O quilombo de Mercês, no município de Ipojuca, litoral sul de Pernambuco, está sendo atacado por todos os lados. Enquanto tenta garantir a titulação do parte do seu território tradicional, que foi comprimido quando as indústrias do Complexo Industrial Portuário de Suape começaram a ser instaladas por ali em meados dos anos 1970, a comunidade descendente de negros libertos tenta sobreviver em um ambiente degradado. Derramamentos de petróleo no mar e nos mangues são as ameaças mais recentes para as 268 famílias.
Em agosto deste ano, parte do território tradicional da comunidade – reconhecida pela Fundação Palmares como remanescente de quilombo em 2016 – foi contaminada por um vazamento de petróleo da refinaria Abreu e Lima. A operação da Petrobras, um dos principais alvos da Operação Lava Jato, fica em Suape, a poucos metros das casas dos quilombolas.
Antes da chegada do complexo industrial de Suape, aproximadamente 3 mil habitantes ocupavam 4,7 mil hectares, desde a região da refinaria até as ilhas de Mercês, Cocaia e Tatuoca, onde os navios que chegam ao porto são atracados. Hoje, o território foi reduzido a menos da metade. Restaram cinco núcleos de moradias com cerca de mil pessoas – sendo cem crianças – em 1,6 mil hectares. Esta terra está ainda em processo de titulação.
No último dia 26 de agosto, uma enorme área de mangue – cerca de 4,5 hectares – foi impactada pelo vazamento de cinco metros cúbicos de óleo misturado com água proveniente da refinaria Abreu e Lima. Até então, era o único lugar onde os quilombolas, que vivem basicamente da pesca artesanal e da plantação de verduras e frutas, ainda conseguiam encontrar camarões para consumir e vender nos bares, restaurantes e feiras do litoral sul de Pernambuco.
Depois do incidente, a pescadora Marinalva Maria da Silva, de 53 anos, notou que os camarões do mangue ficaram escuros. “Pareciam queimados. Eu comi, não vou mentir”, confessa. Ela também disse que cardumes de pequenos peixes estão morrendo sem explicação.
Segundo a Petrobras e a Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH), o poluente vazou da estação de tratamento de despejos industriais da refinaria. A agência informou que o escape aconteceu por uma perfuração em uma das tubulações, porém a Petrobras não detalhou as causas. As instituições informaram que a substância oleosa atingiu um córrego, mas foi contida antes de chegar ao mar.
A refinaria foi multada pela CPRH em R$ 705 mil pelo crime ambiental. O valor ainda não foi pago porque a Petrobras apresentou recurso administrativo no órgão. Além disso, a unidade de refino foi obrigada a aplicar um plano de remediação para a retirada total do óleo das áreas contaminadas.
Magno Araújo é líder comunitário do quilombo. Ele afirmou que os poluentes não foram drenados e em vez disso a área de mangue está sendo destruída. “Cortaram as árvores e agora estão jogando terra em cima. Ou seja, aterrando o mangue”, denunciou. A reportagem da Agência Pública visitou o local, que foi isolado pela refinaria Abreu e Lima, e viu trabalhadores aparentemente recolhendo o óleo, além das árvores cortadas.
“Muitos animais morreram, porém nunca soubemos a real extensão dos danos porque foi abafado”, observou o diretor de assistência técnica quilombola da prefeitura de Ipojuca, Jadson Rodrigo Barreto. Na época do vazamento, ele afirma ter visto sacos sendo retirados do mangue e jogados em caminhões de lixo com trituradores, por equipes que limpavam o local. Jadson acredita que animais mortos no incidente podem ter sido escondidos nesses sacos.
Diretor de controle de fontes poluidoras da agência estadual ambiental, Eduardo Elvino afirmou à Pública que “não viu esses sacos”. Ele confirmou que 12 animais foram resgatados sujos de óleo – apenas quatro sobreviveram. Um jacaré-de-papo-amarelo, espécie ameaçada de extinção, morreu. O diretor disse que o governo estadual tem acompanhado a limpeza da área e que o corte das árvores faz parte do procedimento para recuperação do solo.
“Fizemos uma visita ao território de Mercês e não identificamos manchas de óleo a olho nu. Também coletamos água e os resultados de contaminação foram negativos”, esclareceu.
Procurada pela Pública, a Petrobras informou que o material vazado “ficou contido exclusivamente em áreas internas da refinaria” e que “não foi constatada presença de óleo” nas inspeções feitas junto com profissionais da agência ambiental no rio Tatuoca, que margeia a comunidade de Mercês.
