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Reportagem

“Instável”: Um ano de ensino remoto nas escolas estaduais de São Paulo

Conexão lenta, falta de recursos e número alto de abandono escolar marcam o primeiro ano de ensino remoto durante a pandemia

Reportagem
11 de junho de 2021
15:00
Este artigo tem mais de 3 ano

Desde março de 2020, por conta da pandemia de coronavírus que fechou as escolas, a internet, que antes era material de apoio para as aulas, se tornou essencial para a educação. Em abril, sob a incerteza de por quanto tempo as medidas de isolamento social ainda iriam durar, a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo (Seduc) lançou o aplicativo Centro de Mídias [CMSP] para os alunos acessarem videoaulas com atividades. Em maio, se tornou possível usar o aplicativo mesmo sem conexão de internet.

Mas, segundo professores e alunos ouvidos pela reportagem, nem tudo foi tão fácil quanto parecia. Conseguir internet para baixar o aplicativo e entrar em contato com a escola para conseguir fazer o cadastro no Centro de Mídias seria apenas o primeiro passo para se reconectar aos estudos. As aulas se tornaram multiplataforma, e WhatsApp, redes sociais, Google Sala de Aula, Meet, Zoom e Microsoft Teams para videochamadas passaram a ser usados na rotina dos estudantes. Para todos eles, a conexão à internet continuou necessária. 

Em outubro, a secretaria anunciou a distribuição de 750 mil chips para alunos e profissionais da educação da rede estadual – 500 mil para os alunos a partir do 8° ano do ensino fundamental ao ensino médio e 250 mil para professores, coordenadores e direção escolar. Os chips começaram a ser distribuídos em janeiro deste ano, apesar do informe que dizia que eles chegariam  “nas Diretorias de Ensino e escolas, entre os meses de novembro e dezembro” de 2020.

Segundo dados fornecidos pela Seduc à Agência Pública, a quantidade de chips daria suporte para 15% do total de 3.325.149 alunos da rede, e o governo paulista gastou R$ 75 milhões para manter o benefício durante um ano. 

“É um processo longo, tem que fazer um cadastro, esperar um prazo, os chips chegam por lotes e não são distribuídos para todos, né? Temos alunos trabalhadores, alunos do EJA [educação de jovens e adultos], que não foram contemplados com esse chip. Então, os que têm mais dificuldade de permanecer nas aulas são esses alunos adultos que trabalham e que não têm acesso à internet em casa ainda. Às vezes têm acesso à internet básica, que não permite abrir arquivos mais pesados”, diz Jan Alves, 38 anos, professora da rede há 14 anos. Atualmente, Jan trabalha na Escola Estadual Rotary, em Guarulhos (SP), e durante a pandemia se tornou PAT (professora de apoio tecnológico).

Para ter direito ao chip, os alunos precisam ser cadastrados no CadÚnico, programa do governo federal para famílias de baixa renda que dá acesso a benefícios como o Bolsa Família. Pode ter CadÚnico quem tem renda mensal de meio salário-mínimo (R$ 550 por pessoa) ou cuja renda mensal familiar seja de até três salários-mínimos (R$ 3.300).

Ou seja, mesmo em situação de pobreza ou extrema pobreza, se os responsáveis ou o próprio estudante não tiverem cadastro no programa, as chances de receber o chip diminuem. Além disso, cerca de 641.496 alunos dos anos iniciais (do 1° ao 5° ano escolar), além do 6° e 7° ano dos anos finais, não têm direito à medida que visa garantir a conexão para os estudos. 

Os alunos que conseguem o acesso fazem o uso de 3 GB de internet por mês pelo chip. Esse valor simboliza a quantidade total do pacote de dados. No entanto, a analista de dados Gabriela Marin, responsável pela coordenação do Mapa interativo: conectividade na educação do NIC.Br chama atenção para a qualidade da conexão dessa internet gratuita. “Quando a gente vai olhar a qualidade da internet, não importa muito quanto a pessoa pode acessar ao longo do mês, importa a velocidade. Para você conseguir assistir um vídeo satisfatoriamente você tem que ter uma velocidade de download de pelo menos 3,44 a 8,25 megabytes por segundo. Então não basta você garantir aquele volume de dados se a conexão não atende uma velocidade satisfatória para assistir vídeos ou fazer atividades.” Gabriela explica que mesmo com uma grande quantidade de GB, se a velocidade da internet não for boa, os estudantes não conseguem ter uma experiência satisfatória de conexão. “O vídeo começa a travar, a dar problema. Quando falam ‘minha internet está lenta, fica travando’, muitas vezes tem a ver com a latência [tempo de resposta da internet]”, explica. 

