Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Brasília a quente, enviada às terças-feiras, 8h. Para receber as próximas edições por e-mail, inscreva-se aqui.
Nunca houve nada semelhante desde a redemocratização, em 1985, e provavelmente nunca antes dela. O Supremo Tribunal Federal (STF) está elaborando um “anteprojeto de lei complementar”, a ser enviado ao Congresso Nacional, que pretende, de uma só tacada, mudar o processo de demarcação de terras indígenas e permitir a mineração e várias atividades econômicas nos territórios, entre outras alterações.
Na última sexta-feira (14), uma “minuta” do “anteprojeto” foi juntada pelo ministro Gilmar Mendes, na forma de uma “decisão” sua, aos autos de uma ação declaratória de inconstitucionalidade (nº 87/DF) que sedia uma “comissão de conciliação” instalada no ano passado pelo próprio ministro, que também escolheu os órgãos ou entidades que poderiam indicar seus membros. Todo esse procedimento foi aberto e tramita sob as bênçãos do atual ministro do tribunal, Luís Roberto Barroso.
A “minuta” de 41 páginas elenca 94 artigos de uma futura lei que, se aprovada, vai reescrever o processo demarcatório, criar programas no Executivo, permitir indenização sobre a terra nua, entre outras novidades. Imagina se o Supremo fosse acusado pelo Congresso de legislar? Mas a direita e a extrema direita, é claro, não veem problema nenhum quando o STF vai – desta vez é verdade – legislar sobre direitos indígenas.
A proposta de “anteprojeto” passará a ser votada pelos integrantes da comissão de “conciliação” do STF em duas sessões (nos dias 17 e 24). Isso mesmo que você leu, o STF promove votações de não juízes dentro de processos judiciais. A “comissão” tem 23 integrantes: seis do Congresso, todos da direita ou simpáticos à iniciativa do STF, quatro do governo federal, três de entidades ligadas a governos estaduais e prefeituras, cinco de partidos políticos e, por fim, cinco que supostamente pertenceriam ao movimento indígena. São, portanto, 18 votos de não indígenas contra cinco de indígenas. Que tal?
A maior entidade indígena do país, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), chegou a indicar esses cinco nomes, demonstrando a princípio uma boa vontade com a inusitada “conciliação” aberta pelo Supremo. Mas, em agosto passado, a Apib se retirou da comissão porque, entre outros pontos, Mendes não decidiu sobre diversas solicitações feitas no processo nem encaminhou ao plenário do STF três agravos ajuizados pela entidade.
A Apib queria, por exemplo, que o colegiado do tribunal examinasse toda essa questão que acarreta profundas consequências no campo socioambiental. Não concorda que tudo fique nas mãos de um único ministro, que decide sempre de forma monocrática. A retirada do movimento indígena, porém, não impediu que a suposta “conciliação” continuasse por determinação de Mendes.
A fim de eliminar o problema lógico insolúvel de dar prosseguimento a uma “conciliação” da qual os indígenas decidiram não participar, Mendes ordenou que o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) indicasse esses cinco “representantes” indígenas. Criou-se então este cenário: o indígena indicado pelo Estado brasileiro se senta na cadeira que deveria ser do movimento independente indígena.
Uma “conciliação” sobre direitos indígenas sem a presença do movimento indígena seria como discutir o sistema financeiro nacional sem a participação da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban). Ou a agropecuária, sem a Confederação Nacional da Agropecuária e Pecuária (CNA). Alguém imagina que o STF aceitaria tal cenário?
Nesse ponto, o governo do presidente Lula, que anunciou ao mundo ter criado um pioneiro MPI e subiu a rampa da Presidência ao lado do líder Kayapó Raoni, adotou uma posição no mínimo ambígua. Ao indicar prontamente e sem nenhuma contestação os nomes dos “representantes” indígenas, o MPI encampou o caminho desenhado por Mendes à revelia da Apib, de onde, aliás, saiu a própria ministra do MPI, Sonia Guajajara, a ex-coordenadora executiva da entidade. Sonia sempre foi crítica à mineração das terras indígenas. Agora tal proposta está no “anteprojeto”.
