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No mesmo ano em que celebrou seu 70º aniversário, a mineradora também recebeu um indesejado prêmio, proposto por movimentos sociais da Amazônia

Reportagem
25 de novembro de 2012
22:49
Este artigo tem mais de 12 ano

Duas visões de mundo se confrontam no 16º andar do edifício localizado no cruzamento da avenida Graça Aranha com a rua Santa Luzia, no centro do Rio de Janeiro. Desta vez, longe das câmaras de TV que meses antes registraram, na mesma esquina, o congestionamento provocado pela concentração de mais de duas mil pessoas que vieram da Cúpula dos Povos – o encontro dos movimentos sociais paralelo à Rio+20 –, trazendo faixas pedindo o veto da presidente Dilma Rousseff ao novo Código Florestal e a paralisação das obras da hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, obra emblemática do Plano de Aceleração de Crescimento (PAC) do governo federal que se tornou causa mundial do ativismo ambientalista e de apoio aos indígenas.

As fotografias estavam proibidas na reunião de 31 de outubro entre o comitê da Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale e Murilo Ferreira, o presidente da segunda maior mineradora do mundo, acompanhado de seu staff: a diretora de Sustentabilidade e Energia, Vânia Somavilla; Isis Pagy, diretora do Departamento de Relacionamento com as Comunidades; mais três ou quatro assessores que não se apresentaram aos visitantes.

A campanha do Public Eye Awards

Foi um desses assistentes que pôs fim ao suspense que se instalou no ambiente quando a advogada Andressa Caldas, a última a falar pelo comitê, estendeu o Public Eye Awards 2012 para o anfitrião, Murilo Ferreira, que o deixou pairando no ar. O funcionário apanhou o troféu das mãos da representante da ONG Justiça Global e colocou discretamente embaixo da mesa o símbolo conferido à “pior empresa do mundo” desde 2000 promovido anualmente pelas ONGs Greenpeace e Declaração de Berna, com o objetivo de expor violações ambientais e sociais das corporações internacionais.

Os 25 mil dos 88 mil votos totais obtidos na rede mundial foram suficientes para ofuscar o logotipo verde-amarelo da Vale S/A, empresa de capital aberto com acionistas brasileiros e estrangeiros que receberam US$ 9 bilhões em dividendos no ano passado, provenientes de suas atividades em 37 países. E empanar o brilho do aniversário de 70 anos da empresa que se tornou símbolo de progresso para os brasileiros desde que o presidente Getúlio Vargas criou a Companhia Vale do Rio Doce S/A, nacionalizando a empresa de origem inglesa que extraía minério de ferro em Itabira, Minas Gerais.

Murilo Ferreira, pós-graduado em finanças pela Fundação Getúlio Vargas e especializado em administração e marketing, entrou na companhia em 1998, menos de um ano depois da privatização da Vale – também sob protestos – pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Até hoje, 69 ações contestam a transação na Justiça.

Por isso, a reação do presidente ao prêmio surpreendeu o padre Dario Bosso, que fazia parte do comitê. “Ele fez uma fala agressiva, nacionalista, quase beirando a xenofobia. Disse que não considerava prêmios internacionais – ‘nem os que valorizam, nem os que criticam’ – concedidos por organizações estrangeiras que ‘querem bloquear o desenvolvimento do Brasil’, e que o prêmio tinha o claro intento de denegrir a imagem da Vale e alimentar a concorrência estrangeira, depois saiu da sala sem despedir de ninguém”, conta, com leve sotaque italiano, o missionário comboniano, que há anos trabalha na defesa dos direitos humanos no Maranhão.

Além do padre e de seu companheiro na Rede Justiça nos Trilhos, o advogado Danilo Chammas, compunham o comitê o diretor da Sociedade Paraense de Defesa de Direitos Humanos, Marco Polo Santana Leão, o sindicalista Paulo Fier, do Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias Petroquímicas do Estado do Paraná (Sindiquímica-PR), outros representantes do movimentos populares (Fórum de Carajás, central sindical Conlutas, Movimento pelas Serras e Águas de Minas) e das ONGs internacionais Pax Christi e Justiça Global.

