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O mundo já acabou

A socióloga Silvia Viana explica a relação entre o bolsonarismo e o capitalismo da barbárie

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26 de dezembro de 2023
06:00

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Não é todo mundo que pode ter uma irmã como a Silvia. Desde muito pequena, ela mantém na vida a mesma radicalidade (no sentido mais real, aquele da raiz das coisas) que se encontra em sua obra, sendo o seu livro mais conhecido Rituais de Sofrimento, da Editora Boitempo, sobre reality shows e a ética do trabalho.

Em casa, também, a Silvia sempre teve a língua ferina. Uma vez ela me escreveu em um e-mail depois de uma briga familiar dessas banais, sobre um pedaço de bolo em uma festa de aniversário: “pelo menos, quando eu termino de falar, só resta terra arrasada”. Doutra vez, em 2014, negou uma entrevista à revista Veja com um e-mail tão fulminante, que a resposta viralizou nas redes sociais. 

A Silvia escreveu ao pobre repórter: 

“Respondo seu e-mail pelo respeito que tenho por sua profissão, bem como pela compreensão das condições precárias às quais o trabalho do jornalista está submetido. Contudo, considero a ‘Veja’ uma revista muito mais que tendenciosa, considero-a torpe. Trata-se de uma publicação que estimula o reacionarismo ressentido, paranoico e feroz que temos visto se alastrar pela sociedade; uma revista que aplaude o estado de exceção permanente, cada vez mais escancarado em nossa “democracia”; uma revista que mente, distorce, inverte, omite, acusa, julga, condena e pune quem não compartilha de suas infâmias – e faz tudo isso descaradamente; por fim, uma revista que desestimula o próprio pensamento ao ignorar a argumentação, baseando suas suposições delirantes em meras ofensas.

Sendo assim, qualquer forma de participação nessa publicação significa a eliminação do debate (nesse caso, nem se poderia falar em empobrecimento do debate, pois na ‘Veja’ a linguagem nasce morta) – e isso ainda que a revista respeitasse a integridade das palavras de seus entrevistados e opositores, coisa que não faz, exceto quando tais palavras já tem a forma do vírus.

Dito isso, minha resposta é: Preferiria não.

Atenciosamente, Silvia Viana

Desde 2013, a Silvia já acompanhava as manifestações de rua e sua guinada à extrema direita, tendo produzido textos diversos e chegado a conclusões absolutamente originais sobre para onde caminha a coisa toda. Por isso, passamos juntas algumas horas da última terça-feira, ela na varanda do escritório da Agência Pública, fumando um cigarro atrás do outro, pensativa, e eu na mesa de madeira tomando notas. 

A Silvia se lembra, por exemplo, que foi naquela enorme manifestação de 13 de junho de 2013, que ela viu, pela primeira vez, um grupo vestindo a camiseta da seleção. “Eu não fazia a menor ideia do que era aquilo”.  

Faz dez anos, e a gente ainda não entendeu direito o que foi aquilo que é chamado, no Chile, de “estalido social”, e que ela descreve como uma “pulsão social” que estava latente o que aconteceu em 2013. Um grito. 

“As pessoas estavam com muita raiva de alguma coisa difusa pra elas mesmas. Já não suportavam mais aquilo que estavam vivendo”. Faltava – ainda há –, ainda falta uma compreensão mais profunda sobre o que estava na raiz desse grito. Mesmo assim, as pessoas de verde e amarelo que ela viu naquela tarde já apontavam para alguma coisa. 

“Alguma coisa muito errada”, nas suas palavras.  

Foram meses e meses de revoltas difusas, com um governo acovardado e sem a menor ideia de como lidar com aquilo. Meses depois, já em 2014 a Silvia viu, pela primeira vez, um grupinho ali na Avenida Paulista, todos vestidos com roupas do Exército, pedindo intervenção militar. 

Havia também, ali, outra mudança significativa de discurso. 

“A coisa foi ganhando consistência”, diz ela, os olhos pretos, grandes, olhando para a Vila lá embaixo, compenetrados. “Era a coisa dos direitos”. Mas o discurso passara do slogan ‘não é só por cinquenta centavos, é por direitos’ – uma bandeira de esquerda – para outra coisa radicalmente oposta, em apenas um ano: “Eu quero educação padrão FIFA”. 

Foi ali também, nos idos de 2014, que os movimentos de rua começam a se organizar mais consistentemente em torno do tema da luta anticorrupção – ajudados pelos diversos escândalos nas construções dos estádios da Copa. Até então ela não tinha colado. 

“Quem é que quis colocar isso de cara? A Veja, no meio de 2013, fez uma capa que dizia. ‘sim, esse movimento tem sentido, é contra a corrupção, contra a violência’… E tentou puxar pra direita. Mas não pegou”.

A Lava-Jato, lembremos, começou em março de 2014 para jogar mais lenha na fogueira. 

O sentimento, entretanto, seguia o mesmo. “Esse mesmo sentimento só encontrou linguagem, líder, a posteriori. Daí, sim, encontra linguagem, encontra líder, encontra organização também”, diz Silvia. 

Os governos petistas não souberam lidar com essa revolta porque, de um lado, não entenderam de onde ela vinha, depois de anos de programas sociais que beneficiaram grande parte da população. De outro, porque já se vislumbrava um mundo novo, o da desestruturação total do trabalho. “É um dos aspectos que estava se formando num novo mundo. Que vem sendo formado há 20, 30 anos, desde a reestruturação produtiva do capital, acontecendo em várias etapas. Havia três aspectos nos governos petistas: a gestão pela via do trabalho e semi-assistencialista. A política compensatória, de inserção das pessoas no mercado. E o direito à habitação vira um incentivo ao mercado: o Minha Casa, Minha vida é um direito transformado em mercadoria. E o terceiro ponto: a securitização”. 

Ao enfrentar o estado de coisas “gerencial” dos governos petistas, ela raciocina, de fato havia algo de “antidemocrático” já naqueles protestos. 

“Por que antidemocrático? Por causa do que entendemos como democracia. Essa normalidade da ultraexploração do trabalho, da loucura do trabalho cada vez mais cruel, em que cada vez mais você é o gestor de si, o individual, o vencedor”. Ela chama esse discurso de “discurso gerencial”, algo que ela destrinchou no livro Rituais de Sofrimento ao analisar reality shows como O Aprendiz e Master Chef. “Isso é um lado, o mundo do trabalho se tornando cada vez mais cruel. Mesmo que naquele ponto, em 2014, ainda se ganhasse dinheiro trabalhando, diferente de hoje em dia”. 

Estamos falando do fim do mundo pós-Margaret Thatcher, que já prenunciava o avanço do que ela chama de capitalismo de “barbárie”. “Essa casa começa a cair lá em 2014”, diz Silvia.

É onde estamos agora, dez anos depois. 

“A catástrofe já aconteceu. A casa já caiu”.

A conversa seguiu por mais uma hora, mas eu vou parar a coluna por aqui, porque na última edição um leitor me escreveu assim: “Por que esses artigos são tão longos? A gente passa muito tempo lendo”. 

Então, seguimos na próxima semana. 

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