Apesar disso, os moradores do quilombo, profundos conhecedores do terreno onde habitam há gerações, dizem que os sinais de contaminação, como peixes mortos sem causa aparente, estão se espalhando. Eles temem o escoamento do óleo para outras áreas, caso o material não seja removido do mangue até o período de chuvas, que começa em janeiro.
Agora, a ameaça vem do oceano
“O governo de Pernambuco e a Petrobras se apressaram em dizer que nossa comunidade não tinha sido prejudicada no incidente da refinaria Abreu e Lima, mas fomos! Agora, outro vazamento nos ameaça. Estamos ilhados por dois derramamentos de óleo”, resume, em tom indignado, o líder comunitário do quilombo, Magno Araújo.
Ele se refere às imensas manchas de petróleo que começaram a surgir no litoral nordestino no final do mês de agosto, quase que simultaneamente ao incidente na refinaria. No dia 2 de setembro, as primeiras porções de óleo apareceram nas praias da região metropolitana do Recife. Em Suape, o vazamento da operação da Petrobras chegou a ser apontado como responsável. Porém, após análises, a CPRH concluiu que os materiais tinham composições diferentes.
Em dois meses, o derramamento de petróleo cru no mar já contaminou mais de 280 localidades no litoral brasileiro, sem que suas causas tenham sido explicadas. O caso já é considerado o maior desastre ambiental litorâneo do país. Somente em Pernambuco, mais de 1,5 mil toneladas de óleo foram retiradas das praias até agora, de acordo com a Secretaria de Meio Ambiente.
Para os quilombolas, o material tóxico, que tem hidrocarbonetos cancerígenos, começou a aparecer no último dia 20 de outubro. As manchas de óleo atingiram as ilhas de Tatuoca e Cocaia, dentro do território tradicional.
A reportagem foi até o local onde o governo de Pernambuco, por meio do porto de Suape, instalou barreiras de contenção para evitar que o material avance pelo rio Tatuoca e chegue ao mangue. O ponto é bem próximo das casas do quilombo. A bordo do pequeno barco do pescador Aldemir Minervino, de 38 anos, conhecido como Jessé, leva-se 15 minutos do núcleo de moradias até lá.
A barreira flutuante foi posta no dia 19 de outubro. Ela está em um local onde o Estaleiro Atlântico Sul, uma das indústrias de peso de Suape, construiu uma estrada, o que barrou o fluxo das águas no estuário do rio Tatuoca. O mangue e o rio estão de um lado do acesso viário, do outro está o mar. As boias de contenção do óleo ficaram do lado do mar, junto aos canos que passam por baixo da estrada, para que a água possa escoar.
“Quando a maré enche, a vazão da água suga as boias para os canos e elas afundam”, contou Jessé, questionando se a barreira é mesmo eficaz, uma vez que submerge de tempos em tempos.
O próprio Ibama reconheceu a ineficácia das barreiras de contenção em estuários como o do rio Tatuoca, porque o petróleo afunda na água doce, menos densa do que a salgada. Em seu site, o órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente informou que é difícil detectar o óleo derramado no litoral por satélites ou prever sua trajetória. Além disso, afirma que as barreiras são eficazes em correntes com velocidades de até 1 nó, ou 1,8 quilômetro por hora. “A vazão dos rios é muito superior”, diz o site.
Esses sistemas de proteção, embora não sejam eficientes, têm sido a única solução apresentada até agora pelos órgãos oficiais para reduzir os impactos da tragédia no Nordeste. Assim, em Pernambuco, rios como o Mamucabas e Persinunga, no litoral sul, já foram contaminados, além de pelo menos quatro áreas de mangue, de acordo com os balanços divulgados pela Secretaria de Meio Ambiente e a Marinha.
“Não sabemos se aqui isso também está acontecendo. Se o petróleo está passando por debaixo da barreira para local onde pescamos”, ponderou Magno Araújo. O problema é que, quando chega ao mangue, o óleo se torna mais difícil de limpar porque parte se mistura com a lama e não fica visível, segundo o professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco (UPE) Clemente Coelho. “O mangue é berçário de espécies. Se o mangue de Mercês já foi contaminado, os danos aos ecossistemas podem perdurar por anos”.
A agência ambiental estadual informou que está monitorando os poluentes nos locais atingidos e que fará um “teste para identificar hidrocarbonetos na água da região na próxima semana”.
