Buscar

Entrevista discutiu o andamento da intervenção federal no Rio de Janeiro e o impacto desse acontecimento histórico

Casa Pública
4 de maio de 2018
08:55
Este artigo tem mais de 6 ano

A conversa foi conduzida pelo jornalista Rafael Soares, do jornal Extra, e contou com a participação de Silvia Ramos, coordenadora do Observatório da Intervenção, Buba Aguiar, do coletivo Fala Akari, e Rubem César Fernandes, secretário-executivo do Viva Rio.

Na Casa Pública, da esquerda para direita: Rafael Soares, Silvia Ramos, Buba Aguiar e Rubem César Fernandes

Rafael Soares – A intervenção na segurança pública no Rio era necessária?

Rubem César Fernandes – Já em agosto do ano passado, assim que houve o movimento de entrada das Forças Armadas por conta da GLO [Garantia da Lei e da Ordem], eu fui uma das pessoas que veio a público dizendo que achava que era importante que isso acontecesse. Por quê? Porque a gente estava em uma dinâmica de falência total, não só do estado do Rio de Janeiro, mas também das polícias do Rio de Janeiro.
Isso em seguida a um período de perda enorme nas UPPs. Então, havia uma dinâmica de morro abaixo, tanto na ordem do Estado legal quanto na segurança pública. E parecia impossível conter essa decadência, esse movimento negativo. Do outro lado, havia uma clara volta do crescimento dos agentes do crime organizado na sociedade.

Havia uma situação que eu estimava, e ainda estimo, que era preciso haver uma intervenção externa que parasse essas dinâmicas e abrisse campo para uma série de coisas. Eu não acho que o indicador principal seja o criminal. O que espero dessa intervenção é que ela crie um ambiente propício para que as polícias se transformem. Acho que é uma ocasião para isso, e estava difícil criar essa ocasião.

Silvia Ramos – Acho que a intervenção é a utilização de um artifício, de um dispositivo, constitucional, previsto na Constituição brasileira, que nunca foi utilizado, desde que a Constituição é Constituição, e que é o primeiro passo no sentido de medidas de força do governo federal para situações de instabilidade local. Primeiro intervenção, depois estado de emergência, depois estado de sítio.

Buba Aguiar – Acho que isso é um projeto político muito maior. A gente tem que colocar também aqui a questão do racismo, a questão da militarização dos corpos. A gente tem que parar para observar onde é que está ocorrendo de fato a intervenção, que não é aqui em Botafogo, não é no Leblon: é nas favelas, são os territórios periféricos, negros, favelados. Então, é até complicado falar de criminalidade, intervenção para combater a criminalidade, porque a criminalidade só se torna problema quando é uma determinada raça e classe que a comete. Por que é que, provocando bastante, um filho de alguém, de uma autoridade pego com quilos de pasta base, é dado como uma pessoa com graves problemas psicológicos, enquanto um rapaz negro da favela é a figura a ser combatida, a figura do inimigo público? O problema não é só a intervenção aqui em cima, é a intervenção embaixo. Qual é o problema real a ser combatido?

Rafael Soares – O que motivou a intervenção? Essa motivação foi válida?

Rubem César Fernandes – Francamente, não sei o que motivou. O que posso te dizer é que, quando chegou aquele momento de as Forças Armadas entrarem no Rio, eu mobilizei um pequeno grupo e outros amigos e amigas, e formamos um grupo de acompanhamento. Em seguida, formamos um outro grupo, que até ficou meio escondidinho, tentando mediar a reunião entre policiais, e o pessoal da Polícia Militar, um pouco da Civil, e os militares para discutir exatamente isto: o que dá para fazer se houver uma presença militar para valer? A nossa posição era que é o momento possível de avançar com a reforma da polícia. Era essa a intenção que nós tínhamos, que nos mobilizamos para participar. Qual era a motivação do Temer posso especular, mas realmente não é isso que me interessa aqui. Eu posso falar do campo em que a gente tem trabalhado, que é esse de tentar avançar nas questões de segurança por dentro da polícia. Eu acho que, se não houver mudança na polícia, é muito difícil fazer qualquer coisa que preste na área de segurança. E, para fazer com a polícia, tem que trabalhar por dentro da polícia também, não só de fora. A intervenção não resolve. Acho que ela cria o ambiente, mas a verdadeira mudança vem por dentro.

