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É do Vale do Rio Pardo, no Rio Grande do Sul, que emana o discurso – e o lobby – em defesa do cigarro no Brasil; leia trecho inédito do livro-reportagem

Da Redação
29 de agosto de 2018
09:00
Este artigo tem mais de 6 ano

Desde 2011, os autores João Peres e Moriti Neto investigam o tema do tabagismo no Brasil, o maior exportador mundial da folha de tabaco do mundo. Entre as várias reportagens que subsidiaram o livro da editora Elefante está “Sob a fumaça, a dependência”, publicado em 2015 pela Agência Pública, numa investigação que recebeu menção honrosa no Prêmio da Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) em 2016.

O livro “aborda de maneira sistematizada a formação da rede estratégica da indústria do tabaco no Brasil”, explicam os repórteres na introdução da obra que será lançada hoje no Rio de Janeiro, no Dia Nacional de Combate ao Fumo, e na semana que vem, em São Paulo.

O cerne dessa articulação da indústria tabagista são as milhares de famílias rurais responsáveis pelo plantio de tabaco e suas ligações permeadas por essa mesma indústria junto a políticos, juízes, imprensa e sindicatos. Os autores desvendam como essa articulação é utilizada para frear políticas de saúde pública e controle do tabagismo. A seguir, leia um capítulo inédito do obra.

Os reis da confusão

Se não tiver como sustentar uma tese, crie confusão. No campo, tabaco. Nos tribunais, a dúvida. Semeie com vontade, regue, veja como cresce na cabeça do juiz. Da árvore da incerteza costumam nascer frutos estranhos, exóticos mesmo, que provocam a morte súbita do caule. Para alegria da indústria do cigarro, no solo do Judiciário brasileiro, em se plantando, tudo dá. A generosidade é tamanha que até inibiu o surgimento de novas sementes. À diferença do que se deu em alguns países, no Brasil as corporações do setor seguem donas do território: não sofreram, até hoje, nenhuma derrota definitiva.

Houve sustos, é verdade, algumas safras que ameaçaram não vingar. Mas, ao final, com muitos fertilizantes e agrotóxicos, foi possível neutralizar o problema. “É público e notório que o cigarro é prejudicial à saúde, ninguém pode afirmar que não sabia que o cigarro é prejudicial”, disse em 2012 o advogado Eduardo Ferrão, contratado pela Souza Cruz. Ele é natural de Santa Maria, região produtora de tabaco, e foi sócio e aluno do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim, que integrou o Conselho de Administração da Souza Cruz.

A declaração veio após a vitória em um caso emblemático, que reúne todo o escopo argumentativo da indústria e todos os matizes que permeiam o Judiciário quando se trata de responsabilidade civil dos fabricantes de cigarros. Em 2005, a família de Vitorino Mattiazzi ingressou com ação na comarca de Cerro Largo, no extremo oeste gaúcho, cobrando da Souza Cruz indenização pela morte do homem, ocorrida quatro anos antes em decorrência de câncer de pulmão. Os parentes alegam que Vitorino, nascido em 1940 e fumante desde a adolescência, foi iludido pelas propagandas e não conseguia deixar de fumar, o que ocorreu efetivamente apenas às vésperas da morte, quando já não tinha força para aspirar.

É basicamente em cima desses dois aspectos que atua a indústria, qualquer que seja o caso. Sem entrar nos pormenores jurídicos — o que já é feito com mais competência em várias obras especializadas —, argumenta-se que fuma quem quer, o chamado livre-arbítrio, e que não há como provar a correlação entre doença e morte, o chamado nexo causal.

É em torno disso que o caso Mattiazzi acaba jogado de um lado para o outro. Na primeira instância, o juiz deu razão à Souza Cruz, afirmando que não se pode responsabilizar terceiros por uma atitude própria e que não se tem como provar que os cigarros fumados ao longo da vida foram de um fabricante específico.

O debate começou a ficar mais interessante em 2007, na segunda instância, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, até hoje um espaço privilegiado de teses pró e contra a responsabilidade civil da indústria.