Padre Dario Bosso

O título de “pior empresa do mundo” contrasta, e muito, com a imagem que a mineradora tem buscado projetar internacionalmente, nos últimos anos. “A história da Vale é a história do Brasil verdadeiro, do Brasil vitorioso”, enuncia no vídeo institucional “Nossa História” a voz de um dos 150 funcionários de várias partes do mundo convocados a narrar, em suas diversas línguas, a história da companhia brasileira que conquistou o mundo, entremeada por cenas de futebol, concurso de miss e desfile de escola de samba patrocinados pela Vale. O filme, de 26 minutos, foi feito para a empresa pela badalada produtora Conspiração Filmes e conquistou recentemente o prêmio Golfinho de Ouro no 3º Cannes Corporate Media & TV Awards.

Além de prêmios por sua comunicação institucional, a Vale tem colecionado recordes de produção e faturamento. Desde 1974, é a maior empresa exportadora de minério de ferro do mundo. Em 2004 se tornou a líder das exportações brasileiras. Em 2006, tornou-se a segunda maior mineradora do mundo. Em 2010, alcançou a 19ª posição no ranking das maiores corporações mundiais. Como entender, então, essa impopularidade diante dos movimentos sociais da região onde atua, a ponto de arrebatar o título de “pior empresa do mundo”?

Durante a reunião com os movimentos sociais, o presidente da Vale fez um chiste: ele disse que poderia ter impedido esse resultado simplesmente pedindo para uma parte das dezenas de milhares de funcionários da Vale votarem na Tepco, a corporação responsável pela Usina Nuclear de Fukushima, onde aconteceu, em 2011, o desastre nuclear mais grave das últimas décadas em todo o mundo. A empresa japonesa ficou em segundo lugar na votação do Public Eye por uma diferença de 500 votos. Tarde demais, o prêmio já foi entregue, ainda que Ferreira tenha se negado a recebê-lo. Agora, falta entender o que significa.

É certo que a votação para o prêmio teve muito a ver com a participação da empresa em Belo Monte, hidrelétrica em construção no rio Xingu, em Altamira (PA), que tem ensejado ampla oposição de grupos ambientalistas e de apoio aos povos indígenas em todo o mundo. Apesar de ressaltar o fato de não ter controle sobre o projeto, a Vale tem 9% de participação no Consórcio Norte Energia, capitaneado pela Eletrobrás, e mantém grande interesse na obra, já que provém de hidrelétricas 96% da energia que a empresa consome no Brasil, o correspondente a 5,6% do consumo residencial de todo o país.

A área onde atuam os grupos que indicaram a empresa ao prêmio, contudo, fica a mais de 500 quilômetros do lugar onde está sendo construída a usina, e a disputa dos movimentos sociais com a mineradora tem, muitas vezes, raízes pouco conhecidas fora da região. Ao percorrer, entre o sudeste do Pará e o oeste do Maranhão, 2,4 mil quilômetros de estradas esburacadas entre julho e agosto deste ano, a equipe de reportagem da Pública encontrou um território em conflito em torno da Vale S/A. Foi desse chão que nasceu a indicação ao indesejado prêmio, feita pela Rede Justiça nos Trilhos, sediada em Açailândia (MA), em nome dos Atingidos pela Vale.

Estrada de ferro Carajás no Maranhão

A articulação que se opõe à Vale, como se vê, tem tudo a ver com a Estrada de Ferro Carajás (EFC). Foi em 1984 que o último presidente da ditadura militar, João Figueiredo, inaugurou a ferrovia, ao presenciar a partida da primeira carga de minério de ferro no maior trem do mundo – hoje com 330 vagões em média – pela linha que segue das minas de Carajás, no Pará, até o Porto de Ponta Madeira, em Itaqui (MA), em 892 quilômetros de trilhos.

Ali, um volume de minério de ferro de alto teor, com valor médio de US$ 380 mil por dia – valores de 2011, é embarcado nos navios para abastecer os mercados internacionais. “O minério de ferro de Carajás construiu mais da metade de Xangai”, celebra mais uma voz anônima, de um brasileiro, no filme premiado. O valor embarcado diariamente já está devidamente dispensado de uma série de impostos, graças à Lei Kandir, vigente desde 1996.