O MPI poderá argumentar que seria impossível “descumprir” a ordem do STF de indicar os “representantes” indígenas. Mas o ministério nunca questionou nem recorreu da ordem, e desde então mostra uma grande sintonia com a “conciliação” do tribunal. É uma postura um pouco diferente da dos representantes do Ministério da Justiça e da Funai na comissão, que têm se revelado um pouco mais críticos.
O “anteprojeto” elaborado pelo STF afeta diversos pontos do capítulo indígena inscrito na Constituição de 1988 após a intensa mobilização social que, naquela época, juntou o nascente movimento indígena às entidades indigenistas e a setores da academia e da imprensa.
O advogado indígena Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib, disse que o STF “está fazendo uma nova Constituinte exclusiva para os povos indígenas”. “A gente nunca viu uma situação como essa. Não é exagero dizer que está sendo reescrito todo o capítulo da Constituição no que diz respeito aos direitos indígenas.”
“É surreal a gente assistir, durante a presidência do ministro Luís Barroso, isso acontecendo diante de todos os olhos da sociedade brasileira. Barroso se coloca como um ministro iluminista, progressista, que defende os interesses sociais de minorias e a Constituição. Mas o que o Supremo está fazendo agora se revela como uma das grandes ameaças do campo socioambiental no nosso país e na comunidade que atua na proteção dos direitos humanos.”
Terena qualifica o cenário como “desesperador”. “Tudo isso expõe como o poder econômico tem força neste país. É mais um capítulo do projeto colonial acontecendo de maneira mais sofisticada, dentro do Judiciário, sob a égide das togas, dos juízes, colocando um ar de legitimidade em uma violência que será considerada, daqui a 20 ou 30 anos, eu tenho certeza, uma grande desconstitucionalização dos direitos indígenas.”
O projeto colonial português executou a ocupação, à força sempre que necessário, das terras indígenas para atividades econômicas e a incorporação dos indígenas à dita comunhão nacional – o que, na prática, resultou no extermínio de diversos povos.
O coordenador jurídico da Apib também expressou sua estranheza quanto aos procedimentos adotados para aprovação do “anteprojeto”. “O gabinete do ministro anunciou que a comissão entrará em uma dinâmica de votação nas próximas duas sessões. Mas, dentro do STF, a lógica de uma conciliação sempre passou por consenso. Se não há consenso, o processo vai a julgamento da maneira tradicional. Pela primeira vez, até onde sei, agora vai ser por voto. Esse procedimento é completamente inusitado.”
Para Terena, o comportamento do STF acaba dando razão a alguns de seus críticos. “O Supremo tem uma disputa com o Congresso, que vive falando que o papel do STF não é legislar. E estamos vendo o STF fazer um projeto de lei. Entendo que o ministro [Mendes] esteja sedento para apresentar um produto final, algum avanço. Na nossa avaliação, porém, não avançou nada. Inclusive corrobora as narrativas que a extrema direita tem feito. Não é papel do STF fazer um projeto de lei dessa envergadura. Depois será votado no plenário do tribunal e enviado para o Congresso? Não tem lógica regimental, processual.”
Neste espaço de coluna semanal e em reportagens da Agência Pública, já falamos sobre o assunto em outras oportunidades. Em julho passado, por exemplo, ressaltamos as dúvidas e incertezas sobre o procedimento adotado pelo STF. Em agosto, noticiamos que o movimento indígena se retirou da “conciliação forçada” do STF.
As leitoras e leitores poderiam ter se perguntado sobre a insistência no tema. Mas apenas antecipamos, de maneira quase isolada nas colunas analíticas da mídia nacional, a gravidade de um movimento político e judicial que agora, na última sexta-feira (14), se tornou bastante concreto.
Para quem tem dúvida sobre a seriedade do que está sendo encaminhado pelo STF, fica a pergunta: e se fosse durante o governo Bolsonaro?
Em reportagem na “Folha de S. Paulo” online, ontem (17), o gabinete de Mendes procurou rebater as críticas sobre o “anteprojeto”. O texto pode ser lido aqui.