Antes de entrar nos pormenores, é preciso entender o contexto. Um ano antes da discussão sobre o caso Mattiazzi, em 2006, a juíza federal norte-americana Gladys Kessler, da Vara de Columbia, proferiu uma sentença histórica na qual acusou a indústria de atuar de forma coordenada para enganar o governo, a comunidade médica e a sociedade como um todo. A decisão é fruto de uma ação movida pelo governo dos Estados Unidos contra onze corporações do setor para reaver os gastos provocados pelo tabagismo ao sistema de saúde.

Ao analisar milhares de páginas de documentos outrora secretos, ficou claro que a indústria manipulou informações e ocultou dados importantíssimos. Desde a década de 1950 já havia evidências de que o tabaco estava associado ao câncer — ou seja, com pelo menos dez anos de vantagem sobre os Estados e a população, que só em 1964 tomaram contato com as primeiras evidências científicas públicas a esse respeito. Também desde essa época as pesquisas internas demonstraram a dependência provocada pela nicotina, e levaram à constatação de que reduzir o teor da substância acarretaria na perda de clientes.

As empresas discutiam nos anos 1960 como fariam para manter as vendas diante da propagação de informações negativas. Na década seguinte, frente a este cenário, foram criados os cigarros light, apresentados como mais saudáveis. Mas os documentos mostram que as corporações sabiam que os fumantes compensavam a redução do teor de nicotina com mais cigarros, e que a Philip Morris conduziu estudos de marketing para entender como poderia usar esses produtos para trazer de volta antigos fregueses, animados com um produto apresentado como inócuo.

Diante da visão de que o fumante passivo era o risco maior no embate público, criou-se um instituto de pesquisas no qual foram investidos US$ 60 milhões para criar estudos que deslegitimassem evidências. Quando obrigadas a encerrar as atividades dessa organização, as corporações simplesmente polvilharam recursos para bancar outros pareceres de mesmo tipo.

Os documentos revelados expõem ainda um esforço grande para atrair jovens, caminho para garantir a manutenção dos níveis de lucro de uma atividade econômica que mata os próprios fregueses. A ideia central consistia — e ainda consiste — em associar o cigarro a prazeres ilícitos e à entrada na vida adulta, com uma imagem de vigor, rebeldia, aventura e amor à vida — não custa recordar o cowboy de Marlboro.

Voltando ao caso Mattiazzi, o relator na 5ª Câmara Cível, desembargador Paulo Sérgio Scarparo, decidiu que a empresa, ao omitir os malefícios provocados pelo cigarro, induziu os consumidores a adotar uma atitude nociva contra si próprios. Ele recordou que o setor investiu milhões em publicidade para forjar a imagem de que o produto levava a sucesso e a bem-estar. Além disso, Scarparo afirmou que cabia à Souza Cruz provar que o cigarro não foi a causa da morte de Vitorino, e não o contrário. E disse que, ainda que a atividade da empresa seja lícita, isso não a dispensa de agir de boa-fé e de assumir os danos causados.

O desembargador Pedro Luiz Rodrigues Bossle afirmou que “há muito tempo” são conhecidos os riscos do cigarro e que “basta força de vontade para parar de fumar”. Se você espera por argumentos científicos, é melhor procurar em outro lugar: o Judiciário brasileiro não é exatamente um exemplo de rigor e precisão. É comum que juízes, desembargadores e ministros digam que “todo mundo conhece” alguém que deixou de fumar e, portanto, só não para quem não quer — ainda que reconhecidos estudos mostrem que a imensa maioria dos fumantes são, em verdade, pacientes, que raramente conseguem superar a dependência. A posição de Bossle acabou vencida, por dois votos a um, e a família ganhou direito a uma indenização total de R$ 515 mil.

O caso Mattiazzi seria interessante se parasse por aí. Mas restam duas etapas. Ainda em 2007, o 3º Grupo Cível do Tribunal de Justiça avaliou os recursos apresentados pela empresa. O relator, Ubirajara Mach de Oliveira, basicamente manteve os argumentos do voto vencedor na 5ª Câmara, dizendo que era má-fé colocar a culpa no fumante e que as próprias informações da indústria comprovavam as mortes associadas ao cigarro.