A China é o maior mercado do produto mais lucrativo da Vale e o que traz maior saldo para a balança comercial brasileira, outro ponto de convergência de interesses entre o governo e a empresa. O projeto mais importante da companhia – com previsão de US$ 19,4 bilhões de investimento até 2016 – é a expansão da mineração na Província Mineral de Carajás, que além de ricas jazidas de níquel, manganês, cobre tem as maiores reservas do mundo minério de ferro de alto teor.

Curiosamente, o filme premiado da Vale traz apenas uma imagem de relance da simbólica ferrovia, hoje uma concessão pública explorada e administrada pela empresa. O Relatório de Sustentabilidade da Vale registra 23 conflitos pelo uso da terra no mundo em 2011. No Brasil, foram 14 os considerados significativos por envolver “ocupação ou bloqueio de acesso a unidade da Vale, com impacto nas operações e/ou projetos e repercussão junto às comunidades e imprensa local”.

Dez aconteceram na região de Carajás, bloqueando, pontes, estradas, e a ferrovia, para protestar contra os poluentes que vêm da mineração, o atraso em promessas de indenização e investimento em projetos sociais, mas também a falta de crédito agrícola, educação, saúde e de moradia para os despejados de terrenos públicos.

Entre os episódios descritos pela companhia estão: em Canaã dos Carajás, a PA-160, ficou sem acesso por uma noite e uma manhã, impedindo o acesso à mina de cobre do Sossego. Em Ourilândia do Norte, na Mineração Onça Puma, lavradores bloquearam todos os acessos à mina de níquel reivindicando indenização e remanejamento, além da conclusão de projetos sociais oferecidos em contrapartida pela companhia. No episódio mais grave, manifestantes puseram fogo na ferrovia em protesto pelo assassinato de um casal de líderes comunitários que denunciou a extração ilegal de carvão teve repercussão mundial – a sobrinha do casal e seu marido, ameaçados de morte, continuam no assentamento agroextrativista em Nova Ipixuna, onde ocorreu o crime.

Moradora da área rural de Canaã

Uma mineradora atrapalha muita gente

No encontro entre a direção da Vale e os movimentos sociais, o assunto mais importante era a expansão da produção em Carajás, “prioridade absoluta da Vale”, como reafirmou Murilo Ferreira, sem responder às perguntas do padre Dario sobre a responsabilidade da empresa em relação ao minério que vende para fabricantes de ferro-gusa do Maranhão e Pará, acusadas de uma série de irregularidades, ou a possibilidade de rever a duplicação da Estrada de Ferro Carajás.

Em agosto, o BNDES aprovou uma parcela de R$ 3,9 bilhões para a primeira etapa do projeto de expansão em Carajás – 40 dias depois de a empresa obter a licença prévia do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para a implantação da primeira mina de ferro no lado sul da Floresta Nacional de Carajás, que exigiu oito anos de negociações com os órgãos ambientais e inovações tecnológicas para reduzir o impacto ambiental, apresentadas pela Vale em uma bonita maquete no filme premiado.

Se passar pelas próximas etapas de licenciamento, o projeto, chamado de S11D, fará a produção anual de Carajás passar de 110 milhões para 230 milhões de toneladas de minério de ferro em quatro anos. As obras de logística vão consumir US$ 11,4 bilhões para ampliar a capacidade de transporte de minério de ferro pelo corredor de exportação que vai da mina ao porto.

De Canaã dos Carajás a São Luís do Maranhão, a aceleração da ocupação do território é anunciada pelo apito do trem. As obras vão reduzir ainda mais o intervalo entre as composições que fazem de 9 a 12 viagens por dia (dados da Vale) atravessando 94 localidades habitadas por índios, quilombolas, ribeirinhos, lavradores assentados por projetos de colonização e de reforma agrária quase falidos, ou que lutam por terra nos acampamentos dos movimentos de sem-terra.

A Rede Justiça dos Trilhos atuou nos bastidores da ação civil pública movida pelo Conselho Indigenista Missionário, Centro da Cultura Negra do Maranhão e Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, que resultou na paralisação das obras de duplicação da ferrovia no trecho maranhense por uma decisão liminar da Justiça Federal do Maranhão no final de julho.

