Desde o massacre de Paraisópolis, em 2019, que resultou na morte de nove jovens após uma ação da Polícia Militar durante um baile funk, os eventos culturais na maior favela de São Paulo, segundo Censo 2022, passaram por uma série de transformações. A presença ostensiva da polícia reduziu gradativamente o público do tradicional baile da DZ7, que reunia milhares de pessoas nas madrugadas de fim de semana na zona sul. Há quase dois anos, o baile deixou de acontecer. Moradores atribuem a paralisação à presença de viaturas no local, que passou a ser constante no governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos).
“Eu já vi policiais jogando bomba no DZ7 e rindo da situação das pessoas correndo. Parece que eles têm prazer em fazer o mal”, relata Alexandre*, 35 anos, que falou com a Agência Pública em condição de anonimato. Segundo ele, durante a festa junina do ano passado, a polícia invadiu o evento e lançou bombas para dispersar a população. “Além disso, jogaram gás nas vielas, atingindo até mesmo idosos e pessoas com deficiência. Foi um terror completo.”
Por que isso importa?
- Paraisópolis é a maior favela de São Paulo, segundo o Censo de 2022 do IBGE. O território, marcado pela violência policial, é de responsabilidade do 16º Batalhão da PMSP, apontado como o mais letal da capital na última década;
- A repressão da polícia atingiu também os bailes funk, forçando o encerramento de festas tradicionais como a DZ7.
Carlos Almeida*, 29 anos, conta que foi abordado em uma viela, quando voltava de um baile, e sofreu violência por parte da polícia.
“Na hora que levei o enquadro, a primeira coisa que falaram foi sobre a minha forma de vestir. Eu usava uma Juliet (óculos clássico usado por funkeiros), uma camisa polo e uma calça, e me chamaram de vagabundo e levei um tapa no rosto. Afirmaram que quem se veste daquele jeito e vai ao baile é gente que não presta. Ou seja, nem a forma como a gente se veste, nem o rolê que a gente frequenta, nem a nossa existência são permitidos”, afirmou.
Com medo de represálias, Carlos* não denunciou o abuso e pediu para não ser identificado. “Como e para quem vou denunciar, sendo que quem investiga são os mesmos que nos violam?”, questiona.
Carlos afirma que, desde que Tarcísio assumiu o governo, uma onda de violência se intensificou contra a comunidade. “Com a entrada do governador, Paraisópolis tem sofrido intensamente com a polícia. Tanto o funk tem sofrido mais perseguição, com a paralisação do baile tradicional, quanto a comunidade em geral, jovens, comerciantes têm levado enquadros abusivos”, diz.
O jovem cita a ação policial que matou o jovem negro Nicolas Alexandre Pereira dos Santos de Oliveira, de 19 anos, em junho de 2025. O assassinato gerou revolta e protestos da comunidade, que fechou a Avenida Hebe Camargo com barricadas e fogo. “A perseguição do baile é só uma das tantas atrocidades que acontecem na comunidade. A perseguição é com todo corpo e cultura periférica”, relata.
O 16º Batalhão da Polícia Militar do Estado de São Paulo (16º BPM/M), responsável pelo policiamento da região de Paraisópolis, é apontado como o mais letal da capital na última década. Segundo relatório produzido pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Unifesp, em parceria com o Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos (NECDH) da Defensoria Pública de SP, entre 2013 e 2023, o 16º BPM/M esteve envolvido em 337 mortes decorrentes de intervenção policial, o que representa cerca de 9,9% do total registrado na cidade, mais da metade das ocorrências concentradas na zona oeste.
André*, outro frequentador do baile que prefere manter sua identidade em sigilo, relata que foi agredido com um cassetete: “Eu estava em cima da minha moto quando eles [os policiais] já chegaram com agressão, me xingando de criminoso e spray de pimenta. Eles agem assim porque são permitidos. O tom de voz que usam, como se fossem donos da decisão sobre quem pode viver ou não, é muito nítido”, comentou. Ele disse que não registrou B.O. por medo.
Douglas Santos*, 28, morador de Paraisópolis, relata que a violência policial, sempre presente no território, tem se intensificado.“A atuação policial sempre foi truculenta, tanto que nossa comunidade foi marcada por um massacre. Porém, com a chegada do governador a polícia se faz presente todos os dias no território, gerando medo e também revolta, principalmente toda vez que matam um de nós”, afirma.