Rafael Soares – Silvia, qual é o diagnóstico que você faz do que foi feito pós-intervenção?

Silvia Ramos – O que aconteceu no primeiro, e agora no segundo mês pós-intervenção, foi uma surpresa. Tudo que se sabe sobre segurança pública é o seguinte: você dá uma mexidinha, todos os indicadores dão uma melhorada, as tropas dão uma melhorada, e isso é assim no mundo inteiro. A gente pensou que fosse acontecer isso também na área de segurança. Iria chegar, comando novo, eles iriam trocar rápido e tal. Surpreendentemente, aconteceu no Rio de Janeiro um negócio estranho que, acho, agora a gente está entendendo melhor o que foi: tudo que estava ruim continuou muito ruim e algumas coisas pioraram, não só os indicadores numéricos. Então, você via, por exemplo, o auto de resistência, que são as mortes provocadas pela polícia, que é um indicador muito forte de controle da tropa. Todo mundo falou: “Intervenção em fevereiro vai dar uma parada”. Continuou escalando em fevereiro. Então, o que aconteceu? O normal: você troca o secretário de Segurança, troca o comandante, troca o chefe de polícia, faz um plano, anuncia. O que acontece? As tropas: “Opa, agora tem comando”. A criminalidade: “Opa, vamos esperar para ver”. Aconteceu que continuou tudo destrambelhado.

Rubem César Fernandes – O Choque entrando na Rocinha atirando…

Silvia Ramos – A gente sabia que a intervenção tinha sido decretada a toque de caixa. Três dias depois, eu falei para um general lá no Museu do Amanhã: “General, com todo respeito, vocês estão se metendo em uma fria”, mas eu mesma não tinha noção do despreparo e da ausência de tudo. Agora está começando a dar aquela melhorada clássica. Fora isso, houve Marielle, um outro trauma na vida da cidade. O governo Temer, para mim, já está no lixo da história. A questão é o que vai ser feito com os dilemas de segurança pública do Rio.

Rafael Soares – Buba, eu queria que você falasse um pouco também sobre como a notícia da intervenção foi recebida por vocês, moradores de favela, não só de Acari, e como vocês estão sentindo a intervenção atuando dentro das favelas?

Buba Aguiar – A gente já esperava que isso fosse acontecer, infelizmente. E eu digo “infelizmente” de forma firme porque, para nós, moradores de favelas, as intervenções federais militares nunca foram positivas. Tiveram gastos de milhões de reais e a gente nunca nem viu um resultado real do que eles propuseram fazer. Não se combate a criminalidade, não se acaba com o comércio varejista de drogas, não se combate de fato o armamento, o comércio de armas. Porque uma coisa que a gente costuma falar muito é que na favela não tem paiol, nas favelas não tem uma fábrica de moer drogas, né?

Quando, seja a polícia ou o Exército, entra em uma favela com a desculpa de guerra às drogas, com a desculpa da criminalidade, é uma falácia, né? É uma desculpa. Os governos deveriam ter vergonha de usar isso para derrubar os nossos corpos. Porque isso está muito explícito que é mentira. Então, eu, Buba, nunca vi, por exemplo, um policial atirar em um pé de maconha dentro de uma favela. Então, a gente recebeu com muita preocupação. Falando mais diretamente sobre Acari, os moradores, até hoje a gente ainda não teve uma operação direta das Forças Armadas, de militares, mas os moradores estão muito aterrorizados com a movimentação e com a possibilidade de ter. Vira e mexe, a gente vê carros do Exército no entorno da favela, a gente vê uma movimentação muito parecida com uma espécie de mapeamento, e as pessoas ficam muito aterrorizadas porque Acari já passou por uma militarização alguns anos atrás, assim como a Maré passou, assim como o Complexo do Alemão passou. Eu, particularmente, não acredito que tenha uma falência do projeto de UPP, acredito que esse projeto foi construído para acabar dessa forma mesmo.

