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A vigilância do MJ virou um monstro pela passividade dos órgãos de controle

O setor de inteligência do Ministério da Justiça não é visto com rigor por órgãos de fiscalização

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23 de outubro de 2024
06:00

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No começo, como sempre, tudo foi cercado pelas melhores intenções. Dez entre dez especialistas em segurança pública apontavam – e certamente ainda apontam – que os governos deveriam usar mais inteligência no combate ao crime a fim de melhorar a efetividade do trabalho policial e reduzir a letalidade, a tortura e a violência estatais.

Para ajudar os governos estaduais, o governo federal criou há mais de 20 anos, ainda na gestão de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), o chamado “subsistema de inteligência de segurança pública”, o Sisp (Decreto nº 3.695/2000), que tem a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça como “órgão central”.

Segundo o decreto, ainda hoje em vigor, a finalidade do subsistema é “coordenar e integrar as atividades de inteligência de segurança pública em todo o país, bem como suprir os governos federal e estadual de informações que subsidiem a tomada de decisões neste campo”. Guardem essas palavras porque logo retornaremos a elas.

O avanço da tecnologia deu ao Sisp um impulso extraordinário. Em meados dos anos 2010, aproveitando a época dos “grandes eventos” no Brasil, como a Copa do Mundo e a Olimpíada, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) vitaminou o seu setor de inteligência.

Nos governos de Dilma Rousseff (2011-2016), de Michel Temer (2016-2018) e, principalmente, de Jair Bolsonaro (2019-2022), o setor de inteligência do Ministério da Justiça prosperou, ampliou enormemente sua base de dados e se tornou uma usina de produção de relatórios sigilosos.

No governo Bolsonaro, o então ministro da Justiça Sergio Moro, hoje senador, transformou a coordenadoria em secretaria de inteligência e a dotou de capacidades extraordinárias – e contrárias ao espírito do decreto do Sisp. A partir de então, o órgão poderia, por exemplo, “estimular e induzir investigações”, o que especialistas ouvidos na época viram como um risco de criação de uma “Abin paralela”. Como vimos acima, o ministério poderia ter um papel de coordenação, mas nunca de atuar em investigações, ainda que de forma indireta.

Em 2020, a inteligência do ministério ganhou evidência com a revelação de que havia produzido dossiês contra policiais antifascistas e professores universitários de esquerda. Em resposta, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) consideraram o ato inconstitucional e ordenaram que o ministério se abstivesse de confeccionar documentos do gênero.

O escândalo deveria ter levantado todos os sinais de advertência nos órgãos de fiscalização e controle. O que mais o setor de inteligência do ministério tinha produzido ou continuava produzindo? Que ferramentas usou? Quais foram todos os seus alvos? Qual o conteúdo dos relatórios produzidos pelo ministério?

Nada disso foi investigado pelo Senado, por meio de uma comissão específica para o setor de inteligência chamada CCAI, pela Procuradoria-Geral da República (PGR), pela Polícia Federal ou pela Controladoria-Geral da União (CGU). Nem pelo próprio Ministério da Justiça a partir de janeiro de 2023, quando começou o governo Lula 3.

Nada vezes nada. Os documentos do governo bolsonarista continuaram protegidos por um sigilo eterno. Pior ainda, o truque usado à exaustão no governo Bolsonaro foi repetido perfeitamente pelo governo Lula 3: como tais relatórios são confeccionados sem nenhum grau previsto na Lei de Acesso à Informação, LAI (reservado, secreto ou ultrassecreto), também nunca haverá uma data para divulgação ao público.

É importante sempre lembrar que os relatórios do Ministério da Justiça existem à margem do Ministério Público e do Judiciário, pois não estão vinculados a um inquérito ou a um processo.

Quando o governo Lula 3 começou, a Agência Pública reapresentou, via LAI, um pedido feito durante o governo Bolsonaro para ter acesso a uma mera listagem dos tais relatórios produzidos pela inteligência do ministério. Para meu espanto, a gestão de Flávio Dino utilizou os mesmos argumentos usados pelo governo Bolsonaro para negar acesso a essa relação.

Recorremos, e a CGU chegou a dar “ganho de causa” à Pública. Mas depois voltou atrás e concordou que o pedido daria muito trabalho para ser respondido. O ministério não precisou mais responder. O governo inclusive perdeu o prazo legal para um recurso, mas isso, para a CGU, foi um mero detalhe (agora vá você, cidadão, perder um prazo qualquer), tudo foi acolhido em favor da gestão Dino.

Esse processo administrativo iniciado pela Pública rendeu ao Ministério da Justiça a jocosa honraria de grande prêmio do público “Cadeado de Chumbo 2023”, concedido pelo Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas e pela Rede de Transparência e Participação Social.