Falta equipamento 

O tempo entre entender a matéria e fazer as atividades mais do que dobrou para alguns estudantes. Estefany Karolainie, de 12 anos, diz que tem levado mais de uma semana para fazer o que antes era feito em uma aula de duas horas. “Hoje eu fiz a lição de artes, tenho outras pra fazer, mas cada dia eu pego uma. Porque não sou só eu, entende? Quando minha mãe precisa, ela sai e leva o celular. Fico mais tranquila porque eles deram o chip, o que complica é o meu celular.” Ela diz que em um aparelho tem acesso ao Google Sala de Aula, no outro ao Centro de Mídias e ao WhatsApp. 

Sua mãe cuida sozinha dela e de mais dois filhos, de 3 e 17 anos. Atualmente desempregada, as saídas geralmente são para a busca de emprego, e a renda – não fixa – do mês não dá conta de comprar um aparelho novo para a filha. 

Em 2020, alguns meses se passaram até ela conseguir fazer o cadastro no Centro de Mídias e no Google Sala de Aula. Estefany não se lembra precisamente de quanto tempo passou sem conseguir fazer as atividades, mas, desde que conseguiu acesso aos aplicativos até agora, a divisão entre celulares e o tempo sem cadastro, as tarefas antigas se acumulam e ela se divide aos poucos para completá-las. As atividades dos dois aplicativos são complementares, mas a escolha de qual tarefa fazer depende do celular que não travar. Estudante do 8° ano da Escola Estadual Rotary, a adolescente recebeu auxílio da professora Jan Alves. “Realmente, no celular dela não baixa nada, nada. Eu já peguei, pedi pra ela ir à escola. Ela sempre me manda mensagem porque quer fazer as atividades do Classroom [Google Sala de Aula], mas não tem como porque o celular dela não aguenta e o da mãe não tem mais memória pra baixar.” 

Ensino híbrido com lacuna na proteção e remoto com dificuldade na conexão 

A busca da proteção ou da garantia do acesso à educação dividiu os estados em suas formas de garantir a aprendizagem. Até o momento, no país 13 estados continuam no ensino remoto emergencial e os outros 14 estados aderiram ao ensino híbrido/semipresencial. Mato Grosso do Sul aderiu ao modelo híbrido, mas precisou voltar atrás em menos de três meses. No dia 9 de março, o governador suspendeu as aulas presenciais porque o estado registrava 67% de aumento de óbitos por Covid.

O conflito entre o híbrido e o presencial se repete nos outros estados. Minas Gerais, que também aderiu ao semipresencial, só conseguiu que 25% das escolas seguissem os protocolos para o retorno. Ainda no Sudeste, o governador do Rio de Janeiro contrariou o secretário de Educação e deu aval para que as aulas seguissem no modelo semipresencial. Já no Sul, em Santa Catarina 74% das escolas conseguiram se reorganizar no semipresencial, mas cerca de mil servidores foram afastados por estarem infectados por coronavírus. As formas de contágio vão além dos muros protegidos e protocolados das escolas. 

Dos estados que aderiram ao ensino semipresencial, São Paulo e Ceará são os únicos que já disponibilizaram os chips com acesso gratuito à internet. No Ceará, 338 mil chips com 20 GB de internet foram distribuídos de dezembro de 2020 a janeiro deste ano para alunos dos ensinos fundamental e médio. Os dados mais recentes do Censo Escolar mostram que o estado tem 426.230 alunos matriculados na rede [exceto creches e pré-escolas]. A distribuição de chips cobriu, por sua vez, 79,2% da rede, com um custo de R$ 29 milhões. 

Alunos e professora relataram à reportagem dificuldades para acessar o aplicativo Centro de Mídias

Governo federal

Maria Helena Guimarães de Castro, presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE) e ex-secretária de Educação de São Paulo entre 2007 e 2009, avalia que a atuação do governo paulista é menos grave neste momento, apesar de a cobertura não chegar nem à metade dos alunos da rede. Na sua opinião, o maior problema é a falta de atuação do governo federal. “Até hoje o governo não conseguiu usar os recursos do Fust [Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações] para garantir a conectividade de todas as escolas. O Fust tem mais de R$ 30 bilhões parados que poderiam ser destinados para a requisição destes equipamentos para os alunos vulneráveis e professores também, mas isso não está sendo feito.” 

