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Uma canção de amor (e código)

Conviver com um desenvolvedor é conviver com o bom e o ruim da internet

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23 de janeiro de 2024
06:00
Ouça Natalia Viana

Natalia Viana

23 de janeiro de 2024 · Conviver com um desenvolvedor é conviver com o bom e o ruim da internet

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Ele acorda quase todo dia às seis da manhã, meia hora antes do despertador, pega seu iPad e fica lendo notícias na cama. Levanta-se, vai preparar o café e me traz, enquanto eu, vagarosa, adio por mais uma hora o momento de encarar o mundo. E só depois que estou desperta, com café tomado e já sentada na mesa da cozinha, vem a avalanche: o Google foi condenado a pagar US$ 700 milhões por práticas anticoncorrência na loja de aplicativos Play Store; a demissão de Sam Altman, CEO da OpenAI, virou um “plot twist”, o rapaz voltou e então todo o conselho se demitiu; a Apple vai lançar um novo headset de realidade virtual que – na visão dele – vai mudar radicalmente como experimentamos o mundo e como as pessoas se relacionam e se desconectam umas das outras – mais uma vez, penso eu com desânimo –; e “você tem que ler este artigo”.  

(Agora você entendeu o título deste texto; como estamos ainda em período pré-Carnaval, resolvi revelar aqui minha arma secreta à qual recorro toda semana para pensar essa coluna. Sou casada com um desenvolvedor. E não qualquer um; sou casada com um daqueles que viu a coisa toda acontecer.) 

Babak é matemático, tecnólogo, engenheiro de informação, criador de mundos virtuais, um “gambiarreiro digital”, como ele prefere dizer, e seu olhar sobre quase tudo tem o viés de quem enxerga o mundo a partir da sistemática, como se o visse de dentro da tela do computador. Mas até toda essa matemática tem política – e ele jamais me deixa esquecer isso. 

O código chegou à sua vida quando ele tinha apenas 11, ou 12 anos, na escola, antes da “internet” que conhecemos. Durante a adolescência na Holanda, reunia-se com outros moleques tão curiosos como ele em clubinhos aos quais levavam computadores enormes e se conectavam, por telefone, a alguma das redes que existiam em diferentes partes do mundo – lá no começo dos anos 1990, eram ainda redes de computadores ligados entre si e associados, geralmente, a universidades diversas. Eles se conectavam à rede europeia para, basicamente, baixar arquivos. De tudo um pouco. Naquele tempo, não havia world wide web – a rede global que conecta todo mundo com todo mundo – nem havia gente o suficiente o tempo todo para ter um chat sincrônico; a conversa toda era assíncrona. 

Levou ainda alguns anos antes de ele poder acessar a world wide web, um chat e – wow – aquilo era outra revolução. 

Ele sempre me diz que, naquela época, havia um tesão de experimentar as possibilidades. Tudo era possível, fazer códigos era entrar em um mundo que era um grande e fascinante laboratório. “Brincávamos o tempo todo”, me disse outro dia. “Hoje a internet virou comercializável, apenas. Tudo é lucro.”   

Pouco depois, ele viu colegas da sua idade ficarem milionários, do dia para a noite, na “primeira bolha” da internet do final dos anos 1990. Ele foi por outro caminho: decidiu ser voluntário de um projeto chamado Geekcorps, que, inspirado nos Peace Corps americanos – grupos de jovens de boa vontade do Norte global que se oferecem para trabalhar em países pobres como voluntários –, enviava desenvolvedores para a África para trabalhar com ONGs locais e capacitá-las nos labirintos do maravilhoso mundo novo que se descortinava. 

O professor Ethan Zuckerman, da Universidade de Massachusetts, um dos geeks que ficaram milionários logo na primeira onda (ele inventou os “pop-ups”) e depois passaram a se dedicar a melhorar o mundo, era o idealizador dos Geekcorps e tornou-se uma espécie de mentor da linha que Babak seguiria, segue até hoje, dentre tantas correntes de pensamento dessa comunidade esparsa, dispersa, invisível para a maioria de nós que usamos todo santo dia os códigos escritos por eles e elas. 

Assim, conviver com ele é conviver com o bom e o ruim da internet, com a bonita cultura do compartilhamento e também com todos os sonhos que foram destruídos; conviver com os inúmeros “bugs” e as empresas cada vez mais sem-vergonha atrás dos nossos dados; com a inflexibilidade dos códigos e a infinidade de combinações possíveis para inventar coisas que – infelizmente, felizmente – têm que fazer sentido, ter regras claras, quadradas e lógicas. 

É também estar a par das mais malucas teorias da conspiração que rondam os lugares mais escuros da web, e dos debates filosófico-tecnológicos que embasam novidades como blockchain, criptomoedas, inteligência artificial, ou a tendência à “bostificação” – que já foi tema de uma newsletter, apenas uma das muitas que foram inspiradas por ele. 

E é ele, o eterno chato, aquele que não deixa esquecer nem a mim nem à equipe da Pública que, por trás de ferramentas aparentemente inocentes como as que as Big Techs querem que se enfiem no nosso site, estão decisões maquiavélicas, como retirar o poder dos desenvolvedores (que entendem de coleta de dados de usuários e proteção de privacidade) para entregar aos que fazem a parte do marketing (que querem vender).   

Decisões políticas, mesquinhas, humanas, demasiadamente humanas. 

Por mais que a internet tenha se corrompido de maneira abrumadora na era da plataformização e do oligopólio, há algo bonito em ter do meu lado uma pessoa que traz dentro de si aquele menino que ainda vibra quando sai um novo iPhone ou Vision Pro, que se mete imediatamente a conversar com os modelos de inteligência artificial generativa como se disso dependesse o nosso futuro – e não depende? – e que passa as suas horas livres a inventar aplicativos que ajudam as pessoas a brincar mais com a tecnologia: com as cidades, com seu entorno, com a arte sonora, com esse ou aquele momento histórico, com poesia sintética. 

Talvez, mais do que as últimas notícias do mundo geek, o que ele me traz é a capacidade de manter a esperança de que esses meninos, essas meninas, estão todos por aí, um exército de amantes dos princípios fundantes da internet, como o compartilhamento do conhecimento humano e a democratização do acesso à informação – “a informação quer ser livre”, diziam. Talvez estejam distraídos, talvez “ocupadérrimos” em seus trabalhos de construir este mundo em que hoje vivemos de fato. Mas estão por aí. 

E isso me faz ter enorme esperança, ainda, de que é possível reconstruir a humanidade na internet. E a brincadeira. Por que não?  

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