A tutela antecipada que adveio da liminar justificava-se como medida de cautela diante de obras dispensadas de estudos de impacto ambiental (EIA-Rima) no processo de licenciamento do Ibama, em um território com “28 áreas de conservação ambiental”, terras indígenas e comunidades quilombolas, protegidas pela Convenção n°169 da OIT, que prevê a consulta prévia e o direito de veto de qualquer obra que possa impactar seu território.

Desde 1982, a partir de uma exigência do Banco Mundial ao financiar as obras do projeto Grande Carajás, os índios passaram a celebrar acordos de indenização e assistência com a Vale, frequentemente cobrada pelo Ministério Público Federal por não cumpri-los. Em 2006, a empresa, com o apoio da FidDH (Federação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos) denunciou o governo brasileiro à Organização dos Estados Amerricanos (OEA) por destinar recursos aos índios através da União, sendo incapaz de estabelecer políticas públicas para eles.

As comunidades de remanescentes de quilombos enfrentam situação mais complicada porque só tiveram sua existência reconhecida na Constituição de 1988, o que as obriga a passar por um longo processo para provar a origem da terra onde vivem, que culmina no Relatório Técnico de Identificação (RTDI), feito pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). No ano passado, a companhia pediu a impugnação administrativa dos relatórios de identificação de duas comunidades, Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo, ambas no município de Itapecuru. As duas ficam no trecho de 60 quilômetros já licenciado pelo Ibama para as obras de duplicação.

O episódio foi superado por um acordo obtido pelo Ministério Público Federal do Maranhão – em março deste ano. Também foram estipuladas condições preliminares para retomar a obra: recuperação de rios e igarapés, construção de viadutos e melhoria das passagens de nível para assegurar a travessia de moradores e veículos, medição de poluição do ar e sonora, e disponibilização de R$ 700 mil, no prazo de 60 dias, para a construção de uma escola de ensino médio e um projeto de agricultura familiar.

Segundo a Fundação Palmares, há 86 comunidades remanescentes de quilombos na área afetada pela ferrovia, além de comunidades “não-tradicionais” estabelecidas nas mesmas terras da União que abrigam as operações da mineradora. “A Vale reitera o respeito à diversidade cultural, aos processos participativos e as normas vigentes e tem a Convenção n°169 da OIT como diretriz de atuação”, afirma a empresa, por meio de sua assessoria, a respeito desses embates.

Em 20 de novembro passado, a Vale obteve a licença de instalação para as obras de duplicação.

A ação civil promovida pelas entidades de direitos humanos articuladas pela Justiça dos Trilhos, segue adiante. A liminar que paralisava as obras foi revogada por recurso da Vale ao TRF, em Brasília, no mês de setembro.

Pixilinga, o peão trecheiro que chegou a Canaã

Pixilinga, e a mulher Petronílha, na Vila Planalto em Canaã

Não é difícil encontrar histórias de pessoas simples cujas vidas foram afetadas pela mineradora. O maranhense José Ribamar da Silva Costa, o Pixilinga, 56 anos, é o que se pode chamar de expert em projetos de desenvolvimento da Amazônia. Antes de se instalar em Canaã dos Carajás, município sede da nova mina de minério de ferro da Vale, ganhava a vida como “peão trecheiro, com a buroca nas costas fichando em firma pra aqui pra acolá”, como ele diz. Trabalhou na construção do Porto de Itaqui – o cais da Vale em São Luís –, na barragem de Tucuruí e na Estrada de Ferro Carajás, que o trouxe à região em 1984, quando Canaã e Paruapebas ainda faziam parte do município de Marabá.

“Cheguei em um março chuvoso, e não estavam fichando ninguém. Aí eles me disseram: ‘Rapaz, estamos dando lote de dez alqueires (50 hectares) pra quem quer trabalho’. Eu fiquei com medo. Será que os índios não vão tirar a gente daqui? E os garimpeiros?”, lembra. No sorteio lhe coube um lote de um desistente, no alto da serra. “Era uma aberturazinha na mata e um barraquinho de pau a pique e palha. O caboclo caiu fora porque uma onça correndo atrás de uma anta atravessou o barraco com um monte de menininho lá dentro, a família fez as malas e sumiu”, conta rindo.