A inteligência do Ministério da Justiça ficou blindada, mas a Pública não parou de investigar.

Numa série de reportagens publicadas nas duas últimas semanas, a Pública lançou holofotes sobre o programa Córtex, do Ministério da Justiça – uma poderosa ferramenta de vigilância acessada por 55 mil agentes civis e militares que permite acompanhar veículos por ruas e rodovias –, a produção de pelo menos 6,6 mil relatórios sigilosos e outras atividades do setor de inteligência do ministério hoje ocupado pelo ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski. Esquadrinhou também a ferramenta semelhante ao Córtex do governador bolsonarista de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), o “Muralha Paulista”.

Em relação ao que já era conhecido sobre o Córtex, a apuração da Pública avançou em diversos aspectos. Por exemplo, obteve a confirmação de que os servidores autorizados a acessar o sistema não precisam justificar caso a caso o motivo da consulta. Fica tudo à revelia do órgão que assinou um “acordo de cooperação técnica” elaborado pelo ministério, inclusive com uma cláusula de mordaça.

Está documentado que o sistema, por meio de 36 mil câmeras (esse número sobe a cada dia), consegue “ler” os caracteres de uma placa de carro e também criar um “cerco eletrônico” que indicará por onde esse automóvel passou ou vai passar. Quando o carro passa, o usuário recebe um aviso. Assim, as pessoas podem ser seguidas online, tudo ao alcance de alguns cliques.

Não precisa ser um gênio da informática para entender que a porta está arrombada a todo tipo de perseguição a desafetos políticos, por exemplo. Ou a jornalistas e blogueiros que fazem publicações críticas ao prefeito da sua cidade ou ao governador do seu estado.

Como não há necessidade de justificar o “alvo” da consulta, o céu é o limite. Qualquer cidadão pode estar sendo monitorado neste mesmo instante e nunca ficar sabendo. A criminalidade enxergou grandes facilidades nesse poderoso banco de dados. Conforme o The Intercept Brasil divulgou em fevereiro, a Polícia Civil de Brasília já investiga pelo menos um caso de extorsão a partir de dados obtidos por uma quadrilha.

Com base na análise de documentos obtidos pela Pública, também foi possível entender melhor a posição da gestão Dino, inalterada pela gestão Lewandowski, sobre o que ocorreu durante o governo anterior. O Ministério da Justiça chegou a criar uma comissão responsável por auditar o Córtex, mas decidiu-se que só iria olhar para o “futuro”, não para o passado, ou seja, não para o governo Bolsonaro.

Nenhum órgão público se interessou por um levantamento aprofundado sobre as pessoas, entidades ou empresas que já foram alvos do Córtex ou da inteligência do ministério (o Tribunal de Contas da União fez uma análise, mas não sobre os alvos, o que mais importa, apenas sobre aspectos de administração e funcionalidade do sistema).

A quem interessa essa cegueira? Levanto uma hipótese plausível. O decreto de 2000 que criou o Sisp estabelecia apenas cinco ministérios como integrantes do subsistema (Justiça, Fazenda, Defesa, Integração Nacional e Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República) e abria espaço para participação dos “órgãos de inteligência de segurança pública dos Estados e do Distrito Federal”.

Contudo, hoje sabemos que as várias bases de dados da inteligência do MJSP já podem ser acessadas por 55 mil pessoas dos mais diversos órgãos, do Comando do Exército, em Brasília, aos guardas civis metropolitanos de mais de 180 prefeituras no interior do país. Todos os 36 órgãos integrantes do Sistema Brasileira de Inteligência (Sisbin) também têm acesso ao sistema.

Os tentáculos do polvo estão agora espalhados por toda a administração federal, estadual e municipal. Isso inclui órgãos de fiscalização e controle, como o Ministério Público Federal. Nessa tacada o MJSP foi inteligente: se todo mundo está dentro, quem vai reclamar?

Há um ano, o uso de uma ferramenta chamada First Mile pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) gerou um grande escândalo em meio a investigações da Polícia Federal e da própria Abin. A ferramenta consegue seguir passos de uma pessoa nas ruas a partir do acompanhamento do seu telefone celular. Um dos principais alvos foi o ex-deputado federal Jean Wyllys. Pessoas foram presas e outras estão sendo acusadas.

Demonstramos que o Córtex do MJSP consegue seguir carros, em vez de celulares. É redundante lembrar que as pessoas fazem muitas coisas de automóvel, às vezes mais do que a pé. Mas não se viu um sinal de contrariedade nas instituições de fiscalização e controle. As reportagens da Pública sobre o Córtex foram recebidas com um silêncio constrangedor. Tais órgãos também têm acesso ao sistema e nunca viram nada de errado nele.

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