famílias em lugar de uma. O resto da comunidade são núcleos urbanos contínuos, não tem esses espaços livres. Então, eu posso garantir que a comunidade, com o projeto, não vai crescer”.
Ameaça de expulsão
Existem pelo menos 215 ações de reintegração de posse para a comunidade do Horto que já foram julgadas e podem ser executadas a qualquer momento. Por conta de uma delas, no último dia 7 de novembro, a família do Marcelo de Souza, de 41 anos, perdeu a sua casa.
Funcionários do Jardim Botânico, os avós de Marcelo foram viver no Horto na década dos 1950.
Embora a família more ali há 70 anos, Marcelo recebeu o aviso de reintegração de posse de supetão, em fevereiro de 2016, quando pintava o quarto de seu filho. Seis meses depois, em 7 de novembro, chegaram policias de quatro batalhões de polícia para tomar a sua casa; a comunidade reagiu armando barricadas. “Eu tinha o coração na mão”, diz ele. Alguém mandou também um caminhão de mudança. Até agora – quatro meses depois –, foi essa a única ajuda que a família recebeu.
Marcelo se trancou com a esposa e os filhos dentro de casa. Chegaram apoiadores e advogados. “A polícia ia jogar gás lacrimogêneo lá dentro. Parei tudo, aceitei e saímos. No mesmo dia, a minha casa foi destruída.” Ficaram os escombros. Com a esposa, ele se hospedou durante dois meses com parentes no bairro do Rio Comprido, a oito quilômetros dali. O filho ficou na casa de amigos para concluir o ano escolar.
Desde o dia 15 de janeiro, a família aluga um pequeno apartamento por R$ 1.700 – o Rio de Janeiro tem o metro quadrado mais caro do Brasil. “No Rio Comprido, tinha muitos tiros, não estamos acostumados a isso”, diz ele. Indagado se não havia tráfico no Horto, ele dá risada. “Não tem nada disso. Vai agora procurar um baseado, vai ver se alguém vai te vender”, desafia.
Marcelo é microempresário – tem uma empresa de bufê com a esposa – e motorista do Uber. Agora, ele espera pelo menos alguma indenização pela casa que foi construída pelos seus avós há mais de meio século.
Desde essa última reintegração de posse, a comunidade montou a própria “guarita”: moradores fazem vigília para evitar a entrada da polícia. Há alguns pneus alinhados e troncos de árvores atravessados na rua.
A visão é estranha no meio de uma floresta. Emerson de Souza, presidente da Associação dos Moradores do Horto, diz que são medidas “necessárias porque temos que resistir, mesmo se a gente está aberto ao diálogo”.
Diálogo é o que falta hoje, explica Clayton Lino, da Unesco: “A gente ofereceu nossos serviços de mediação nesse conflito, porque temos muita experiência em lidar com comunidades dentro de parques nacionais”, explica. “No caso do Horto do Rio, tínhamos bom diálogo até a decisão do TCU. Nossa última reunião com a então diretora Samyra Crespo e a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira foi muito rígida. A postura era ‘nós vamos tirar todo mundo, e ponto’. Para ter diálogo, tem que mudar essa postura e reconhecer a verdadeira história dos moradores”, considera.
Além da falta de diálogo com o governo federal, a comunidade critica a atual administração do Jardim Botânico. “A maioria dos trabalhadores do parque estão terceirizados, enquanto tem no Horto pessoas que conhecem muito de botânica e ecologia”, diz Emerson.
Eles também reclamam do que chamam de práticas comerciais dentro do Jardim, como a criação de espaços musicais, restaurantes, estacionamentos. Emília Souza, tia de Emerson, critica a “presença de empresas que não têm nada a ver com pesquisa e conservação”: “Há dez anos, duas casas de ex-funcionários foram recuperadas pelo Jardim Botânico. Uma se tornou a sede da Associação Amigos do Jardim Botânico e a outra se tornou o vestuário do Espaço Tom Jobim”, afirma Emília – ela se refere ao espaço de concertos do parque. “Nada a ver com conservação e plantios. Por isso, duvidamos dos reais projetos do Jardim Botânico, que nunca apresentou nenhum projeto para dizer o que vão fazer das terras da comunidade.”
No Diário Oficial, o valor das terras que serão administradas pelo instituto foram estimadas em R$ 10,5 bilhões.
Aqui trabalharam e moraram escravos
Documentos oficiais mostram detalhes sobre os escravos que construíram o Jardim Botânico e o fato de que também residiam ali. A lei de 24 de outubro de 1832, que orçou a receita e despesa do Império, destinou recursos para o Jardim Botânico, incluindo a despesa com seus escravos: “60 escravos de ambos os sexos que recebiam pagamentos diários, viviam em construções no terreno em frente à residência do diretor do Jardim e tinham roças”.
Em 1844, um relatório do Jardim Botânico (confira abaixo) anotava o número de escravos empregados: 33 escravos maiores de 7 anos, e 32 menores de 7 anos, alguns recém-nascidos; 5 escravos libertos e 26 falecidos. Em 1853, o então diretor do Jardim, Cândido Baptista de Oliveira, defendeu em um relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa do Império “a necessidade de se fornecer, além do sustento e vestimenta, uma pequena remuneração pecuniária aos 67 escravos mais 7 livres que lá prestavam serviços”.
O mesmo documento assegura que “acha-se quase concluída a senzala que tem de acomodar a maior parte dos escravos, que ainda habitam a velha senzala, a qual deve ser demolida por não ser susceptível de reparo algum”. Em 1854, 80 escravos trabalhavam para o Jardim Botânico, que era na época uma zona de produção agrícola importante: se colhiam cerca de 340 kg de folhas de chá e se cultivava palha da bombonaça para confecção dos chamados chapéus Panamá. Em 1869, a associação entre o Jardim Botânico e o Imperial Instituto significou a extinção da mão de obra escrava, que foi substituída por trabalhadores livres.
Para Rodrigo Nascimento, ex-representante da Fundação Palmares no Rio de Janeiro, ligada ao governo Federal, o Horto é “uma comunidade que tem uma preservação da cultura negra muito interessante e forte”. Ele acredita que a Fundação deveria começar o reconhecimento oficial deste legado imediatamente. “A sociedade carioca já reconhece a importância do Horto florestal como uma comunidade com um papel histórico na defensa da resistência negra”, diz.