“[A denúncia feita pelo presidente da JBS, dizendo que o presidente Michel Temer orientou a compra do silêncio de Eduardo Cunha] é motivo de impeachment, de impedimento, de afastamento do Presidente da República.” – Paulo Teixeira (PT-SP), deputado federal, na sessão legislativa que ocorria em 17 de maio quando foi divulgada a notícia do jornal O Globo.
Caiu como uma bomba em Brasília a revelação de que o presidente da República, Michel Temer (PMDB), pediu ao dono da JBS, Joesley Batista, para que continuasse a pagar pelo silêncio do ex-deputado federal Eduardo Cunha. No encontro, Temer também ouviu o relato da compra de um procurador da República, feito pelo empresário, e apenas respondeu: “Ótimo, ótimo”. Na Câmara dos Deputados, parlamentares votavam a Medida Provisória 755/2016, que muda a transferência de recursos do Fundo Penitenciário Nacional para os estados e o Distrito Federal.
Em meio às discussões, o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) foi o primeiro a alertar para a publicação das reportagens e teve o microfone cortado. Depois, foi a vez do deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ) pedir a palavra, pela liderança do partido, e citar de novo as denúncias. Ao final do seu discurso, deputados da oposição já gritavam “Fora, Temer! Fora, Temer! Fora, Temer!”. Logo depois, como resposta, o deputado Laerte Bessa (PR-DF) bradou, solitário: “Cadeia para o Lula!”.
Outros parlamentares, como Paulo Teixeira (PT-SP), também conseguiram falar sobre as gravações, em meio ao tumulto crescente. Assim que a votação foi concluída, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), encerrou a sessão. Isso ocorreu às 19h54, um horário incomum para a quarta-feira. Em seu discurso, Teixeira afirmou que a gravidade da denúncia poderia motivar o impeachment do presidente da República. Até a quinta-feira (18), oito solicitações de afastamento do presidente haviam sido entregues na Câmara com base na gravação.
O Truco – projeto de checagem de dados da Agência Pública – procurou especialistas do meio jurídico para saber se há base legal para esse pedidos, amparados na gravação de Temer com Joesley. Como há diferentes interpretações sobre o tema, todas elas igualmente válidas, a afirmação de Teixeira foi considerada discutível.
Em entrevista anterior à liberação dos áudios, Floriano Peixoto de Azevedo, professor de direito constitucional na Faculdade de Direito da USP, afirmou que “os fatos revelados pela notícia do jornal implicariam participação do presidente em um delito de obstrução da Justiça”. O professor avaliava que a suposta conduta poderia ser tipificada como crime comum ou como crime de responsabilidade.
Azevedo citou a Lei do Impeachment (Lei Federal nº 1.079/50), que define o que é crime de responsabilidade. Para ele, a conduta do presidente se enquadraria no artigo 9º, que determina como “crime de responsabilidade contra a probidade na administração proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” e também no artigo 6º, sobre “crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes Legislativo e Judiciário e dos poderes constitucionais dos estados” e que inclui “opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças”.
No entanto, após a divulgação dos áudios, o professor mudou de opinião. “Depois dos áudios, eu avalio que não tem crime algum”, disse Azevedo. Para ele, a conduta de Temer é suspeita, mas os áudios não mostram que ele endossa as atividades de Joesley. “Aquilo lá não dá nem ponto negativo no boletim. O máximo que eu poderia dizer é que ele deveria selecionar melhor quem ele recebe em casa”, afirma.
A denúncia de crime de responsabilidade, protocolada por Alessandro Molon (Rede-RJ), na noite do dia 17, cita justamente os dois artigos da Lei do Impeachment mencionados por Azevedo. A denúncia de Molon destaca ainda o artigo 85 da Constituição Federal, que determina que “são crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra a probidade na administração”.
O professor de direito constitucional da PUC-SP André Ramos Tavares acredita que ainda não há informações para indicar crime de responsabilidade. “Faltam fatos supostamente criminosos. Eu já defendi isso no momento do impeachment da presidente Dilma e reafirmo agora: para se tratar de crime de responsabilidade precisa haver um atentado claro à Constituição”, explica.
Tavares avalia que atos pontuais nos quais o presidente possa estar se valendo de sua posição privilegiada não constituem um ato de máxima gravidade contra a Constituição. “Ainda que isso seja crime, não é exatamente um atentado à Constituição ou contra os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo. Parece, a princípio, um ato isolado e muito individual de construir um caminho para se safar”, avalia o professor. “A Constituição, antes de todas as hipóteses, diz que tem de ser um atentado, não apenas um ato danoso.”
O professor da PUC analisou os áudios da conversa entre Joesley e Temer e, assim como Azevedo, da USP, acredita que não haja base para crime de responsabilidade. “A gente está falando de um ato isolado no qual o presidente está numa situação de receptor de dados. Não há nenhuma evidência de que ele esteja controlando ou pilotando algo”, afirma, categórico.
Para Tavares não há sequer base para acusar o presidente de prevaricação, um crime funcional praticado por funcionário público contra a administração pública que consiste, entre outras coisas, em deixar de praticar ato de ofício. “Para que haja essa situação é preciso que o funcionário público entenda que aqueles dados que ele está recebendo são reais. O presidente pode ter avaliado que as alegações eram tão inverossímeis que não deveriam ser denunciadas”, defende Tavares. “Não há obrigação nenhuma de informar, até porque se ele informar um fato que supostamente teria ocorrido e não ocorreu ele poderia ser acusado de falsa denunciação.”