Entre 1982 e 1985, o governo federal, por meio do Getat (Grupo Executivo das Terras do Araguaia e Tocantins), assentou 1551 famílias em projetos de colonização em torno da área de mineração com o objetivo formar um cinturão de produção de alimentos e reduzir os conflitos de terra na região Bico do Papagaio – palco da Guerrilha do Araguaia durante a década de 1970. “Nos colocaram aqui como vigias, que isso não era habitado de gente não. Quando cheguei aqui, era só mata, só floresta. ‘Cabra que pegar a terra e não desmatar o lote vai ter que sair’, eles diziam”, lembra, espantando a nuvem de mosquitos que invade a varanda de sua casa em Vila Planalto, a 12 km da sede do município de Canaã dos Carajás.

Quando a produção de milho e mandioca aumentou, os vizinhos formaram uma associação, a Aproduz (Associação dos Produtores da Serra Dourada), e decidiram comprar um caminhão. Ao buscar crédito no banco, Pixilinga descobriu que eles não tinham o título de propriedade da terra colonizada. “Como assentados, a gente devia ter tomado o crédito no Procera, mas quem explicou? Os mais sabidos vieram com a oferta de um financiamento de banco, chamaram a gente de posseiro e cobraram aqueles juros”.

Foi nesse período que começou o que chama de “a perseguição da Vale”. “Eles entravam nos lotes, abrindo picão na terra de todo mundo sem explicar nada. Mas em 1997, 1998 começaram a comprar terra e botar cancela e cadeado nas nossas estradas, que eram do Incra”, indigna-se.

A vila da Serra Dourada foi extinta no processo da implantação da mina que inaugurou a produção de cobre da Vale em Carajás em 2004. Das 67 famílias que se comprometeram com o empréstimo, 29 venderam os lotes para a Vale, e os que ficaram não tinham como pagar as parcelas dos que foram embora. A dívida cresceu. “Hoje não existe mais Serra Dourada nem Aproduz, mas o nome da gente está no Serasa, no SPC por uma dívida de R$ 800 mil”, lamenta.

A Pública questionou o Incra sobre a falta de títulos de propriedade, a comercialização dos lotes dos colonos e a assistência prestada a eles. A resposta foi sucinta: “O Incra, hoje, não tem domínio sobre as terras tituladas à época do Getat, visto que os colonos já possuem título de propriedade”. Ou seja, o “mico” das 38 famílias de Serra Dourada não existe para o governo brasileiro. “Nem para a Vale, que causou o problema e ofereceu a assistência jurídica da companhia pra individualizar a dívida, o que não adianta nada”, atalha Pixilinga. Hoje presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Canaã dos Carajás, ele tira o sustento de uma vendinha instalada na frente do terreno e da roça nos fundos da casa, erguidas no lote trocado com um fazendeiro, que expandia sua área para a região abandonada pelos colonizados do Incra.

Entre 2001 e 2010, a população urbana do município de Canaã dos Carajás quintuplicou, passando de 3.924 para 20.738 habitantes, enquanto a população rural caiu 14%, passando a 5.989 habitantes, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) analisados na dissertação de mestrado da pesquisadora Dalva Maria Vasconcelos dos Santos, da Universidade da Amazônia.

A guerra nos números

O maior argumento da Vale quando vai abrir um projeto são os empregos– contraditoriamente, ou não, os números mais difíceis de obter da companhia. Para começar, os números quase sempre agregam “empregados próprios e terceiros permanentes”; quando há essa separação, não são divididos por setores ou localizações geográficas.

Segundo a assessoria de imprensa da Vale, em julho de 2012, “a empresa emprega 107 mil pessoas no Brasil, entre empregados próprios e permanentes, essa cifra corresponde a 76% dos empregados da empresa no mundo”. Segundo dados do Relatório de Sustentabilidade da empresa, é possível, ainda, concluir que a Vale tem 60 mil empregados com “ contrato por tempo indeterminado”.