Uma coisa que a gente não costuma fazer – e quando eu falo “a gente” é a população de um modo geral, não só pessoas de favelas –, mas as pessoas mais uma vez compram o discurso de que uma intervenção federal vai diminuir a criminalidade do Rio de Janeiro. E o general vai para as mídias hegemônicas e fala abertamente que o Rio de Janeiro é uma espécie de laboratório. Então nós, favelados, somos os ratos desse laboratório, e é desde sempre. Assim, a gente, que sofre a violência muito mais direta, a gente não quer intervenção. Tem a questão de que muitas pessoas das favelas compram também o discurso porque é aquele desespero: “Nada está dando certo, a gente continua morrendo, e aí vamos dar um crédito para a intervenção, vamos ver o que vai dar”. Mas, no fundo, a gente já sabe o que vai dar. Nada.

Rafael Soares – Dentro dessa questão de descontrole da ação da polícia, a intervenção surgiu para algumas pessoas como: “Olha, vamos tentar recuperar”. O que vocês estão percebendo sobre o controle da polícia e possíveis reformas da polícia?

Rubem César Fernandes – Deixa eu falar do caminho que a gente tentou ajudar com o Viva Rio. Foi na montagem desse grupo de trabalho, que contava com o Caes, da Polícia Militar, para montar uma estratégia. A pergunta da estratégia era: “O que dá para fazer esse ano [2018]?”. Portanto, ainda no tempo visível. Depois de 2019 é outro cenário, que a gente não tem o menor controle. Então, essa agenda foi construída. Era para ter começado em março, aí veio a intervenção, aí vieram essas mudanças. A expectativa é de que, agora em maio, ela seja relançada. Onde eu tenho um certo trabalho é lá junto ao Caes, bem específico. Então, qual é a estratégia que a gente definiu para maio, a semana do 13 de Maio? É aniversário da polícia, da PMERJ. Você tem, há muito anos – aliás, não é só de agora –, policiais sendo mortos a cada semana, às vezes dois, às vezes três por semana. Toda semana você vai ao cemitério, se você é militar, ver o enterro de um colega seu, com quem você trabalhou, com quem você estudou, e lá vão também as famílias, as mulheres e os colegas, nesse clima de que “semana passada foi ele, agora fui eu que entrei aqui nessa cova”. As pessoas estavam em uma coisa assim, inacreditável.

Então, a gente achou que talvez o assunto da vitimização dos policiais fosse mobilizador por dentro da polícia para fazer a pergunta: “O que é preciso fazer para estancar essa sangria dos seus colegas, nossa sangria, se você é policial?”. Essa é uma pergunta que eu acho forte para eles, e que talvez seja geradora de conversar sério sobre coisas a fazer. Como controlar confronto? Como ordenar ações? Se tem menos policiais morrendo, tem menos pessoas morrendo também, que é a coisa de encontrar o uso da arma de fogo, como controlar a arma de fogo, a começar da arma do policial, porque é essa que você pode começar a controlar. A do bandido está descontrolada também.

Buba Aguiar – Acho que uma primeira proposta seria um estudo real sobre direitos humanos. Os policiais precisam estudar direitos humanos, eles precisam saber o que são direitos humanos. É muito estranho você ver, como o Rubem acabou de falar, uma corporação onde os ditos trabalhadores da segurança, que estão morrendo o tempo inteiro, estão matando o tempo inteiro, acreditarem nessa falácia de que direitos humanos é para humanos direitos. Uma outra coisa e que acho muito estranha é comparar a morte de policiais com a morte de civis, em questão de situação e de número, falando não só de mortes em relação policial, óbvio, mas a cada 23 minutos morre um jovem negro no Brasil. Pode-se ter policiais de folga neste meio, claro, mas essa questão de que “a polícia que mais mata é a polícia que mais morre”… Não, não é bem assim. Qual é a situação em que esses policiais estão morrendo? Não estou falando que os varejistas de droga estão jogando jujuba na polícia, mas a maioria dos policiais morre fora de serviço, morre em tentativa de assalto, porque foi reconhecido como policial – o que eu acho bizarro, claro –, mas falar que policiais estão morrendo demais em operações é porque a pessoa realmente não sabe nem o que ela está falando.