Porém, houve divergência. Ao se falar sobre uma decisão favorável à indústria do cigarro, muitos de nós somos levados a pensar em corrupção. É o famoso “esse juiz tá comprado”. E não é um pensamento condenável, vivendo no mundo em que vivemos. Mas, falando de maneira geral, não há elementos para dizer que seja essa a postura recorrente.

Nessa linha de raciocínio, a juíza Marília de Ávila e Silva Sampaio, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, considera “preocupante” que “as consistentes e conclusivas pesquisas científicas” sejam descartadas em benefício do “senso comum”. “Torna-se mais preocupante ainda quando se sabe do poderio econômico das empresas”, lamenta. “Ocorre que historicamente a indústria do cigarro tratou de desmentir o fato de que nicotina causasse dependência química, bem como de esconder os resultados das pesquisas acerca dos devastadores efeitos do uso contínuo dessa substância.”

Um estudo analisou todas as 96 ações com acórdão publicado entre 2007 e abril de 2010 por danos morais e materiais. Em apenas nove casos as decisões foram total ou parcialmente favoráveis às vítimas. No geral, a produção de provas pouco importou aos juízes e desembargadores.

Vamos tentar nos colocar por um segundo na posição de um juiz brasileiro. O mais provável é que seja um homem (64,1%) e branco (84,2%), nascido em família de classe média pra cima. E conservador. Bem conservador. Bota conservador nisso. É uma pessoa que valoriza a iniciativa individual, a propriedade privada e a liberdade irrestrita das empresas.

“O que estão fazendo pode ser apreendido como uma exploração, uma maneira de lucrar com a morte.” Estas palavras saíram da boca do desembargador Osvaldo Stefanello. Ele afirmou que os parentes de Vitorino, “na ânsia de lucro”, estavam diminuindo a memória dele, retratado como um “homem de caráter fraco e sem personalidade e incapaz de escolher entre continuar com um vício pernicioso à sua saúde e o prazer que lhe proporcionava cada uma das tragadas”. Dessa maneira, só o fumante pode ser responsabilizado por uma doença.

Segundo o Instituto Nacional de Câncer, 90% dos fumantes se iniciam no hábito antes dos 19 anos — boa parte aos 13 e 14 anos. “O futuro não existe para o jovem. ‘Não vou fumar porque talvez daqui a trinta, quarenta anos tenha um problema’. Biologicamente o jovem é feito para pensar no hoje”, diz Eugênio Facchini Neto, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que não acolhe as teses da indústria. “Não por acaso, no mundo inteiro jovens não podem tomar decisões de fundo patrimonial até uma determinada idade.”

Há reiteradas pesquisas mostrando que a grande maioria dos fumantes se arrepende de haver colocado um cigarro na boca, e que é baixa a chance de deixar a dependência. Na visão da OMS, tabagismo é uma doença, e não um hábito calcado no livre-arbítrio. Mas, para o desembargador Stefanello, ainda que deixássemos de lado essa questão, haveria outro motivo para decidir em favor dos fabricantes:

“É a indústria fumageira a que mais recolhe tributos, inclusive o icms, imposto do qual emerge como fonte principal dos recursos utilizados para cobertura das obrigações financeiras do Estado, assim como para pagamento dos vencimentos do funcionalismo público, dentre os quais os nossos, eminentes colegas julgadores.”

A levar em conta essa tese, nenhum cidadão teria chance de ganhar contra uma empresa, já que o imposto de renda de pessoa física será sempre menor, em montante, que o de pessoa jurídica.

Há uma questão importante no caso Mattiazzi e em qualquer outro relacionado a indenizações de fumantes: os advogados que movem a ação não são especialistas no assunto, simplesmente porque não existem clientes em quantidade suficiente para justificar uma segmentação de mercado. A indústria, por outro lado, é réu em casos a dar com pau: é aquilo que no mundo jurídico se conhece por “litigante habitual”. As corporações acumulam o know how de décadas de processos mundo afora, tendo uma taxa elevada de sucesso basicamente mobilizando os argumentos do nexo causal e do livre arbítrio. E, de quebra, não têm limitação de recursos e podem arrastar um caso durante anos, algo que dificilmente uma pessoa poderá fazer.