Quando a Pública quis saber quantos empregados da Vale trabalham nas minas de ferro, cobre, níquel e outros metais, a resposta foi: “Nos estados do Pará e Maranhão trabalham 31 mil empregados (18,5 mil próprios e 12,5 mil terceiros permanentes), além de 22,6 mil terceiros em projetos”.

Não se sabe, dessa conta, quantos trabalham em cada setor, nem quantos foram contratados nas comunidades onde a empresa atua, o que atrapalha definitivamente a compreensão da questão que atormenta os empregados das minas da Vale, da África a Carajás:

“Os números por Sistema não estão disponíveis. Em todo o Brasil, o percentual de contratação local da Vale foi de 68% em 2011. O número de membros da alta gerência provenientes da comunidade local era de 36% ao final do ano passado”.
Obviamente se a “comunidade local” é o Rio de Janeiro, sede da companhia, ou os rincões do Maranhão, os percentuais fornecidos seriam radicalmente diferentes.

Assim como são diferentes as realidades entre os países, como mostra outro item do relatório, o das ações judiciais. Ali figuram cinco ações trabalhistas no Brasil, entre elas duas em que o Ministério Público do Trabalho questiona condições de segurança em Minas Gerais e no Complexo de Tubarão. No ano passado, 11 trabalhadores da Vale morreram em acidentes de trabalho, sendo oito no Brasil.

Outra ação se refere ao pagamento de horas in itinere (gastas no deslocamento ao trabalho) aos empregados das minas de Carajás. De acordo com a Justiça de Trabalho de Parauapebas, em 2010, a empresa foi condenada a empresa a pagar R$ 100 milhões por danos morais coletivos e R$ 200 milhões por “dumping social”. Segundo o sindicato Metabase, que congrega os trabalhadores da Vale: “Os trabalhadores transportados nos ônibus fretados pela empresa recebiam por seis horas de trabalho e ficavam o dobro do tempo à disposição da companhia; um acordo está em curso”.

O mesmo relatório relata 11 ações judiciais e autuações “relevantes” no campo ambiental em 2011, sendo nove na Justiça brasileira, em quatro estados.

No total de 2011, a empresa registra a existência de 293 processos envolvendo a companhia, “136 judiciais e 157 administrativos relevantes”, mais de 90% no Brasil. As ações contra privatização (69) são seguidas por 52 ações judiciais e 145 processos administrativos que se referem à cobrança de royalties, a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), com alíquota média de 2% sobre o faturamento da empresa.

No ano passado, foram arrecadados menos de R$ 1 bilhão em royalties, em todo o país. O número aparece em estudo feito pelo professor Rodrigo Salles Santos, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Ele baseou-se em cálculos do presidente da Comissão Especial de Informática e Estatística do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Guilherme Zagallo. A Vale não divulga a informação, e o departamento de arrecadação do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) alega ser sigilosa.

A Cubatão da Amazônia

O mapa da Estrada de Ferro de Carajás é o centro das atenções no 4º Encontro Regional dos Atingidos pela Mineração, realizado no final das férias de julho na Escola Lourenço Galetti, em Açailândia (MA), uma cidade de 110 mil habitantes onde os esgotos correm nas ruas, e os moradores têm que escolher entre viver sob a fumaça das guseiras na BR-222 ou no entroncamento da Belém-Brasília. Ali também está um dos pátios mais importantes da Vale, que, além de fornecer minério de ferro às guseiras e retirar o ferro-gusa, entrega combustível e recolhe grãos.

 

Marcelo Carneiro da UFMA

Os cerca de 80 representantes das 20 comunidades que conseguiram chegar ao encontro – o transporte mais barato é o trem de passageiros que passa na mesma EFC, em dias alternados – são recebidos por um trio de música sertaneja e vão apresentando as localidades em que vivem, de Canaã dos Carajás a São Luís do Maranhão.

O desenho esquemático da linha férrea se transforma em um “mapa falado” dos povoados, acompanhados dos problemas que vivenciam. A discussão vai dos atropelamentos de pessoas e animais na ferrovia, ao desmatamento e assoreamento dos igarapés; da desestruturação das escolas rurais e hospitais à falta de emprego para os jovens que não veem perspectiva nos assentamentos sem crédito agrícola e não são preparados para disputar os melhores (e poucos) empregos produzidos pela mineração, tornando-se os peões das empreiteiras terceirizadas.

