Buscar
Coluna

Os incentivos fiscais bilionários para a soja e o dilema da reforma tributária

Estudo estima que a cadeia produtiva do grão teve o dobro da desoneração prevista para a cesta básica

Coluna
20 de outubro de 2023
06:00

Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Antes que seja tarde, enviada às quintas-feiras, 12h. Para receber as próximas edições, inscreva-se aqui.

Em meio à tramitação da reforma tributária no Congresso, em que vários setores vêm tentando puxar a brasa da isenção fiscal para sua sardinha, um estudo divulgado nesta quinta-feira (19) buscou mostrar o tamanho das benesses que já são concedidas hoje a apenas um ramo do agronegócio: a cadeia produtiva da soja.

O trabalho estimou que a renúncia fiscal para a produção da commodity foi de R$ 57 bilhões em 2022, quase o dobro da desoneração prevista pela Receita Federal para os produtos da cesta básica, calculada em R$ 30 bilhões. (Leia o estudo)

Segundo a análise, toda a cadeia – desde a aquisição de insumos, adubo, agrotóxicos, sementes, passando pelo óleo alimentar, farelo e biodiesel e exportações – é desonerada em 100% das alíquotas de PIS/Pasep e da Cofins e do IPI.

“Além de não arrecadar nada com estes tributos, o setor industrial tem direito a créditos presumidos, que podem ser utilizados no pagamento de outros tributos federais, ou, ainda, permitir que seja solicitado o ressarcimento pelo governo federal. O ‘cashback’ da indústria de soja é bilionário”, ressaltam os autores.

O trabalho, conduzido por ACT Promoção da Saúde, Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), Observatório das Economias da Sociobiodiversidade, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), debate se a elaboração da reforma tributária não é justamente a hora de inverter essa balança.

Já se antecipando aos argumentos de que o setor precisa disso para ser a “locomotiva do país”, os pesquisadores admitem que os benefícios concedidos até hoje foram importantes para que o agronegócio brasileiro se fortalecesse. 

“Em 50 anos de renúncias fiscais ininterruptas e outras políticas públicas de fomento, o Brasil se tornou o maior produtor e exportador mundial do grão”, escrevem. E isso contribuiu para que o setor “conquistasse participação relevante nas principais cadeias globais agroalimentares, gerando divisas para o país e ilhas de riqueza e prosperidade nos territórios onde concentra suas atividades”, apontam os autores.

Sendo assim, já estaria na hora de desmamar, defendem os pesquisadores: “Chegou o momento dos produtores de soja soltarem a mão do Estado brasileiro, que já cumpriu seu papel em apoiar a estruturação do setor. É preciso que o agronegócio assuma seu tamanho e comece a pagar as contas, como qualquer brasileiro adulto”.

Não é nem de longe, porém, o que vem sendo sinalizado pelos lobbies do setor que tentam interferir na reforma tributária. O texto que saiu da Câmara em setembro, por exemplo, prevê que os agrotóxicos podem ter uma tributação reduzida em pelo menos 60%. E também ficariam de fora do chamado Imposto Seletivo, que visa aumentar a tributação de produtos que possam ser danosos à saúde e ao ambiente.

Pelo projeto, também ficariam de fora do Imposto Seletivo os alimentos ultraprocessados – relacionados em um estudo de 2021 da ACT Promoção da Saúde com a morte de 57 mil pessoas por ano no país. Com isso, ambos as categorias de produtos poderiam ser favorecidas com benefícios fiscais.

A ACT encomendou recentemente uma pesquisa ao Datafolha que constatou que 94% dos brasileiros apoiam o aumento de impostos para produtos nocivos à saúde e ao ambiente, como agrotóxicos (64%) e combustíveis fósseis (36%).

“Mas nada na reforma tributária indica sinais concretos de alteração desse quadro dos subsídios para o setor. Pelo contrário. Tudo aponta para um aprofundamento desses benefícios que são descabidos”, me disse o cientista político Marcos Woortmann, coordenador de políticas socioambientais do IDS e um dos autores do trabalho.

