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O olhar do fotógrafo Anderson Barbosa, que acompanha os sem-teto desde 2001 e morou durante seis anos em uma ocupação no centro da cidade

Ensaio
10 de maio de 2018
12:40
Este artigo tem mais de 5 ano

No ano de 2001 tive meu primeiro contato com uma ocupação de prédio no centro de São Paulo. Eu iniciava ali meu percurso numa grande escola de vida e de profissão, e ainda não fazia a menor ideia. Primeiro, passei a frequentar as reuniões de grupo de base do movimento de moradia, que ocorriam no bairro da Luz, em um salão de uma igreja. Dias depois, aconteceria a ocupação de um prédio do governo do estado de São Paulo na rua Ana Cintra, esquina com a avenida São João, ali no centrão.

Ocupantes num imóvel na avenida Ipiranga, em São Paulo, pouco antes de uma ação de reintegração de posse

De início, nem me passou pela cabeça aproveitar longas horas na ocupação só para fotografar. Pensei antes em uma moradia para mim. Como sou do interior do estado e os amigos com quem eu dividia aluguel foram debandando, cada um pro seu canto, percebi que poderia me incluir nesse processo. Então, falei com uma das coordenadoras: “O que eu poderia fazer para conseguir um espaço ali pra morar?”. Ela me respondeu: “Você está ajudando na segurança, né? Então fica tranquilo”. No dia seguinte, ela conseguiu um espaço pra mim na ocupação. “Mas é no 10º andar e não tem elevador!”, avisou.

Dali em diante, começava algo que eu só entenderia cerca de um ano depois. Um fotógrafo, com pretensões jornalísticas, morando em uma ocupação em uma das maiores e mais ricas capitais do mundo. Era uma experiência única.

A imensa maioria das famílias que viviam ali era formada por trabalhadores autônomos. Muitos trabalhavam como camelôs na rua 25 de Março. Mas também tinha quem trabalhasse fixo, com carteira assinada, aposentados, empregadas domésticas. A imensa maioria era gente que jamais acreditara na possibilidade, mesmo que distante, de conseguir uma casa própria.

Algumas das 96 famílias que viviam nesse prédio conseguiram seus apartamentos em prédios da companhia estadual de desenvolvimento urbano, a CDHU, na região da Mooca ou no Pari. Mas a maioria segue ainda sem sua casa, vivendo em ocupações como a da rua Mauá e da Avenida Prestes Maia, na Luz – essa foi reocupada após um acordo, não cumprido integralmente pela prefeitura, no atendimento às famílias.

Cotidiano na ocupação Prestes Maia

Desde então, passei a acompanhar todas as ocupações centrais e a conhecer pessoas que atuavam em ocupações na periferia da cidade. Testemunhei e fotografei todas as tentativas de reocupar a Prestes Maia nos últimos dez anos, a desocupação violentíssima do grande terreno ocupado no Pinheirinho, São José dos Campos, em janeiro de 2012, e certa vez, em uma favela na zona norte, tive que negociar com o tráfico para poder documentar as famílias ameaçadas de reintegração de posse.

Tropa de choque da PM na reintegração da ocupação Olga Benário, zona sul de São Paulo, em 2009, onde viviam cerca de 900 famílias

O que pude perceber durante todos esses anos acompanhando os movimentos de luta por moradia foi que ali estão famílias que já não acreditam nos moldes convencionais de luta pela casa própria, inteiramente à mercê do mercado imobiliário. Os movimentos acabam sendo uma esperança para essas famílias, pois as ensinam a ir exatamente aonde devem ir, ao Estado, exigir o que lhes é de direito: que ele cumpra suas políticas habitacionais. Ainda que ineficientes para suprir toda demanda de moradia, essas políticas minimizam as dificuldades, as incertezas e os riscos que enfrentam milhares de famílias ao morar, em situações precárias, em favelas ou mesmo em ocupações como o edíficio no largo do Paissandu – onde aconteceu a tragédia no último 1º de maio –, contando com a sorte para não haver um incêndio ou uma enchente não arrastar seu barraco, estragar sua moradia precária.

Curioso é que não vejo muita discussão em público ou nas mídias de massa sobre as reais causas de uma tragédia dessa proporção. Li muita notícia que prefere criminalizar os movimentos de moradia, acusando-os de “cobrar aluguel de famílias vulneráveis”, sem sequer terem ido a uma ocupação para apurar de fato. Se isso acontecia no prédio da tragédia, não significa que aconteça em outros. Pense num condomínio. É isso que se tem nas ocupações. Como são autogeridas, todas as necessidades do prédio são custeadas pelos ocupantes. É assim que funciona.

Hoje não vivo mais em ocupações, mas não rompi os laços criados com os sem-teto. Foi difícil ser um fotojornalista, tendo vivido em uma ocupação por seis anos. Mas o que aprendi ali é que um trabalho jornalístico pode ser muito bem-feito sendo apenas respeitoso com as pessoas que ali vivem. Olhando no olho.

Maquinas destroem o que restou das casas na ocupação Pinheirinho em São José dos Campos, interior de São Paulo
Anderson Barbosa

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