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Governo do ex-presidente negou dados públicos até últimos dias e manteve sigilo sobre os R$ 79 mi do cartão corporativo

Reportagem
6 de janeiro de 2023
11:28
Este artigo tem mais de 1 ano

Informações sigilosas, trabalho adicional e risco à segurança do presidente: essas foram algumas das justificativas usadas nos últimos dias do governo de Jair Bolsonaro para negar acesso a dados públicos pela Lei de Acesso à Informação (LAI). Segundo apuração da Agência Pública, alguns dos temas mais sensíveis ao antigo governo — como os gastos do cartão corporativo e os registros de entrada no Palácio do Planalto — seguiram sob sigilo até o fim de 2022, através de decisões que ainda precisam ser revertidas pela atual gestão.

De acordo com despacho assinado no primeiro dia útil de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) determinou “a adoção de providências pelo Ministro de Estado da Controladoria-Geral da União, no prazo de trinta dias, para revisão de atos que impuseram sigilo indevido a documentos de acesso público”. A medida é uma das promessas de campanha do petista, que se comprometeu a reverter decisões administrativas do governo anterior que negaram o acesso a dados públicos pela Lei de Acesso à Informação (LAI).

Reprodução de conversa no Twitter que Bolsonaro responde sobre o sigilo de cem anos sobre alguns assuntos de seu governo.
Durante seu governo, Bolsonaro impôs sigilo de 100 anos sobre documentos referentes a ele e seus aliados

A abertura dos dados, contudo, precisará passar pela decisão de órgãos que têm mantido os entendimentos da gestão de Bolsonaro. É esse o caso do Comando do Exército, que continuou com o sigilo sobre o processo administrativo do ex-ministro da Saúde e atual deputado federal Eduardo Pazuello (PL) . Segundo apuração do Estadão, um recurso de pedido de acesso à informação, respondido em janeiro deste ano, bloqueou novamente o acesso aos documentos que compõem o processo.

A Pública também vem requisitando os documentos desde 2011 através da LAI, apesar de sucessivas negativas do Exército. No final de 2022, contudo, o órgão enviou um extrato do processo, que confirma a decisão do Comando do Exército de acolher as justificativas de Pazuello e de arquivar o procedimento.

Segundo os dados enviados pelo Exército, o julgamento de Pazuello, que participou de um ato político em maio de 2021 sem autorização do comandante, se deu em prazo curtíssimo. A defesa do general foi apresentada em uma quinta-feira, dia 27 de maio de 2021. Em cinco dias úteis, no dia 2 de junho, o Comando já havia acolhido a defesa e decidido pelo arquivamento. No dia seguinte, 3 de junho, a decisão favorável a Pazuello já estava publicada pelo Centro de Comunicação do Exército.

Na imagem, Eduardo Pazuello fala ao microfone.
Exército absolveu Pazuello após cinco dias úteis em processo sigiloso

Secretaria da presidência de Bolsonaro diz não ter registrado reuniões

Além da mudança de decisões sobre o que está sob sigilo, o governo Lula também precisará lidar com outra questão: há dúvidas se dados estratégicos foram ou não registrados devidamente durante o governo Bolsonaro — ou se podem ter sido apagados.

A reportagem da Pública requisitou através da LAI os registros de atas de reuniões da Secretaria de Assuntos Especiais (SAE) nos últimos dois anos. No dia 2 de janeiro, a resposta enviada dizia que “nos anos de 2021 e 2022, a agenda da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos foi composta por visitas de cortesia, não constando reuniões”.

A SAE é um dos principais órgãos da Presidência. Dentre as atribuições, estão formular políticas e estratégias nacionais de longo prazo e assistir o presidente da República em contatos com autoridades ou personalidades internacionais.

A SAE de Bolsonaro foi chefiada desde março de 2021 pelo almirante Flávio Augusto Viana Rocha. O militar, próximo do ex-presidente, era considerado um “chanceler paralelo” do Governo Federal devido à sua grande participação em missões de diplomacia internacional.  

Além disso, de acordo com reportagem do O Globo, três ex-assessores suspeitos de fazer parte do “Gabinete do Ódio” integraram a SAE a partir de um decreto de Bolsonaro de 2020. O Gabinete do Ódio é o nome dado a um grupo de assessores de Bolsonaro que coordenavam perfis em redes sociais de apoio ao ex-presidente e que seriam comandados pelo filho Carlos Bolsonaro, vereador do Rio de Janeiro (PL).

“É real o receio que o governo anterior não tenha dado a importância devida ao registro de dados públicos”, comenta Maria Vitória Ramos, co-fundadora e diretora da agência de dados independente e especializada na Lei de Acesso à Informação Fiquem Sabendo. 

Ela explica que agentes públicos não podem se negar a registrar informações de compromissos oficiais, como reuniões, ou dados de execução de políticas públicas, e será importante que o governo Lula investigue o que foi produzido — e o que não foi — em relação a esses dados. “Colocamos essa questão no documento que enviamos à equipe de transição: um dos primeiros passos seria fazer uma auditoria no sistema eletrônico de informação do governo e em outras bases de dados, pois, de fato, o governo anterior demonstrou em muitos momentos um descuido ou a intenção deliberada contra a transparência pública”, avalia.