“O complexo-mina-ferrovia-porto se insere na rede global da produção do aço, que produz os carros, as geladeiras, os computadores”, explica o doutor Marcelo Carneiro, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), acadêmico convidado pelos organizadores do encontro. “Nós queremos que o valor produzido por essa cadeia seja incorporado pelos territórios que cedem seus recursos naturais a um modelo de exportação que se relaciona de maneira predatória com a economia regional, desestruturando as atividades econômicas locais sem criar alternativas dignas nem se preocupar com o legado”, ensina à plateia atenta que vai aumentando com a chegada dos retardatários.

Os efeitos dessa “disputa desigual pelo valor”, como diz o professor, ganham mais uma dimensão nas falas dos defensores dos direitos humanos, conselheiros tutelares, membros do Ministério Público Federal presentes à reunião: trabalho forçado na cadeia de carvão em Buriticupu (MA), exploração sexual de crianças em Açailândia, violência extremada em Marabá.

O promotor Leonardo Tupinambá, de Açailândia, é o porta-voz de um problema surpreendente para os que não conhecem o magnetismo que a Vale exerce nos rincões do Maranhão: os embarques clandestinos de crianças e adolescentes nos imensos trens da companhia, escondidos embaixo do minério de ferro carregado pelos vagões. No ano passado, o promotor de Santa Luiza (MA) moveu uma ação civil contra a Vale por descumprir “reiteradamente” o Estatuto da Criança e do Adolescente “quanto ao controle de embarque de menores, tanto em trens de transporte de passageiros quanto em trens cargueiros, de forma clandestina, aproveitando-se do fato da empresa não adotar qualquer medida de vigilância”.

Nem sempre os meninos conseguem chegar ao destino almejado, Parauapebas – que concentra o dinheiro da mineração por sediar o complexo da Vale. O município fica com 65% dos royalties advindos da mineração, o Estado do Pará com 23% e a União com 12%. “O que é produzido em Carajás tem dois caminhos: o porto de exportação e as guseiras de Marabá e Açailândia”, atalha o professor Carneiro.

“Em Minas Gerais, parte importante desse minério é beneficiada em cadeias produtivas adensadas; o estado do Pará exporta quase tudo in natura. O projeto máximo de beneficiamento que o complexo minerador pensou para essa região é o ferro-gusa que oferece empregos de baixa qualidade e cria um cenário de destruição à sua volta”, explica.

Associação dos Moradores de Pequiá

Uma das comunidades homenageadas no encontro é Pequiá, que se tornou símbolo mundial da destruição da Amazônia depois de um relatório do Greenpeace, que sobrevoou a região, documentando a destruição. Ali vivem cerca de 300 famílias entre as guseiras que produzem ferro-gusa com carvão vegetal e minério de ferro, vomitando poluentes no ar, nos rios, no solo. O produto é embarcado nos trens da Vale, que também fornece a matéria-prima. A Pública visitou as casinhas cobertas de poeira, cujo dano para a saúde dos moradores, a água e o solo foi constatado por um laudo da Secretaria de Meio Ambiente realizado por ordem de Promotoria de Justiça de Açailândia, que instaurou um inquérito para investigar as denúncias dos moradores e resultou em um Termo de Ajustamento de Conduta assinado em 2011. O acordo obriga o sindicato patronal das empresas, o Sifema, a transferir os moradores do local para um terreno desapropriado pela prefeitura.

Na passeata que encerrou o encontro naquele 27 de julho, a alegria estava nos rostos da juventude do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), nas palavras de ordem puxadas pela representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e nas vozes embargadas de emoção dos que há anos usam o próprio corpo para deter o trem. Eles haviam acabado de receber a notícia da paralisação das obras pela Justiça do Maranhão. Dessa vez tiveram a gentil escolta da Polícia Militar para caminhar pelas ruas e dar as mãos formando um círculo em torno da rotatória rodoviária, sem se incomodar com os caminhões pesados, bufando de impaciência contra os que bloqueiam o progresso.

William, de Pequiá de Baixo

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