As distorções que podem acabar passando na reforma se interesses como esses prevalecerem têm sido apontadas por várias outras instituições. Na semana passada, dezenas de organizações do terceiro setor – todas as que assinam o estudo e outras, como Instituto Ethos, Associação Brasileira de Saúde Coletiva e Oxfam Brasil – entregaram um manifesto ao Senado, onde agora está sendo discutida a reforma, pedindo que ela seja mais justa. É o que chamam de reforma 3S: saudável, solidária e sustentável.

Eles destacaram especificamente as articulações em torno de exclusões do Imposto Seletivo, que, lembram as organizações, “tem a finalidade de aumentar a tributação e desestimular o consumo de produtos que causam prejuízos à sociedade”. 

Para as entidades, os incentivos fiscais deveriam ser voltados para “impulsionar a transição energética, combater a fome com comida de verdade e promover a saúde coletiva”. E não, argumentam, para “fomentar, com alíquota reduzida, o comércio de produtos que vão na direção oposta”. 

A pressão da sociedade civil é para que a reforma inclua elementos que de fato colaborem para a transição ecológica defendida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que sejam convergentes com as ações necessárias para combatermos as mudanças climáticas e que tragam justiça social com proteção ambiental. 

Está prevista para a semana que vem a entrega do relatório da reforma que será votado no Senado. Ainda não se sabe quais emendas o relator, o senador Eduardo Braga (MDB-AM), vai acatar. Mas tem sido difícil imaginar uma reforma verde vingando diante da voracidade da bancada ruralista no Congresso, avessa a qualquer tipo de taxação, a exemplo do que ocorreu com a votação do mercado de carbono.

*

Após a publicação da coluna, André Nassar, presidente executivo da Abiove (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais), enviou um posicionamento sobre o estudo, que compartilho a seguir:

“1. Não foi correto colocar a isenção nas exportações o que, segundo o estudo, dá praticamente metade do valor. Todos os produtos brasileiros são e precisam ser isentos.
2. Todos os demais, isenção de PIS Confins para o produtor rural e crédito presumido à agroindústria, são horizontais para produtor rural e industrialização. Não são específicos para a soja. Eles não deveriam ter separado a soja. Deveriam ter analisado para o agronegócio como um todo. O número dá grande apenas porque a soja é grande, mas, por tonelada, a isenção não difere muito entre setores do agro.
3. O óleo de soja é isento porque é cesta básica. E o farelo é isento porque o pessoal da proteína animal mudou a lei. A nossa indústria prefere vender óleo e farelo tributado porque ficamos com o crédito e não temos o que fazer com ele.
4. Por fim, o biodiesel paga PIS COFINs. Cadê a isenção nesse caso? O biodiesel só não paga PIS/Cofins quando o governo zera para o diesel (combustível fóssil) e o biodiesel vai de arrasto.”

*Atualização às 12:30 de 20/10/2023: Incluímos o posicionamento de André Nassar, da Abiove.

Não é todo mundo que chega até aqui não! Você faz parte do grupo mais fiel da Pública, que costuma vir com a gente até a última palavra do texto. Mas sabia que menos de 1% de nossos leitores apoiam nosso trabalho financeiramente? Estes são Aliados da Pública, que são muito bem recompensados pela ajuda que eles dão. São descontos em livros, streaming de graça, participação nas nossas newsletters e contato direto com a redação em troca de um apoio que custa menos de R$ 1 por dia.

Clica aqui pra saber mais!

Quer entender melhor? A Pública te ajuda.

Aviso

Este é um conteúdo exclusivo da Agência Pública e não pode ser republicado.

Faça parte

Saiba de tudo que investigamos

Fique por dentro

Receba conteúdos exclusivos da Pública de graça no seu email.

Artigos mais recentes