Ele cita alguns casos, como o da criança de 7 anos que foi atingida no olho por estilhaços de um projétil e acabou ficando cega de um lado, em abril de 2024, quando sua mãe estava a deixando na casa da babá. No mesmo local do ocorrido, policiais foram flagrados recolhendo as cápsulas das balas. Uma testemunha que ajudou a mãe da criança afirmou que os PMs entraram já atirando sem nenhum confronto no momento.
“Eu gritei com os PMs dizendo que uma criança havia sido atingida, mas eles agiram com ignorância mandando eu calar a boca”, relata. Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) afirmou que a ação ocorreu durante patrulhamento da Polícia Militar na comunidade. Segundo o órgão, os agentes teriam sido alvo de disparos por parte de criminosos e reagiram.
Outro caso aconteceu em uma das ruas que compõem o baile da DZ7, em junho do ano passado: um homem foi morto por policiais. “Isso aconteceu à luz do dia, em um horário em que as crianças estavam prestes a sair da escola. Foi um ato irresponsável, já que era possível ver que os policiais já tinham imobilizado o rapaz, porém continuaram a atirar mesmo com pessoas passando pela rua. Um despreparo total”, relata Douglas.
Outra denúncia recorrente entre as pessoas que ouvimos é o uso de fuzis pela polícia apontados contra civis. “Não há qualquer respeito, nem com crianças, nem com idosos. Todos estamos vulneráveis diante de uma segurança pública que mais machuca do que protege. E tudo isso sob o comando do governador”, afirmou Douglas.

Ele também mencionou a operação realizada no último dia 10, durante a qual o jovem Igor Oliveira de Morais, de 24 anos, foi morto por policiais mesmo após ter se rendido. O caso foi registrado por câmeras corporais, o que levou à prisão de dois militares. Segundo o coronel Emerson Massera, porta-voz da Polícia Militar de São Paulo, os agentes foram detidos por homicídio doloso (quando há intenção de matar), já que as imagens mostram que os disparos ocorreram enquanto Igor estava com as mãos na cabeça.
Bruno Leite, de 29 anos, também foi vítima da operação. As mortes causaram indignação na comunidade, gerando uma onda de protestos de moradores.
Sem bailes e com medo, comerciantes fecham negócios
Os impactos da repressão policial aos bailes também atingem os empreendedores locais, que relatam prejuízos e o fechamento de comércios. “Hoje, o baile como a DZ7 não existe mais. Em poucos dias da semana conseguimos abrir o estabelecimento, mas o movimento é fraco. A polícia fica na esquina e, na semana passada, por exemplo, chegou tacando gás de pimenta em todo mundo, xingando e mandando fechar, na maior ignorância”, relata Júlio*, um comerciante de bebidas que preferiu falar em condição de anonimato.
Marcela, outra vendedora de bebidas que também pediu para ter sua identidade preservada, afirma que 80% das suas vendas caíram: “Nossas vendas despencaram. Além disso, estabelecimentos que funcionavam há anos foram fechados. Com a paralisação do baile, os empreendedores que viviam dele, que alimentavam suas famílias com esse trabalho, também foram afetados.”

Os moradores também relatam que, além da perseguição ao baile funk, outros espaços de lazer têm sido afetados, como o forró, quermesse e o pagode — este último, atacado com bombas no ano passado.
Em resposta aos questionamentos da reportagem sobre os relatos dos moradores, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que as “operações realizadas na comunidade de Paraisópolis têm como objetivo garantir a segurança da população local, preservar vidas e coibir ações criminosas, sempre seguindo os protocolos operacionais e as diretrizes institucionais estabelecidas”. Segundo a nota, “Polícia Militar realiza rotineiramente a Operação Impacto Paz e Proteção, com o objetivo de combater atividades ilícitas e assegurar a segurança dos moradores e do entorno”.
A pasta também afirmou que todas as ocorrências são prontamente investigadas e, caso confirmadas, severamente punidas, mas não deu detalhes de punições de policiais relacionadas aos casos citados.
Para Renata Alves, liderança comunitária em Paraisópolis, o cenário do bairro reflete uma política de segurança pública voltada ao controle e à repressão da juventude periférica. “A presença de um governador vindo do Rio de Janeiro, que aplica em São Paulo a mesma política repressiva adotada lá, reforça uma lógica de Estado que tenta inibir a existência das periferias”, afirma.