Para Ramos, o prazo do governo Lula de avaliar os sigilos de Bolsonaro em 30 dias é até otimista, tendo em vista que os ministérios e órgãos ainda estão sendo montados. Além disso, ela comemora muitas das decisões de transparência desse início de governo, como a criação da primeira Secretaria de Acesso à Informação, apesar de apontar ressalvas. 

“Ela é muito importante do ponto de vista estrutural, pois a LAI é hoje, ao meu ver, a principal ferramenta de democracia participativa e de transparência pública no país. Por outro lado, a secretaria ficou separada [em outro departamento] das outras ferramentas da LAI, que são a transparência ativa e passiva, o Portal da Transparência e o governo aberto e dados abertos. E eles serem articulados em conjunto é importante”, aponta.

Os R$ 79 milhões sigilosos do cartão corporativo

Um dos principais segredos trancados a sete chaves pelo governo Bolsonaro são os gastos do cartão corporativo. A Pública vem solicitando detalhamento sobre as despesas do cartão da Presidência durante toda a gestão de Bolsonaro, que não permitiu o acesso aos dados.

O último pedido, respondido em dezembro de 2022, classificou a informação como reservada e sob sigilo até o término do mandato do ex-presidente, por estar dentro da categoria de informações que podem colocar em risco a segurança do presidente e do vice. Além disso, a Secretaria-Geral da Presidência da República se limitou a orientar que os dados fossem buscados no Portal da Transparência.

O problema é que, atualmente, o Portal da Transparência não informa detalhamento de gastos de vários usuários do Cartão de Pagamento do Governo Federal. Dentre esses usuários sigilosos, estão a Secretaria Especial de Administração da Presidência, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o gabinete da Vice-Presidência da República e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Reprodução de tabela de gastos do cartão corporativo de Bolsonaro que são mantidas sob sigilo no Portal da Transparência.
Gastos do cartão corporativo de Bolsonaro são mantidos sob sigilo no Portal da Transparência e governo recusa-se a responder via Lei de Acesso

Segundo a Pública levantou, ao todo, esses quatro órgãos da Presidência já gastaram R$ 79,5 milhões desde 2019 em valores sigilosos. Só em 2022, último ano do governo de Bolsonaro, foram R$ 24 milhões em gastos sob sigilo.

De acordo com uma auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), ao qual a Revista Veja teve acesso, entre janeiro de 2019 e março de 2021, o governo Bolsonaro teria gasto cerca de R$ 21 milhões no cartão corporativo. A maior parte dos gastos estaria relacionada a viagens de Bolsonaro e Mourão: R$ 16,5 milhões, que englobariam hospedagem, alimentação e apoio operacional. Em agosto de 2022, Jair Bolsonaro disse em entrevista ao Programa Pânico da Jovem Pan que nunca usou o cartão corporativo.

Os visitantes secretos do Palácio do Planalto

A lista de entrada no Palácio do Planalto é outro tema sensível mantido sob sigilo por Bolsonaro. A Pública, assim como diversos outros veículos de imprensa, vem requisitando os registros de entrada e saída nas dependências do Palácio e órgãos anexos durante todo o governo Bolsonaro. A lista completa, contudo, tem sido negada com a justificativa de que ela contém informações classificadas. 

Um dos pedidos feitos pela Pública, respondidos em dezembro do ano passado, foi negado com essa justificativa. Segundo a Presidência da República do governo Bolsonaro, seria desproporcional e desarrazoado separar na lista de pessoas que entraram no Planalto os nomes que estivessem dentro do grupo de informações classificadas. O governo respondeu apenas a pedidos feitos sobre pessoas específicas, como o ex-ministro Pazuello, que esteve no Planalto apenas duas vezes em 2022, segundo os registros.

O sigilo da lista completa de visitantes do Planalto impede saber, por exemplo, a entrada de lobistas de empresas privadas, como fabricantes de armas. 

Durante o governo Bolsonaro, o GSI chegou a usar a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) para negar pedidos de informação sobre as visitas do Planalto. Essa justificativa chegou a ser usada para barrar pedidos sobre a entrada dos pastores envolvidos no escândalo de desvio de recursos do Ministério da Educação (MEC) para prefeituras. Mais tarde — e após manifestação da Controladoria Geral da União (CGU) — o governo voltou atrás e divulgou os dados.

Colaboração:

Esta reportagem pertence ao especial Caixa-Preta do Bolsonaro – viabilizado graças ao apoio de milhares de leitores – que revela os potenciais crimes e abusos cometidos pelo governo Bolsonaro que ficaram escondidos por trás de sigilos, negativas e outras táticas de sonegação de informação. A cobertura completa está no site do projeto.

Reprodução Twitter
Anderson Riedel/PR
Reprodução

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