No começo de 2014, o site Migalhas contabilizava, a partir de dados da Souza Cruz, 660 ações movidas contra as empresas de cigarro no Brasil. Apenas três eram favoráveis aos cidadãos, mas ainda não haviam sido julgadas em definitivo, e 473 já haviam sido arquivadas.

O Observatório sobre as Estratégias da Indústria do Tabaco coloca as boas relações institucionais no cômputo das decisões favoráveis. “A indústria de tabaco Souza Cruz, em parceria com a Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV), injetou cerca de R$ 1,5 milhão em projetos de informatização e digitalização dos documentos da Justiça brasileira, constituindo o fundo do Programa Justiça Sem Papel”, anota a organização. Além de supostamente facilitar o acesso dos cidadãos ao Judiciário, o projeto previa o financiamento privado de iniciativas apresentadas pelos próprios magistrados.

Em 2010, o vi Fórum Mundial de Juízes foi realizado no Rio Grande do Sul sob o mote “Avanços Civilizatórios”, uma ideia curiosa para um evento patrocinado pela Souza Cruz. A ACT Promoção da Saúde enviou carta aos organizadores para evidenciar o conflito de interesses. “O patrocínio recebido da Souza Cruz, que tem diversas ações judiciais contra si propostas, no mínimo abala a crença na atuação de um Judiciário imparcial, livre e independente.”

Pinheiro Neto e Sérgio Bermudes, dois escritórios grandes de advocacia, estão entre os contratados pela Souza Cruz. Nelson Jobim, ex-ministro do STF e da Justiça, como já apontamos, e Ellen Gracie, ex-presidente do STF, integraram o Conselho de Administração da empresa. Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo, e Sepúlveda Pertence, ex-ministro da Corte, já redigiram pareceres para o SindiTabaco.

Ah, sim, os pareceres. Precisamos falar a respeito.

— A causa do sucesso não é suborno. É lobby, mesmo. Contratam grandes advogados, ex-desembargadores com proximidade com os juízes — conta um juiz, sob condição de anonimato. — São muito combativos. Os advogados pressionam muito. Trazem pilhas de documentos.

Documentos como os utilizados por Stefanello para fundamentar sua posição contra a família Mattiazzi. Ele cita parecer anexado pela Souza Cruz de autoria de Maria Celina Bodin de Moraes, professora da Faculdade de Direito da Universidade Estadual do Rio (UERJ). Ela basicamente advoga que a liberdade dada pela Constituição à pessoa significa que os consumidores são responsáveis por seus atos e que, no caso específico do cigarro, não há propaganda enganosa, já que todos sabem do risco à saúde.

— Trazem materiais de apoio para tentar convencer o juiz — conta o desembargador Eugênio Facchini. — Um dossiê contendo algumas decisões que vêm ao encontro do posicionamento deles, mais cópias de decisões de tribunais estrangeiros. Tudo para convencer o juiz de que todo mundo pensa assim, de que a jurisprudência pensa assim, de que a doutrina pensa assim. Tudo para que o juiz ache que não vale a pena refletir muito sobre o assunto. Não poupam recursos. Em ações aqui no Rio Grande do Sul, vem não só um advogado local, mas vêm advogados de São Paulo falar com o juiz. Não têm limite. Mesmo que seja uma ação fácil. Eles não querem correr nenhum risco.

