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Na semana passada, olhamos para um copo com um tanto de água e quase todo mundo viu ali um copo meio cheio. A pesquisa da Qaest sobre o 8 de janeiro quantificou: 89% dos brasileiros reprovam atos golpistas de 8 de janeiro e 6% aprovam.
Encontrei só um colunista que viu ali um copo meio vazio, meu amigo Leonardo Sakamoto, a quem sempre acho prudente ouvir. Ele alertou que 6%, calculando assim meio por cima, cerca de 9,5 milhões de pessoas, é muita gente, uma “multidão que pode ajudar a desestabilizar a democracia através da propagação de mentiras, do bloqueio de estradas, da violência civil organizada”.
Eu acrescentaria outro dado da pesquisa: há um ano, eram 94% os que diziam reprovar os atos, ou seja, existem aí possivelmente, sem contar a margem de erro, uns 8 milhões de brasileiros que passaram a achar que o golpismo era, sim, desejável e quiçá necessário.
Prova de que o passado nunca é estanque e de que, quando carregado politicamente como foi nosso Capitólio abrazucado, seu significado e interpretação seguem em disputa. Como, aliás, o Capitólio original, ocorrido em 6 de janeiro de 2021 em Washington, e do qual a invasão da Praça dos Três Poderes foi apenas uma cópia, instigada, insuflada e, ao que tudo indica, orientada pelos mesmos mentores, tais como Steve Bannon, cuja coordenação com Eduardo Bolsonaro nós cansamos de demonstrar aqui na Agência Pública.
Para marcar o 6 de janeiro em ano eleitoral, Joe Biden fez um duro discurso na sexta-feira anterior, afirmando que os republicanos “abandonaram a verdade e abandonaram a nossa democracia”. Foi seu primeiro grande discurso de campanha. No dia seguinte, marcando a data, o presidente americano postou no Twitter (ou “X”, vá lá) um vídeo que mostra Trump elogiando os golpistas do Capitólio, dizendo que “havia amor e unidade” entre os invasores. Assim, Biden demonstrou que pretende levar o atentado à democracia americana como mote principal da campanha. Os aliados de Trump, aparentemente, querem o mesmo.
No mesmo dia, a newsletter de Steve Bannon, à qual eu, infelizmente, submetendo-me aos ossos do ofício, assino e leio, trouxe um artigo do ex-chefe de gabinete do Departamento de Defesa durante a administração Trump, Kash Patel, que dava o tom da linha que será adotada pela candidatura do republicano. Segundo ele, “a narrativa dos democratas sobre o 6 de janeiro está desmoronando, o Estado profundo [deep state] está na defensiva e há uma enorme operação para encobrir corrupção em andamento” – tudo porque o maior temor dos democratas, diz Patel, é a volta de Trump.
Adotando um tom irônico, Patel finaliza o texto com uma pergunta: “Não há chance de o FBI e a mídia estarem conduzindo outra operação de desinformação para manipular as eleições desta vez usando mentiras e sobre a insurreição de 6 de janeiro, não é verdade?”
O texto de Patel dá a senha: os trumpistas já estão preparando uma nova onda de mentiras sobre eleições manipuladas. Sim, veremos isso em 2024.
O mesmo Patel apareceu no podcast de Steve Bannon em dezembro do ano passado explicando que a tchurma de Trump tem planos de perseguir todos aqueles que tentaram frear ou punir o atentado golpista – ele usa, de maneira sórdida, o argumento reverso de que são eles, na verdade, os guardiães da democracia.
“Nós vamos atrás e vamos encontrar os conspiradores – não apenas no governo, mas na mídia… vamos perseguir as pessoas na mídia que mentiram sobre cidadãos americanos, que ajudaram Joe Biden a manipular eleições presidenciais… Vamos atrás de vocês. Seja criminal ou civilmente, vamos descobrir isso. Estamos avisando. E Steve, é por isso que nos odeiam. É por isso que somos ‘tirânicos’. É por isso que somos ‘ditadores’… Porque vamos realmente usar a Constituição para processá-los por crimes dos quais disseram que sempre fomos culpados, mas nunca fomos.”
Poderia até parecer verborragia de algum fanático radical, mas uma reportagem do site Axios afirma que Patel está sendo cotado para uma posição de primeiro ou segundo escalão na política de defesa e segurança, se Trump for eleito. O quê, como sabemos, é uma possibilidade real nestes dias que abrem o ano de 2024.
Por aqui, parece que por ora a narrativa em torno do 8 de janeiro não será objeto de disputa tão feroz, uma vez que a inelegibilidade de Jair Bolsonaro decretada pelo TSE parece, por ora, ter resolvido a questão. Além do fracasso da CPI do Golpe de tentar culpar o governo.
No entanto, quem observa as redes sociais do ex-presidente não pode deixar de notar que a estratégia de desacreditar (e talvez reverter) essa inelegibilidade está sempre presente: há meses, quase todos os vídeos e fotos mostram Bolsonaro sendo recebido por pequenas multidões de fãs, demonstrando sua “enorme popularidade” (muitas aspas), em contraste com o que repetem ser a “impopularidade de Lula”. São frequentes comentários perguntando: onde estão os 60 milhões de eleitores de Lula”, por exemplo.
No dia 6 de janeiro, Bolsonaro repostou no seu Twitter um vídeo do presidente do PCO, Rui Costa, para fomentar a narrativa de perseguição. “Presidente do PCO, Rui Costa Pimenta: ‘o único candidato capaz de derrotar o Lula é o Bolsonaro, por isso a perseguição…’, escreveu o ex-presidente. Dias antes, como mensagem de ano novo publicou também um videozinho caminhando pela Barra, no Rio, e evocando os batidíssimos versos bíblicos de João 8:32: “a verdade nos libertará”, uma alusão nada discreta à investigação judicial do 8 de Janeiro.
Se é um fato que nenhum milagre vai salvar os golpistas – como demonstrou o discurso de Alexandre de Moraes e a nova ação da PF especificamente contra os mandantes no próprio dia 8 –, é fato também que há muita gente trabalhando para reduzir a aceitação popular ao fato de que houve, sim, uma tentativa de golpe de Estado. Como os mais de 400 membros e voluntários da Associação dos Familiares e Vítimas de 8 de Janeiro (Asfav) – retratada em reportagem da Pública na semana passada, que decidiram ser indissociável a defesa dos seus entes queridos de atacar o STF pelo que chamam de “violações de direitos humanos” e de “prerrogativas dos advogados”.
Não há como defender os seus familiares, ainda, sem negar que houve tentativa de golpe. E nessa toada a associação conseguiu portas abertas em gabinetes dos bolsonaristas no Congresso e a realização de algumas audiências públicas na Câmara e no Senado para discutir a situação dos presos. A morte de Cleriston Cunha, de 46 anos, que faleceu na Papuda em novembro, embora tivesse parecer de soltura expedido pela PGR, deu uma nova bandeira a essa turma.
O que fica claro é que não há ainda uma versão final do que ocorreu em 8 de janeiro – afinal, ainda estamos descobrindo muita coisa – e nem a sociedade brasileira como um todo está convencida de que se tratou de uma tentativa de golpe de Estado. O que é grave. Porque demonstra que as bolhas informacionais seguem funcionando a toda e que, como sociedade, ainda não estamos na mesma página.
E, claro: este é um ano eleitoral, quando a polarização, as cisões, os ataques virulentos e o pânico moral rendem dividendos em forma de votos.