Omissão criminosa?
Carlos Roberto Siqueira Castro, professor de direito constitucional da UERJ e sócio do escritório Siqueira Castro, explica que há duas correntes de interpretação da Lei do Impeachment. A mais popular avalia que o crime de responsabilidade tem natureza política, ou seja, deve constituir um atentado à Constituição. Outra, minoritária, prega que é um crime de natureza jurídica e portanto precisa apenas se enquadrar em uma atividade descrita na lei. “Hoje, o STF tem entendido que são as duas coisas, ou seja, um crime de natureza híbrida”, explica.
O também professor da PUC Marcelo Figueiredo discorda da necessidade de “atentado à Constituição” mencionada por Tavares. Para ele, se a denúncia for confirmada e se enquadrar em qualquer um dos casos mencionados na Lei do Impeachment, já é possível considerar que há indício de crime de responsabilidade.
Ele destaca ainda que há a possibilidade de a conduta de Michel Temer, se confirmada, não ser considerada crime de responsabilidade, mas crime comum. Nesse caso, o processo não se daria por meio de impeachment, mas por meio de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). “Se o crime for cometido durante o mandato, fica afastada a imunidade temporária do artigo 86, parágrafo 4º, da Constituição. Ele pode então ser julgado pelo STF, caso fiquem confirmadas as denúncias, e fica suspenso das funções”, explica Figueiredo.
Após ouvir os áudios, o professor da PUC avalia que ficou mais difícil afirmar, de forma categórica, se houve crime de responsabilidade. Ainda assim, ele acredita que é uma das interpretações jurídicas possíveis. “Nas gravações, Temer não se compromete de forma ostensiva. Na minha avaliação a conversa é extremamente imprópria para um presidente num palácio do governo. Mas, ainda assim, eu não arriscaria dizer que é necessariamente o bastante para crime de responsabilidade.”
Figueiredo considera que a questão da suposta mesada paga à Cunha por Joesley com consentimento de Temer não incrimina definitivamente o presidente. “Não ficou claro se ele apoiou ou não, se sabia ou não sabia dos repasses. O que há nos áudios é muito pouco para mostrar conivência com o pagamento de Eduardo Cunha”, afirma.
Para o professor, é mais grave a omissão de Temer diante dos delitos que Joesley expõe na conversa. “Podemos pensar em prevaricação, já que ele tomou conhecimento de uma conduta ilícita e não informou as autoridades competentes. Se isso for comprovado, configuraria dois tipos de crime: tanto crime de responsabilidade, por ausência de decoro, quanto crime de prevaricação, que é crime comum”. Castro, da UERJ, concorda. “O que me parece mais grave é o empresário falar que colocou um procurador infiltrado e estava segurando dois juízes para o presidente da República. Isso é muito grave e promíscuo”, considera.
Figueiredo diz ainda que a justificativa de Temer, que afirma não ter acreditado nas alegações de Joesley, “não diminui a gravidade de sua omissão”. Não é só ele: Siqueira Castro acusa a defesa de tentar “sustentar a incredulidade” com essa explicação. “Qual seria a postura correta de um presidente? Seria alertar na hora o interlocutor e comunicar o Ministério Público. O poder público não pode apostar na incredulidade”, critica Castro.
Julgamento político
Figueiredo explica ainda que a interpretação do caso não será estritamente jurídica já que ela deve ser feita pelo Congresso, caso seja aceito algum dos 11 pedidos de impeachment contra Temer já protocolados na casa, em relação a este e outros fatos. “O critério de julgamento é mais frouxo porque o Congresso, ainda que tenha bases jurídicas, é um órgão político. Essa filigrana jurídica, de verificar se Temer atentou ou não contra a Constituição, não é importante para o Congresso”.
Para Conrado Hübner Mendes, professor de direito do estado na USP, “certamente há base para a acusação de crime de responsabilidade”. Hübner alega que, ainda que não fique comprovada a relação de Temer com a suposta mesada de Cunha, “apenas o silêncio de Temer com Joesley já é suficiente para justificar um crime de responsabilidade”.
Castro, professor da UERJ, também considera que há indícios de crime de responsabilidade. “Eu entendo que há base para admissibilidade de um processo de impeachment. Mas, se no mérito do julgamento final haverá ou não condenação, depende das outras provas que serão coletadas na investigação”, afirma.
Para Castro, além da omissão do presidente diante da confissão de delitos, chama atenção a menção ao deputado Rodrigo Santos da Rocha Loures (PMDB-PR). “O presidente indicou para o Joesley um deputado, para que tratasse com ele de ‘qualquer coisa’. Houve uma consequência dessa conversa. Esse dinheiro que chegou ao deputado, por exemplo”, discute.
Castro, Figueiredo e Hübner fazem interpretação semelhante da Lei do Impeachment: para todos eles, o artigo que mais se encaixa na situação é o que discorre sobre a dignidade, a honra e o decoro do cargo. “Esse na verdade é um artigo curinga, ele serve para quase tudo. Com a divulgação desses áudios, fica claro que o comportamento de Temer não é compatível com a dignidade do cargo, questão abordada nesse artigo”, diz Hübner. “Seria diferente se ele praticasse um furto, roubasse um pão na padaria. Daí é só um crime comum. Nesse caso do Temer, pode ser um crime comum, julgado pelo STF, mas também pode ser um crime de responsabilidade, pela situação de quebra de decoro.” (Colaborou Maurício Moraes)