E você injetar essa ideia de uma reforma na polícia eu acho bem estranho, porque, quando a gente vai em 1809, quando a polícia do Brasil foi criada, ela já era criada nesse sistema em que a gente está hoje. A gente não está passando por um fenômeno, a gente está vendo a polícia fazer o que ela foi criada para fazer, que é controlar os corpos controláveis, matar os corpos matáveis, que… onde estão? Não preciso nem falar mais isso, de tanto que falo o tempo inteiro. Então, como pensar em uma reforma? A gente precisa falar sobre a desmilitarização. Quando a rua grita “Eu quero o fim da Polícia Militar”, tem gente que acredita: “Nossa, vamos pegar todos os policiais e jogar na rua? Está todo mundo desempregado”. Gente, por favor, precisa se falar sobre isso. Isso é uma outra proposta, como a gente pode pensar, e aí eu não faço um convite porque eu, Buba, como mulher negra favelada, não vou sentar com a polícia para pensar a reforma da polícia. Isso aí quem deve fazer são outros porque é o meu corpo que está na mira do fuzil ali o tempo inteiro, do Estado, não estou falando do indivíduo policial, mas, né?, o braço repressivo do Estado está voltado para o meu povo. Eu não vou sentar com quem está me matando para pensar reformulação. E nem estou fazendo aqui uma fala de tipo “que se danem”, não. Tem que se pensar isso, é óbvio que tem que se pensar. Mas, assim, com quem é que tem que se pensar? O que é que a gente vai fazer, uma polícia comunitária? Uma polícia de proximidade? A UPP está aí, era uma polícia de proximidade, olha o que está dando. Então, é muito complicado e é uma coisa que a cúpula da polícia, junto com os ditos especialistas da segurança pública e de direitos humanos, também vão sentar e conversar.

Rubem César Fernandes – Eu vejo todo dia. Depende se você disser que eu não sou direitos humanos. Eu estou nessa não é de hoje…

Buba Aguiar – A mudança? Não, não estou falando isso. “Dito especialista em segurança pública”, porque, se realmente tivesse especialista em segurança pública, acho que também não estaria desse jeito.

Rubem César Fernandes – Não, mas, se você jogar direitos humanos contra a segurança, contra a polícia, aí não tem saída…

Buba Aguiar – Não, não, não. Eu também sou defensora dos direitos humanos.

Rubem César Fernandes – Pois é, aí tem que aproximar, não é separar.

Buba Aguiar – Claro, mas tem um limite. Para a gente que está ali na vivência, para a gente que não está em gabinete, tem-se um limite. Desculpa.

Rubem César Fernandes – A minha mulher é nascida e criada em Manguinhos, depois Cidade de Deus, depois de Belford Roxo. A família dela é da Maré e da Cidade de Deus. Então eu estou sempre lá com a família. E o que vejo lá é esse horror que você está falando. Eu não vejo diferente. Agora, não tem por que você me sugerir que eu sou especialista, eu não sou especialista. Especialista é a Silvia.

“A maior parte da população é a favor da intervenção. Da classe média, das favelas e das áreas mais violentas”, diz Silvia Ramos

André Luiz Ferreira de Souza [plateia] – Além do meu serviço de segurança, também sou motorista de Uber. Fui assaltado duas vezes, uma por um cara negro, da minha cor, e, na segunda vez, fui assaltado por um rapaz branco de olhos azuis. Queria saber realmente: se militarizar der resultado, deve-se continuar ou não?

Silvia Ramos – A maior parte da população é a favor da intervenção. E não só da classe média, não é só daqui de Botafogo, não. Das favelas também, e das áreas mais violentas também. Nós acabamos de publicar uma pesquisa, com método científico e tal. Quase 80%, na média, são a favor da intervenção. E aí você fala assim: “Ah, na média, né? Mas jovens são contra, mas velhos são a favor. Mulheres…” Não, quando você tem 80, é quase todo mundo, varia muito pouco. Favela ou não favela? Quase todo mundo. Claro que, quando você pergunta: “A presença do Exército nas ruas nesse um mês fez diferença?”, também dá 80% dizendo que não. Não tenho dúvida de que as pessoas são a favor, mas eu acho que a intervenção abre um dispositivo muito complicado, que é o seguinte: e se a intervenção não funcionar e as coisas continuarem piorando? O que vocês acham que vai acontecer? As pessoas vão voltar e dizer: “Ah, não, a intervenção não está funcionando então não é melhor direitos humanos?”. Não, as pessoas vão dizer: “Intervenção não está funcionando, é estado de emergência. Estado de emergência não está funcionando, é estado de sítio. Estado de sítio não está funcionando, atira nas costas. Atirar nas costas não está funcionando, vai na praça central e põe a guilhotina”. Então, essa démarche, endurecimento das leis, perda de direitos, onde o cidadão entrega seus direitos em função de se sentir seguro, esse é um cardápio internacional, mundial e clássico de séculos.