Repressão contra o funk avança no Legislativo
Enquanto as ações violentas da PM e a repressão aos bailes funk em Paraisópolis se intensificam, uma onda de propostas contra gêneros musicais como o funk, o rap e o trap avança no Legislativo brasileiro. De acordo com levantamento da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJRacial), entre 2002 e maio de 2025, foram identificadas 130 proposições legislativas com o objetivo de criminalizar o funk.
Apenas nos cinco primeiros meses de 2025, já são 63 propostas em tramitação buscando censurar esse gênero musical. Cinco estados concentram 51% de toda essa produção legislativa: o primeiro é o Rio de Janeiro (14%) e São Paulo aparece em terceiro, junto com Pernambuco.
Em janeiro de 2025, a vereadora Amanda Vettorazzo (União Brasil) protocolou na Câmara Municipal de São Paulo um projeto de lei que proíbe o uso de verbas públicas para contratar artistas que, segundo o texto, “promovam, incentivem ou façam apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas ilícitas”, especialmente em eventos voltados ao público infantojuvenil.
O projeto, que ficou conhecido como “Lei Anti-Oruam”, faz referência ao nome artístico do rapper Mauro Mateus dos Santos, de 24 anos, nascido no Complexo do Lins, no Rio de Janeiro e filho de Marcinho VP, preso desde 1996 por ser um dos líderes do Comando Vermelho. Nas redes sociais, a vereadora alegou que Oruam “abriu a porteira para que rappers e funkeiros começassem a endeusar criminosos”.
O texto foi protocolado no dia 4 de fevereiro de 2025 e contou com a assinatura de 46 deputados, que apoiam a aplicação da proibição nas esferas federal, estadual e municipal. Para entrar em vigor, o projeto ainda precisa ser analisado por comissões da Câmara e do Senado, além de passar pela sanção do presidente da República. Além disso, o projeto inspirou mais de 130 projetos similares em pelo menos 80 cidades brasileiras.
Ao mesmo tempo, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), na Câmara dos Deputados, aprovou um artigo incluído na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) que retoma parte do conteúdo da chamada “Lei Anti-Oruam”. Embora não seja o projeto original, trata-se de uma medida semelhante incorporada à lei orçamentária, com o objetivo de proibir o uso de recursos públicos em eventos que façam apologia ao crime.
Para Thiago Torres, sociólogo, professor e funkeiro, conhecido como “Chavoso da USP” nas redes sociais, a lei Anti-Oruam não tem valor jurídico novo e serve apenas como ferramenta de estigmatização. “O que existe é uma tentativa de instaurar uma censura prévia disfarçada de política pública”, argumenta.
A prisão do MC Poze do Rodo, em 29 de maio de 2025, também gerou forte repercussão e reacendeu o debate sobre a criminalização da cultura periférica. A operação, conduzida pela Delegacia de Repressão aos Entorpecentes (DRE-RJ), ocorreu em sua residência no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro. As autoridades alegaram que as letras das músicas de Poze incitavam o crime e apontaram suposta ligação do artista com a facção criminosa Comando Vermelho.

MC Poze foi solto quatro dias após a prisão, por habeas corpus. Sua libertação foi comemorada por cerca de 300 fãs e familiares que se reuniram em frente ao presídio de Bangu 3.
No dia 11 de julho, sua gravadora, Mainstreet Records, anunciou que todos os shows e turnês de MC Poze foram cancelados por ordem judicial, tanto no Brasil quanto no exterior.
Para Renata Prado, pedagoga, pesquisadora e articuladora nacional da Frente Nacional de Mulheres no Funk, existe uma ofensiva institucional contra o funk. “Ao longo da história, vemos a perseguição do poder público, da segurança e do Judiciário ao funk. É sempre a mesma lógica: associam o gênero ao tráfico e ao crime organizado porque é uma cultura que vem da periferia”, afirma.
“Para o poder público, jovens se reunindo ao som de funk é sinônimo de baderna. Mas, na verdade, eram só jovens querendo existir enquanto grupo, enquanto identidade”, acrescenta.