Há um livro grosso e importante nessa estratégia de atuação. Quem não presta atenção pensa que Estudos e pareceres sobre livre-arbítrio, responsabilidade e produto de risco inerente é uma obra jurídica qualquer. Mas, na verdade, trata-se de uma compilação de pareceres feita por Teresa Ancona Lopez, professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a pedido da Souza Cruz. É nele que está o parecer utilizado por Stefanello. Ex-ministros do STF e do STJ, desembargadores aposentados e professores de universidades renomadas emprestam seus nomes à causa. Se você é um juiz que não tem muita convicção sobre o assunto e milhares de casos sobre a mesa, vai adorar que alguém te entregue um material que abrevia em muito a pesquisa. Se já está convencido, ainda melhor, ganha fundamentos — apesar de, via de regra, não ser preciso grande fundamentação.

“Parece, portanto, ser mais uma questão de falta de motivação e de falta de autossinceridade na tentativa do que propriamente de impossibilidade do abandono do produto”, escreve Álvaro Villaça Azevedo, professor titular da USP. “Se as pessoas em geral, a despeito do conhecimento sobre os riscos associados, iniciam-se no consumo de cigarro e depois, acostumadas ao prazer, não se empenham em parar, não podem, a pretexto da alegada dependência, tencionar receber indenização da empresa fabricante de cigarros.”

Já Gustavo Tepedino, titular da UERJ, defende que o cigarro não frustra a expectativa de ninguém, já que se sabe desde “sempre” do risco inerente e que a indústria divulga todas as informações disponíveis. “Já os produtos químicos em geral, cosméticos e farmacêuticos, exigem minuciosa advertência aos consumidores, que não podem prever, à evidência, o grau de danosidade que se associa ao manuseio e à utilização do produto”, avalia. “Aquele que fuma sabe, desde tempos imemoriais, consumir produto potencialmente apto, do ponto de vista médico, a provocar efeitos patológicos no organismo humano.”

O estudo que citamos lá no começo do livro, divulgado em 2017 pela OMS e pelo Instituto do Câncer dos Estados Unidos,7 expõe que, numa pesquisa com fumantes em 22 países, há um percentual considerável que desconhece a associação entre cigarro e acidente vascular cerebral e os efeitos negativos sobre a saúde de fumantes passivos. Em alguns países, passa de 30% o desconhecimento sobre derrame e de 50% quando se trata de problemas cardíacos em fumantes passivos.

Adalberto Pasqualotto, professor titular de Direito do Consumidor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), estabelece uma analogia com o sistema de transportes.8 Mesmo sabendo que há um risco em tomar um ônibus, por exemplo, o passageiro tem direito a indenização em caso de acidente. “Nem todo fumante contrairá doenças porque fuma. Mesmo que as contraia, a causa da morte pode vir a ocorrer por fato alheio ao consumo de tabaco. Todavia, sendo sabido que o tabaco é causador de vários agravos à saúde, quando o dano ocorrer e estiver provado o nexo de causalidade, caberá ao fabricante a obrigação de indenizar, não obstante o risco de doença seja inerente ao consumo do produto.”

Mas é claro que se pode passar à margem das evidências científicas quando não interessam a uma determinada tese. Há, no livro financiado pela Souza Cruz, divagações sobre a boa-fé da indústria e a defesa de que apenas depois do surgimento da Constituição e do Código de Defesa do Consumidor é que há obrigação em advertir as pessoas sobre o risco do produto. René Ariel Dotti, professor da Universidade Federal do Paraná, advoga que fumar é um ato de prazer e de liberdade. “Muitas vezes ele surge como um processo de imitação ou como expressão de masculinidade a que se propõem os jovens. Não há registro na crônica do cotidiano ou na jurisprudência dos juízes e dos tribunais de algum episódio no qual alguém foi obrigado à prática do fumo.”

Os argumentos, que poderiam ser pinçados e reproduzidos por um dia inteiro, não são muito diferentes daqueles utilizados pelo ministro Luis Felipe Salomão quando o caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça. Na época, abril de 2010, Salomão afirmou que tinha processos mais antigos para julgar nessa mesma seara, mas que escolheu a dedo o de Mattiazzi. “É o momento mais adequado para a reflexão sobre o tema, porque há inúmeras ações tramitando”, disse.