O fundo foi criado em agosto de 2000 e teve atualização sancionada por Bolsonaro no final do ano passado. Com as mudanças, o investimento em áreas rurais ou urbanas com baixo índice de desenvolvimento humano (IDH) não é mais obrigatório. O repasse de 18% do orçamento para educação também deixa de ser responsabilidade do Fust. Na prática, o fundo não prioriza mais as regiões com desigualdade de acesso à internet. 

As novas medidas começaram a valer em janeiro deste ano (Projeto de Lei aprovado na íntegra), mas em junho o Congresso derrubou a alteração no repasse em educação e com isso garantiu que R$ 3,5 bilhões do fundo sejam inseridos para medidas que ampliem o acesso à internet na educação pública brasileira. 

Novas propostas de universalização da conectividade também foram inseridas, como compra de tablets para estudantes do ensino médio e garantia de 20 GB de internet para todos os alunos e professores, mas dependem da aprovação do PL 3.477/2020.

Mas mesmo antes, valendo-se da regra de que 18% dos recursos seriam destinados para a educação, as despesas publicadas no Portal da Transparência mostram que não houve nenhum repasse do Fust para a educação em 2020. Dos R$ 428 milhões gastos (valor liquidado), R$ 409 milhões foram repassados da reserva de contingência para financiamento de projetos do Conecta Brasil. Já em 2021, com as alterações em vigor, nenhum valor de orçamento foi divulgado até a publicação da reportagem. 

Na Escola Estadual Indígena Penha Mitangwe Nimboea, na Aldeia Renascer Ywyty Guaçu, em Ubatuba, interior de São Paulo, o chip até chegou, mas a rede das operadoras não. Para trabalhar, o professor Donizete Machado da Silva, Aridju, que dá aulas de língua e cultura indígena para crianças do 3° ao 5° ano do ensino fundamental, precisou contratar fibra óptica e comprar um novo celular e um notebook. 

Os demais professores da aldeia continuaram as aulas e a alfabetização das crianças em esquemas de revezamento presencial, já que todos moravam próximos e no mesmo centro de isolamento. O ensino ficou mais individualizado e em formato de oficinas, e não foi possível colocar em prática o currículo antes previsto, tanto em 2020 quanto em 2021. Todos da aldeia já estão vacinados e a expectativa era conseguir usar os computadores e rede de internet da escola, mas, apesar de o modelo híbrido vigorar no estado de São Paulo, as escolas das aldeias não retornaram por medida da Funai

“Com o abre e fecha [plano de reabertura], você não consegue segurança pra falar ‘isso eu começo hoje e vou terminar no final do ano’. Todo dia o professor é quebrado. Se o aluno aprendeu ou não aprendeu, no sistema está apresentando que a gente deu o conteúdo. Falam que ‘a educação escolar continua’, mas demos muitos passos pra trás, porque a gente não vê quem está fazendo para o aluno, se é a mãe, se é um amigo, se é ele mesmo. Como eu avalio o aluno através dessas fichas?”, questiona Donizete.

Estefany Karolainie, estudante de 12 anos: “hoje eu fiz a lição de artes, tenho outras pra fazer, mas cada dia eu pego uma. Porque não sou só eu, entende? Quando minha mãe precisa, ela sai e leva o celular”

Covid-19, internet e alfabetização

Em Caçapava (SP), na Escola Estadual Ministro José de Moura Rezende, a morte de uma professora e de sua mãe em fevereiro deste ano por Covid-19 abalou emocionalmente os colegas, que ficaram com medo de voltar ao ensino híbrido, lembra o professor Alexandre Euzébio Torres, que dá aulas de inglês e projeto de vida no ensino fundamental II. Antes de 2020, ele dava aulas em três instituições para completar a carga horária. Neste ano, o orçamento precisou de reforço para a compra de um notebook que desse o suporte necessário para a quantidade de arquivos das 13 salas para que dá aula. 

O financiamento de 50% dos R$ 3.700 do aparelho veio do projeto Professor Conectado, da Seduc. São 24 parcelas (dois anos) de R$ 90 financiadas pelo estado. Para o pagamento ser feito é preciso fazer cursos da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores, que demandam 30 horas de dedicação. Em relação ao tempo de trabalho a mais, Alexandre conta que encara como algo necessário, principalmente pela mudança que vê em seu papel. “O papel do professor é preponderante para o engajamento do aluno no ensino híbrido. O professor tem que ser mais que um professor, e agora nesses tempos de pandemia ele é muitas vezes o psicólogo do aluno. A relação com o aluno e com a família é muito potencializada, então você se depara com situações que o estudante deixou de frequentar porque perdeu algum ente querido, o pai que perdeu o emprego. Fazer esse aluno perceber que ele não é só um número na escola é parte importante do processo para o seu desenvolvimento socioemocional e cognitivo.” 

