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A ideia tradicional de ter fogueira nas festas juninas ganhou uma conotação bizarra neste fim de junho quando viralizou nas redes sociais um vídeo das comemorações de São João na cidade de Corumbá (MS). Visto do alto, no primeiro plano aparece a população curtindo a festa em frente a um palco. Ao fundo, do outro lado do rio Paraguai, uma faixa vermelha tingia todo o horizonte: é o Pantanal ardendo em chamas.
O drama pantaneiro vem sendo alertado pela mídia há algumas semanas: este é o junho com mais queimadas desde o início das medições pelo Programa Queimadas, do Inpe, em 1998. Até esta quarta-feira, 26, foram registrados 2.527 focos – número que supera em quase seis vezes a quantidade de focos do mesmo mês em 2005, até então o junho com mais fogo do registro histórico, com 435 focos.
A quantidade de incêndios deste último mês já empata com todo o primeiro semestre de 2020 – com 2.534 focos –, até então o ano com recorde de fogo no Pantanal.
As queimadas de quatro anos atrás, o caro leitor deve se lembrar, e eu até comentei sobre isso aqui neste espaço há duas semanas, foram marcadas pelas tristes histórias de onças resgatadas com as patas queimadas e pelas imagens de animais carbonizados. Também foram marcadas por uma intensa cobrança pelo desmonte da política ambiental promovido pelo governo Bolsonaro – em curso desde o início do mandato.
Como era de esperar, agora são os bolsonaristas que estão se valendo dos recordes para cobrar a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, e o próprio presidente Lula. Já perguntaram por onde andam Emmanuel Macron e Greta Thunberg – o presidente da França e a jovem ambientalista sueca foram alguns dos críticos mais vocais de Bolsonaro desde 2019, quando o desmatamento e as queimadas na Amazônia começaram a disparar.
E ficam dizendo que eram injustas as cobranças de 2020 porque, “olha só, agora tá tudo muito pior”. Tem até site jornalístico escrevendo que “Marina culpou o governo Bolsonaro por incêndios no Pantanal [em 2020] e agora fala em mudanças climáticas, seca e ação humana”. Ah, me desculpem os colegas, mas um pouco mais de seriedade, por favor, né?
Sim, os números são claros. Há um novo e dramático recorde no Pantanal, com previsões de que a situação ainda pode piorar mais neste ano. Mas os dados só contam uma parte da história e, sozinhos, não dão a exata dimensão do problema nem do desafio para combatê-lo. Além de não serem suficientes para comparar nada com nada.
No início desta semana, o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo (vamos-passar-a-boiada) Salles resolveu bancar o sabichão. Ao compartilhar nas redes sociais a notícia de que o Mato Grosso do Sul decretou emergência por causa dos incêndios, escreveu: “O assunto é bastante sério. Não comporta bravatas como as acusações cretinas que fizeram contra nós no Ministério durante os anos Bolsonaro”. Na sequência, listou o que ele acha que precisa ser feito.
“As queimadas atuais estão muito maiores dos que as de 2020, porém as causas são as mesmas: 1) ausência, por puro dogmatismo, de manejo prévio e adequado através da queima preventiva do excesso de matéria orgânica seca; 2) relutância, também dogmática e irracional, contra o uso dos produtos retardantes de fogo nas aeronaves de combate a incêndio e 3) falta de chuvas. Tudo igual, porém muito maior”, disse.
Vou me ater aos itens 1 e 3, porque o 2 é controverso e não há estudos sobre efeitos de longo prazo. De todo modo, me pergunto: se ele pensava assim, por que não agiu quando era ministro? Mas vamos lá.
Sobre a falta de chuva. O Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que monitora via satélite incêndios no Brasil, divulgou uma nota técnica nesta segunda-feira, 24, na qual é categórico sobre o que está acontecendo no Pantanal. Infelizmente, não tem nada de “tudo igual” no que está ocorrendo agora.
“Desde o final de 2023 e início de 2024, a região apresenta o maior índice de raridade de seca (com base na umidade do solo) já registrado desde 1951, ultrapassando o ano de 2020, que até o momento era considerado o primeiro do ranking de secas”, escrevem os pesquisadores. “O período 2023/2024 não encontra paralelo em nenhum outro período do registro histórico, sendo sem precedentes em termos de intensidade e duração da seca.”
Trata-se de um problema que não vem de hoje e tem como origem um combinado de fatores que estão “literalmente secando o Pantanal”, como explicou o engenheiro florestal e ambientalista Tasso Azevedo, coordenador do MapBiomas, à jornalista Miriam Leitão, do jornal O Globo.
“A corrente de água que vem da Amazônia, os chamados rios voadores, está diminuindo por causa do desmatamento na região. Outro problema é que no planalto, no entorno do Pantanal, muitas áreas estão sendo convertidas em pastagem ou em campos de soja. E isso aumentou muito o assoreamento da Bacia do Paraguai, porque está vindo muito sedimento. Tanto que o Pantanal está ficando mais raso. E tem um terceiro problema que é a destruição do pasto natural para ser substituído pelo pasto plantado”, disse Azevedo.