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Boias de contenção do óleo foram colocadas neste local -
Barramento construído pelo estaleiro impede o fluxo das águas na foz do rio Tatuoca
“Podemos estar sendo contaminados sem saber”
O derramamento de petróleo nas praias é mais uma ameaça para os pescadores de Mercês. No entanto, todos os entrevistados pela Pública disseram que continuam pescando porque não têm certeza se os crustáceos e peixes estão contaminados.
“A gente sabe que alguns crustáceos, que são pescados pela comunidade no mangue, tiram a impureza do mar, como as ostras e os mariscos. Eles absorvem a impureza para si”, analisou Magno Araújo. O medo da intoxicação e a falta de informações claras tem prejudicado as vendas de pescados no litoral pernambucano.
Mesmo assim, nenhum dos pescadores do quilombo está entre os beneficiados com um seguro-defeso para áreas atingidas, anunciado pelo governo federal. Dos mil pescadores pernambucanos, apenas 400, que fazem parte da pesca da lagosta, terão direito ao valor de um salário mínimo.
O derramamento de óleo na costa pode acabar de vez com a pesca em Mercês, que já está difícil. Antes das instalações das fábricas em Suape, em um dia a pescadora Marinalva catava até 8 quilos de aratu (uma espécie de crustáceo) do mangue. O quilo do produto é vendido atualmente por R$ 45. “Aqui tinha cada ostra enorme. Tinha siris, muito caranguejo, mariscos. Está sumindo tudo por causa da poluição. Tem dia que a água chega a ficar prateada dos produtos que as fábricas jogam”, conta.
“A gente só voltava com o samburá [cesto de cipó para guardar os peixes] cheio. Essa semana saí às 23h30 e voltei às 4h com três peixes pequenos”, narra o pescador Jessé, contando que muitas vezes pega um ônibus para pescar a 20 quilômetros da sua comunidade, onde ainda precisa alugar um barco.
Águas e mangues estão contaminados. Os solos e o ar também. “Quando as indústrias soltam muitos gases, meu menino fica alérgico. A gente sente o mau cheiro”, conta Alda Maria, de 42 anos, mãe de Carlinhos, de pouco mais de 1 ano. Ela também desenvolveu problemas respiratórios, que atribui aos poluentes.
O marido dela, Carlos Aquino, de 47 anos, trabalha como vigia mas complementa a renda de um salário mínimo com a pesca. Eles não têm plano de saúde e moram em uma casa a 100 metros da refinaria Abreu e Lima. “Não queremos sair daqui porque é nosso direito”, afirma Alda.
A água que a família bebe vem de um poço. É o mesmo sistema usado na maioria das casas do quilombo. “Os derramamentos de óleo e de tóxicos no terreno podem contaminar lençóis freáticos, chegando aos poços, cacimbas e às plantações”, alerta o engenheiro agrônomo Marlon Araújo. Ele diz que ainda não foram feitos testes para checar o nível de toxicidade das águas e do solo do quilombo.
Silenciados diante da degradação constante de suas terras, os moradores de Mercês estão sendo esquecidos também na tragédia do petróleo que aflige o Nordeste. “Não sabemos se o petróleo chegou no rio e no mangue. Nem fomos orientados por nenhuma autoridade sobre o que fazer se isso acontecer. Podemos estar sendo contaminados sem nem saber.” , denuncia Marno Araújo.
Ineficiência agrava o desastre
A ineficiência nas ações de contenção do petróleo derramado no mar só aumenta o tamanho do desastre. O governo federal demorou 41 dias para acionar o Plano Nacional de Contenção (PNC) do óleo e até agora não há protocolos oficiais que orientem a limpeza nos manguezais e nos rios contaminados.
“Temos cobrado do Ibama que defina esse protocolo. É necessário que se faça um trabalho de mergulhadores e bombas de sucção para fazer a coleta em estuários”, apontou o secretário de Meio Ambiente de Pernambuco, José Bertotti. O secretário comentou ainda que, como o governo federal ainda não conseguiu identificar a fonte causadora do problema, há “uma grande incerteza se o vazamento terminou”.
O biólogo e professor da UPE Clemente Coelho explicou que os protocolos de limpeza são estabelecidos por comitês de planos de ação. O especialista lembrou que, em abril deste ano, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) extinguiu o comitê responsável por articular medidas em casos de desastres com óleo. “Assim, a contaminação nos estuários não foi evitada.”