CPI dos Pancadões
Em São Paulo, a CPI dos Pancadões, que foi instaurada na Câmara Municipal, em 13 de maio de 2025, também tem os bailes funk como um dos alvos. A proposta do vereador Rubinho Nunes, do União Brasil, tem como objetivo investigar possíveis falhas dos órgãos públicos municipais na fiscalização da perturbação do sossego causada por festas e eventos de rua.
Diversos artistas e influenciadores ligados ao funk foram convocados para depor.Na primeira reunião da CPI, realizada em 5 de junho de 2025, a comissão analisou e aprovou 17 requerimentos. Entre eles, dois pedem informações das forças de segurança pública sobre as ações relacionadas aos bailes funk.
Um dos requerimentos, de autoria do vereador Kenji Ito, do Podemos, solicita esclarecimentos ao comandante do 11º Batalhão sobre as operações de combate às festas irregulares; o outro, apresentado pela vereadora Amanda Paschoal, do Psol, requisita ao Comando de Policiamento da Capital um detalhamento das intervenções realizadas em bailes funk e festas de rua.
Em seu canal do YouTube, o vereador Rubinho Nunes, presidente da CPI dos Pancadões, mantém uma playlist chamada “Fim do baile funk e pancadão”, onde publica vídeos de operações realizadas com apoio da PM em diferentes territórios da cidade. Um dos vídeos da série, publicado em 11 de agosto de 2024, mostra uma ação em Paraisópolis e carrega o título: “Paraisópolis – o pior aconteceu no Baile da 17”, onde ele aparece de colete em uma ação junto com policiais. No Instagram, o vereador escreveu: “acabando com o pior baile funk de São Paulo: Baile da 17, em Paraisópolis.”
No vídeo, de agosto de 2024, Rubinho afirma que “Paraisópolis consta como uma fazenda e que a única coisa que ele está vendo são os animais que frequentam o pancadão”, enquanto realiza uma ronda com a polícia, exibindo a apreensão de equipamentos sonoros em comércios e adegas da região.
“Ele [Rubinho] fez apreensões irregulares. Os comerciantes querem regularizar seus negócios, mas a burocracia na periferia é cinco vezes maior. Somos vistos como irregulares para tirar alvará, mas pagamos impostos normalmente. É contraditório”, afirma Renata Alves, que acompanhou uma dessas operações e criticou a conduta do vereador, apontando que ele usou o território como palco de espetáculo e humilhação.
O atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), demonstra apoio a projetos que reprimem os bailes funk e pancadões, como o Pacote Anti-Crime, que prevê ações repressivas contra os bailes. Ao mesmo tempo, a própria gestão de Nunes criou em 2023 a Coordenadoria de Políticas Públicas do Funk, uma iniciativa que reconhece o gênero como uma expressão cultural legítima e busca promover políticas públicas voltadas ao setor.
Para Thiago de Souza, professor de Música Clássica e doutor em Funk pela USP, os ataques ao funk são uma estratégia da extrema direita para ganhar visibilidade, mirando expressões populares, especialmente periféricas, para conquistar espaço no cenário político. “Essa perseguição funciona como uma engrenagem simbólica: ajuda a construir, na mídia e na opinião pública, a imagem de que o pobre, o preto e o favelado, justamente quem faz o funk são perigosos por natureza”, explica.
Segundo ele, essa construção não é casual. Quando a sociedade assimila essa narrativa, naturaliza a violência policial, permitindo que jovens negros morram sem gerar comoção ou resposta social.“Não é uma questão moral ou musical, mas um pretexto para justificar o extermínio da população periférica.”
O presente e futuro do funk em São Paulo
Segundo Renata Prado, a Frente Nacional de Mulheres do Funk está construindo articulações com o poder público e com a sociedade civil, por meio da Frente Estadual Parlamentar do Funk, para garantir uma atuação efetiva na CPI dos Pancadões. A intenção é ocupar esse espaço com vozes que representam de fato o movimento, priorizando escuta, diálogo e reconhecimento da cultura.
Para a ativista, a CPI deveria tratar o funk como manifestação cultural e reunir representantes do movimento, do poder público, de associações de moradores e da sociedade civil. O objetivo seria pensar coletivamente soluções para os bailes funk que respeitem tanto os direitos culturais da juventude quanto às demandas das comunidades onde esses eventos acontecem. “A ideia é construir um espaço que funcione para todo mundo”, diz.