O resultado disso tudo que o pesquisador menciona apareceu de modo muito claro no levantamento MapBiomas Água, divulgado nesta quarta, 26. O estudo, que avaliou a evolução da cobertura de água no Brasil de 1985 a 2023, revelou que o Pantanal foi o bioma que mais secou no período. No ano passado, a superfície de água anual (que considera pelo menos seis meses com água) foi de 382 mil hectares – 61% abaixo da média histórica.
Houve também uma redução da área alagada e do tempo de permanência da água. No ano passado, apenas 2,6% do bioma estava coberto por água, aponta o documento. E quando era para ter se iniciado o período úmido, que se estenderia para o início deste ano, as chuvas vieram bem abaixo da média. Aí estava contratado o estrago.
O fogo neste ano começou muito antes do que o normal. Junho não costuma ter muitos focos. Varia de algumas dezenas a algumas centenas, mas, em média, de 1998 até o ano passado, o mês teve 103 focos. Anualmente, a média de área queimada no bioma é de 8%, de acordo com dados do Lasa/UFRJ. Em 2020, foram cerca de 30%, por volta 3,6 milhões de hectares. Naquele ano, os focos começaram a chamar atenção a partir de julho, atingindo o pico de 8.106 focos em setembro.
De acordo com o laboratório, em 2024 já foram queimados 684 mil hectares, contra 260 mil hectares no primeiro semestre de 2020. Estimativas a partir de modelo matemático que levam em conta as condições climáticas em curso e o que se conhece sobre clima e fogo na região apontam que há 80% de probabilidade de chegar, no mínimo, a 3 milhões de hectares neste ano, me explicou Renata Libonati, que coordena os trabalhos do Lasa.
Em relação ao item 1 citado por Salles, ele até tem razão, mas, de novo, tampouco fez essa queima preventiva que ele sugere. A ministra Marina Silva tem defendido fortemente, desde o ano passado, a aprovação de uma lei que estabelece a chamada Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (MIF), que tem justamente como premissa essa ideia de usar fogo para poder combater o fogo.
O MIF é uma abordagem ampla construída a partir da interação entre o conhecimento científico e os saberes ancestrais de uso do fogo de populações indígenas e tradicionais. Ele engloba, entre outros pontos, ações de prevenção e combate aos incêndios florestais de modo articulado entre governo federal, estados e municípios – coordenação fundamental e necessária quando se consideram as características do Pantanal. A maior parte do bioma é tomada por propriedades privadas, onde Ibama e ICMBio não atuam, por exemplo.
Conversei com Ane Alencar, especialista em fogo do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (Ipam), que pontuou justamente essa necessidade de ações articuladas. “O governo federal tem um papel, sim, em convocar esses entes todos para fazer um plano, mas ele tem limites na implementação quando se fala de uma paisagem como essa, em que grande parte da distribuição de terras pertence a privados”, explica.
“Isso quer dizer que, para combater o fogo no Pantanal, é preciso articular todas essas forças. Do Prevfogo [programa do Ibama de combate a incêndios] e do ICMBio, que atuam em áreas federais. Dos bombeiros florestais, que atuam nas áreas privadas. Tem também as brigadas das próprias fazendas, as brigadas comunitárias, voluntárias, que estão fora de áreas protegidas. Todo esse grupo de instituições tem de estar muito bem articulado para combater o fogo”, complementa.
O projeto de lei que estabelece o MIF é considerado prioritário para o ministério, chegou a ser aprovado na Câmara, mas parou no Senado por lobby dos Bombeiros, como mostramos em reportagem da Pública no ano passado. No início desta semana, Marina frisou: “Gostaríamos muito de que fosse aprovado nesse momento em caráter emergencial, para não precisar voltar mais à Câmara dos Deputados. Com certeza ajudaria muito se tivéssemos isso aprovado no início do ano passado”.
Marina não nega o problema, como Salles e Bolsonaro muitas vezes fizeram. Está tentando articular um plano de ação que em nenhum momento ocorreu na gestão passada. Tampouco lança mão de soluções fantasiosas, como o famigerado “boi bombeiro”, defendido pela ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina e por Salles.
A ideia deles, que vinha do “guru ambiental” do bolsonarismo, Evaristo de Miranda, era que o boi come capim na estação úmida, então restaria menos matéria orgânica para secar no período seco, diminuindo o combustível para o fogo. Desse modo, bastaria colocar mais boi no Pantanal. Por esse raciocínio, seria de supor que houve uma diminuição do rebanho ou algo assim para explicar o fogo até então sem precedentes de 2020.
Mas, como revelou o Fakebook.eco, plataforma de combate à desinformação sobre meio ambiente, desde 2003 o rebanho oscilou entre 8,5 milhões e 9,5 milhões de cabeças, enquanto os focos de queimadas triplicaram entre 2014 e 2017.
Não é passar pano para o governo atual, mas entender que ficar nessa polarização, apontando dedo de modo infantil, não vai salvar o Pantanal – nem nenhum outro bioma – dos incêndios que estão por vir. Há estimativas de que a seca na Amazônia neste ano também será perigosa. É preciso, neste momento, que ninguém acenda o fósforo em nenhum canto do Pantanal. É preciso imediatamente evitar qualquer ponto de ignição. E precisam os parlamentares aprovar logo o projeto de lei. Porque nada indica que as condições climáticas vão melhorar.