A voz rouca de Glaucea Aparecida Martins Salemme também demonstra o cansaço. Em mais de duas décadas de trabalho como professora, a sua escolha de atuação foi a alfabetização. Na Escola Estadual Paulo Sinna, suas turmas são os alunos de 7 a 11 anos (do 1° ao 5° ano), mas durante o último ano a turma deixou de ser composta apenas pelas crianças e passou a ser também de pais dos alunos. Com os pais saindo cedo e voltando tarde do trabalho, as aulas ao vivo não foram uma opção para as crianças. A preocupação dos professores é que os pais cedam pela exaustão e as crianças desistam de estudar. “A gente não consegue delimitar muito o tempo [de trabalho] e fica naquela ânsia: ‘Se eu não respondo àquela família, ele vai deixar de aparecer na aula e aí eu perco essa criança de vista”, desabafa. 

Todas essas medidas de exceção que acabaram virando a regra há mais de um ano já mostram consequências. Em novembro de 2020, no Brasil 5,1 milhões de alunos entre 6 e 17 anos deixaram de estudar, é como se toda a população do Distrito Federal e do Paraná somados tivesse desistido da escola. 

Relatório do Unicef mostrou ainda que as crianças de 6 a 10 anos pretas, pardas e indígenas estão sendo as mais afetadas pela exclusão escolar. Dos 5,1 milhões de alunos que deixaram de estudar em 2020, 41% tinham de 6 a 10 anos e destes 69% são negras ou indígenas. 

Nos demais anos letivos, a evasão seguiu entre 27,8%, com os alunos de 11 a 14 anos, e 31,2%, de 15 a 17 anos. Na soma dos desafios para o trabalho com ensino infantil, o investimento federal em educação básica continuou em queda no ano de 2020, como mostra o Portal da Transparência

“O burocrático do fazer pedagógico é que acaba cansando muito, não é o aluno. Quando o professor gosta e é comprometido, se o aluno manda uma mensagem, uma foto de atividade que ele fez, a gente fica superfeliz. Mas a questão da demanda, tantas planilhas pra responder, porque tudo que a gente faz a gente tem que justificar: a falta da criança, se você foi atrás da família, qual foi o retorno. É planilha disso, planilha daquilo. Na minha visão, isso acaba massacrando um pouco”, diz Glaucea. 

Só quando voltar

Essas novas etapas do ensino remoto emergencial fizeram Maria Aparecida da Costa, 47 anos, desistir de concluir o EJA. Desde março de 2016, a rotina depois do trabalho incluía a ida à Escola Estadual Professora Lygia de Azevedo, cerca de 40 minutos da sua casa, em Osasco. “Eu tranquei porque vi que não ia valer a pena, eu não ia ter disciplina, e daquela turma que eu estava todos foram aprovados. Tem umas amigas minhas, colegas que eu sempre falo, e elas disseram que não fizeram nada. Sabe o que é nada? Só no finalzinho eles deram uma prova bem fácil e foram aprovados”, conta. 

O celular próprio e a internet estavam estáveis, o que frustrou Maria Aparecida foi lidar com os novos aplicativos. Era preciso reenviar a mesma atividade duas ou três vezes para que o professor conseguisse receber através do Google Sala de Aula, e nem sempre o retorno vinha, apesar de o professor ter publicado a atividade com a correção. Mas pior foi perder a vida social: “Eu não tinha muitas amizades, na verdade eu não tinha amizade nenhuma, quem vinha na minha casa era apenas minha família. Aí quando voltei [a estudar] tive muitas amigas que até hoje muitas se mantêm. Nossa, foi uma fase muito boa”, lembra. Quem a acompanhou no trancamento da matrícula foi a filha mais nova, Gabriela, 15 anos, que iria começar o ensino médio em 2020. A filha mais velha, Bianca, 17 anos, concluiu o terceiro ano do ensino médio em 2020 no modelo remoto. Gabriela retornou à escola em 2021, mas Maria Aparecida diz que só retoma quando as aulas voltarem “ao normal”.

Infografista:

Essa reportagem é resultado das Microbolsas Acesso à Internet realizada pela Agência Pública e o Idec. A 13ª edição do concurso selecionou jornalistas para investigar os diferentes aspectos desse tema no Brasil.

Divulgação/MCTIC

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