Para o ministro, é errado supor que a publicidade interfere no livre arbítrio do tabagista. Além disso, a Souza Cruz não agiu de má-fé ao não advertir sobre os males do cigarro porque à época não havia exigência legal nesse sentido. Ele afirmou que o hábito de fumar não pode ser atribuído à indústria, já que existia antes mesmo da chegada dos europeus. “Também não é criação da indústria do café o hábito de saborear tal produto, assim como não é o ‘chá das cinco’ inglês criação da indústria do chá”, comparou. Tampouco há comprovação de que a indústria do chá tenha investido bilhões para tornar a fórmula adictiva, nem que 90% dos casos de câncer de pulmão sejam provocados pelo café. Mas, enfim. “Na verdade, cotidianamente a humanidade leva a efeito seu projeto de vida privada, o qual, até décadas muito próximas, foi encabeçado sim pelo cigarro, pelo álcool, assim como pelo sal, pela gordura animal e pela vida sedentária, todos relacionados a malefícios notoriamente reconhecidos”, continua Salomão, arrematando: “Quem desconhece que os computadores, além de todo o progresso para a humanidade, atuam também como incremento no desenvolvimento de síndromes oculares?”.
Em relação à ocorrência de câncer, o ministro adotou a postura corriqueira: só seria possível indenizar caso se tivesse 100% de certeza de que o cigarro provocou a doença.

A decisão de derrubar a indenização à família Mattiazzi, tomada em 27 de abril de 2010, sepultou as chances de reparação dos parentes de fumantes. Para a indústria, era preciso colocar um freio porque uma sentença favorável de uma Corte superior faria surgir muitos outros processos, e com boa possibilidade de sucesso. Ainda que nas instâncias inferiores possam emergir decisões contrárias aos interesses das corporações, em Brasília a gaveta está garantida, pelo menos até que apareça um ministro determinado a mudar o rumo da argumentação.

É nisso que desembargadores e juízes como Eugênio Facchini apostam para continuar a decidir em favor do fumante:

— Imagine uma doença em que cientificamente se tem como certo que o fumo causa doença em 80% dos pacientes. O que acontece atualmente? — raciocina Facchini. — Se cada uma dessas pessoas entrar individualmente com uma ação, cem ações individuais, oitenta deles, pelo critério científico, teriam seu tumor derivado do tabaco, mas todas as ações seriam julgadas improcedentes porque nenhum deles, individualmente, comprovou que seu tumor foi derivado do tabaco. Então, o raciocínio individual está certo. Mas, quando pego um grupo de cem ações, tenho essa coisa espantosa.

Para dar fim a essa coisa espantosa, o desembargador entende que o correto é usar esse percentual de comprovação da doença para calcular o total da indenização devida pela empresa, e não para excluir a possibilidade de pagamento de danos morais. Ou seja, o ressarcimento à família da vítima é que seria de 80% do valor da ação.

Sobre os autores

João Peres é autor de Corumbiara, caso enterrado (Elefante, 2015), livro-reportagem que esteve entre os finalistas do Prêmio Jabuti em 2016 e foi agraciado com o segundo lugar no Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo em 2015. Foi editor e repórter da Rede Brasil Atual entre abril de 2009 e novembro de 2014, após ter passado pelas redações das rádios Jovem Pan AM e BandNews FM. É tradutor do livro Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, de Tom Slee (Elefante, 2017). Nos últimos anos tem se dedicado a investigar o setor privado. É um dos fundadores do site O joio e o trigo, especializado em política alimentar.

Moriti Neto é jornalista, com passagens pelo site Rede Brasil Atual, pelas revistas Fórum e Caros Amigos, e pelo blog Nota de Rodapé. Também colaborou com jornais e sites do interior paulista. Recebeu o primeiro e o segundo lugar no Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo em 2014 e 2015, e o Prêmio Anamatra de Direitos Humanos em 2016, por reportagens produzidas para a Agência Pública. Como professor, coordenou o jornal Matéria-Prima, do curso de jornalismo da Unifaat, que em 2013 recebeu quatro menções no Prêmio Yara de Comunicação. É um dos fundadores do site O joio e o trigo, especializado em política alimentar.

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