Ismael [plateia] – Vim de Belém do Pará, que é a décima capital mais violenta do mundo. Em 2013, 13 jovens foram assassinados na periferia de Belém. Na mesma semana, um médico na lagoa Rodrigo de Freitas foi assaltado, roubaram a bicicleta dele, importada, e ele foi morto. Foi uma semana de Jornal Nacional por conta desse médico e uma notinha de pé de página para os 13 corpos de Belém. O que questiono é: por que o Rio de Janeiro, se existem dezenas de cidades no Brasil, muito mais violentas do que o Rio?

Buba Aguiar – O Rio de Janeiro e uma cidade-produto. É isso. E ainda assim esse exemplo do médico que você colocou… Um dia desses me perguntaram se algumas vidas valem mais do que as outras, porque o tema do debate que participava era: “Vidas negras importam?”. Uma pessoa que vai em um debate e chega para uma pessoa que está debatendo e pergunta: “Mas, Buba, realmente as vidas negras valem mais?”. Não, é justamente isso que a gente está debatendo, as vidas negras e periféricas estão valendo cada vez menos. E aí você pega o médico que foi assaltado e, infelizmente, foi morto na lagoa Rodrigo de Freitas por conta de uma bicicleta – porque ainda tem isso: o sistema é tão perfeito no que ele faz que coloca a gente para se matar. É a mercantilização da nossa própria vida. O que é uma pessoa matar a outra com uma facada por conta de uma bicicleta? Mas o que é também o Estado entrando em uma periferia da Baixada Fluminense – não vou nem falar de Acari – e deixar também 50 corpos, como foi ano passado em Nova Iguaçu, e não se falou? São pesos totalmente diferentes. O que aconteceu com a Marielle – não falar da morte dela em si, mas de como isso repercutiu – deixou isso muito explícito para a gente. Quando houve toda essa comoção, a gente vê como as pessoas estão sempre prontas para atacar a dor do outro, mas nunca para lutar para que a dor dos seus não venha a acontecer. A manifestação não tinha nem 50 pessoas. Mas aí você vê uma publicação lamentando a morte de alguém da favela, a morte da Marielle. São milhares e milhares de pessoas falando: “Ah, quando vocês falarem da morte dos policiais, a gente conversa”. Tem gente que está reivindicando a vida dos policiais, e vocês não estão na rua reivindicando a própria vida de vocês. Não estou nem falando dos policiais porque eles não têm nem direito à manifestação. Então, entra nessa questão também da reforma da polícia. Os caras não podem nem se organizar a favor deles mesmos. “Direitos humanos para humanos direitos” – essa colocação que você pôs aqui é negativamente brilhante, porque tem uma hipervalorização de certas vidas e uma triste, absurda, desvalorização de outras. É o que a gente costuma chamar realmente de corpos matáveis. Nós somos corpos matáveis, o médico do Leblon não está no âmbito dos corpos matáveis. É isso.

Rubem César Fernandes – Concordo 100% com o que ela disse. Só para acrescentar: se você vai à Baixada, Nova Iguaçu, por exemplo, você tem lá movimentos tipo o “Grita Baixada”, que está lá há anos e que, por mais que grite, não repercute. Teve um momento que repercutiu lá no início, depois foi esquecido. É uma dificuldade enorme. Quem é que se importa pelo “Grita Baixada” lá na Baixada? São as famílias que ainda têm aquela memória e a Igreja, porque tem um bispo lá que se importa, chama dom Luciano. Agora, e se você vai ao Salgueiro, lá em São Gonçalo, há pouco tempo teve uma chacina também. Lá não tem nenhum bispo que se importa, então nem a Igreja se importa.

Mariana Simões – Qual é o papel da mídia nessa história? Vocês veem um sensacionalismo nisso tudo, que se aproveita da situação para dar ibope também?

