Desde o começo nós quisemos investigar o impacto da violência sobre as crianças da comunidade da Maré através do olhar delas mesmas. Ali ainda não tem UPP; as três facções do crime organizado (Terceiro Comando, Comando Vermelho, Amigos dos Amigos, e também milícia) dominam o território. Quando a polícia entra, sempre acontece um tiroteio com os traficantes. A violência impacta diretamente as crianças, que, no mínimo, ficam sem aula: a maioria fecha as portas até a situação voltar “ao normal”.
Para quem é de fora em todos os sentidos – como nós dois, embora ambos moremos no Rio – gravar na Maré não é fácil.
Violência invisível, marcas internas
Durante os protestos de junho, a educação foi uma das maiores demandas da população. Pensando nisso, ao sabermos do confronto do dia 25 de junho que resultou na morte de 13 moradores da Maré e de um sargento do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) resolvemos investigar como as crianças desta comunidade percebem e sentem tamanha violência.
São tantas violências: a violência urbana, do crime, cuja manifestação mais forte são os tiroteios; a violência doméstica, que acontece dentro de casa e é lembrada por crianças em situação de rua, que contam ter fugido de casa apesar de ter família na Maré; e a violência do preconceito, que é mas “invisível”, mas acaba marcando as crianças e adolescentes.
O Haron, por exemplo, um rapaz de 17 anos, vizinho da família de Claudio Rodrigues, um motorista baleado durante a chacina de 25 de junho, nos contou que já foi confundido com “pivetes”, e foi até parar na delegacia da Lapa. A mãe dele, desesperada, ligou sem parar para o celular dele até ele voltar para casa. “Eu tenho cara de favelado”, disse o adolescente, sempre com o boné na cabeça. Essa violência pouco aparece na mídia brasileira. Mas é essa violência que faz com que a pessoa se auto-imponha limites geográficos e acabe não indo em alguns lugares da cidade para “não ter problemas”.
Aqui é o meu refúgio
Jailson de Souza, coordenador do “Observatório das Favelas” – entrevistado para o filme – acredita que o “preconceito e a violência não pertencem só a quem mora na Maré”. Para o sociólogo, não dá para reduzir as marcas da violência apenas às crianças da comunidade, porque assim pode-se “condenar duas vezes as crianças e prejudicá-las mais ainda”.
Mostrar o olhar das crianças e deixá-las falar por si mesmas foi a forma narrativa que escolhemos para não acrescentar o preconceito embutido na nossa voz.
Ao entrevistar jovens adultos que moraram na Maré, que cresceram e estudaram ali, entendemos que mesmo a constante violência não impede que as pessoas se sintam em casa. Um exemplo é a Samara Mello, de 22 anos, que cresceu na Maré e agora mora no bairro do Maracanã, de classe média, a uns vinte quilômetros dali. Ela sempre volta para casa da avó. “Aqui é um refúgio, quando está tudo de cabeça para baixo, aqui, neste calor, eu me sinto segura. Aqui sou eu”, diz ela. Apesar dos tiros e da lembrança de, ainda criança, ao ser pega de surpresa ter que se esconder atrás de muros ou voltar para casa correndo, a Samara nunca deixaria de visitar a sua Maré.
Parece paradoxal, mas um lugar de alta violência pode ser um “refugio”. A psicóloga Bianca, que pediu para não ser identificada, trabalhou durante muito tempo com crianças de comunidades, e conta que não existe uma maneira determinada da criança encarar situações de violência: “tem muitas pessoas que conseguem construir uma vida com valores fortes, valorizam a comunidade, a solidariedade; nem toda criança que cresceu aqui, apesar dos traumas, vai ter uma vida ruim”.
Falando com o lápis
Nós escolhemos ficar bastante tempo na escola do projeto Uerê, um laboratório da metodologia da educadora Yvonne Bezerra de Mello, que há trinta anos lida com crianças vitimas de violência e traumas. Ficamos, durante três semanas, visitando a turma da professora Eliane Lima, que tem jovens de 9 a 14 anos com níveis de aprendizagem desiguais.
De um dia para outro, a situação ficou muito tensa na comunidade; a dona Yvonne pediu que as crianças não falassem mais de violência conosco, pois ser entrevistados dentro da escola por jornalistas estrangeiros poderia “dar problemas”. As crianças, então, fizeram desenhos sobre o que gostam e o que desgostam na Maré. Mesmo assim, é claro que tivemos que respeitar as imagens de cada criança e tomar cuidados na hora delas falarem sobre uma situação de violência. Não houve tiroteios enquanto estávamos dentro da escola. Mas uma foto em que as crianças aparecem todas deitadas no chão, se protegendo de balas trocadas lá fora, mostra bem a realidade que elas vivem.
Nós optamos por observar e entender as crianças, ficando alguns dias sem gravar, pois numa sala de aula a câmera muda muito a dinâmica do grupo. Essa escolha de “imersão” permitiu que as crianças se sentissem à vontade para confiar em nós. Foi assim que conseguimos relatos simples, mas fortes, porque contam como a realidade delas é entremeada pelo terror.
Depois de vários contatos em Outubro e Novembro, a policia militar do Rio de Janeiro não quis dar entrevistas.