Buba Aguiar – Sim. Por conta desse sensacionalismo da mídia, e que não é um sensacionalismo inocente, é proposital. E, aí, o que gera esse sensacionalismo? Gera as pessoas comemorando a prisão de 150 pessoas acusadas de serem milicianos. Porque se você tem uma mídia de pensamento crítico, assim, na utopia do “fantástico mundo de Buba” não teria uma matéria de que “polícia prende 150 milicianos”. Seria tipo “será que todos são milicianos?” Tinha um circense no meio, tinha um trocador de ônibus no meio. Eu conversei com alguns familiares. Gente, a parada foi absurda. Eu vi o ingresso da festa. E é como a Silvia colocou: então, está liberado agora chegar em um baile de favela e sair pegando todo mundo? Vão caminhões e caminhões de pessoas, porque um baile de favela lota, muito mais que 150 pessoas. Muitos ali são ambulantes, muitos acabaram de chegar do trabalho no shopping, só foi em casa, trocou de roupa e foi para o baile. Eu cansei de ir para o baile em Acari. E hoje em dia eu não vou não só pelo fato de eu estar afastada do território, porque, sim, eu tenho medo de a polícia entrar atirando no meio do baile. Porque ali não tem diferenciação.

“É complicado a gente usar a palavra “pacificar”, porque que cor é que tem a paz?”, diz Buba Aguiar

Rafael Soares – Para encerrar, queria fazer uma pergunta sobre Marielle. O que é que, na opinião de cada um, representa a morte de uma defensora de direitos humanos no Brasil, no Rio de Janeiro, em 2018, em meio a uma intervenção?

Buba Aguiar – É muito complicado a gente se colocar na linha de tiro, porque é isso que defensores de direitos humanos, principalmente de favela, fazem. A gente defende direitos, mas a gente é visto como criminosos, como pessoas a serem freadas. E foi isso que tentaram fazer com a Marielle. Eu digo “tentaram” porque, se tivessem conseguido, a gente não estaria aqui e as pessoas não estariam na rua. As consequências da execução da Marielle são muito pesadas, explicitam os números altíssimos de mortes de defensores de direitos humanos no Brasil. Ano passado a gente chegou a 56, se não me engano. E aí em uma intervenção… É complicado a gente usar a palavra “pacificar”, porque que cor é que tem a paz? Qual é a classe social da paz? A paz é branca, a paz é rica. A paz não é feita para mim, para o meu povo, no caso. Quais eram os apontamentos também da Marielle? Ela se colocava contra a intervenção, ela fez uma tese sobre as consequências das UPPs. Inclusive ela falava muito da problemática da pacificação, seja aqui, seja em qualquer lugar. E foi complicado porque a gente foi meio que jogado nesse furacão. A gente, em Acari, mora na região do 41, que é o batalhão mais letal – não sei se ainda é o que mais mata no Rio, mas ainda é considerado o mais letal no estado. E a gente está vivendo, Acari tem um histórico de luta e de opressão muito grande. A gente já foi quilombo, a gente já foi tribo indígena, a gente já foi fazenda. Hoje somos favela. Então, a gente tem esse histórico de luta e de denunciar as opressões do Estado. Foi a primeira favela a sofrer uma chacina pós-redemocratização do país, entre muitas aspas, a ditadura, porque a ditadura não é só quando está no asfalto, a gente na favela vive, sim, uma ditadura. A gente tem nosso direito cerceado de ir e vir, o direito a uma moradia, porque a nossa casa não é um asilo, como está na Constituição, um asilo respeitado, então a gente vive e denuncia tudo isso. Seja a falta de saneamento básico, seja a violência policial direta. Então, a mensagem que eu queria deixar, inclusive, é a de que, sim, está difícil você se ver nessa posição de direitos humanos, de favela, sendo mulher e sendo mulher negra. Nós somos aqueles indivíduos que meio que fugiram. “O teu lugar é ali, você não pode sair dali,você não pode questionar isso que você está vivendo.” Se você sai daquele espaço e você questiona, eles fazem isso que fizeram com a Marielle. Só que eles fazem isso achando que a gente vai parar. Porque se eu tombo hoje, vêm mais duas Bubas amanhã; se você tomba, vêm mais quatro suas amanhã, assim como a Marielle brotou em milhões de pessoas e vai continuar brotando.

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Se você chegou até aqui é porque realmente valoriza nosso jornalismo. Conheça e apoie o Programa dos Aliados, onde se reúnem os leitores mais fiéis da Pública, fundamentais para a gente continuar existindo e fazendo o jornalismo valente que você conhece. Se preferir, envie um pix de qualquer valor para contato@apublica.org.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes