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Entrevista

Mortes em mina de cobalto no Congo revelam injustiças na transição energética

Especialista do Zimbábue defende mecanismo para países do Sul Global negociarem transição com nações ricas

Entrevista
19 de novembro de 2025
14:02
A unidade industrial Gécamines (Générale des Carrières et des Mines) em Lubumbashi, República Democrática do Congo
Nesta Lumbala/Wikimedia Commons

Na 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30), em Belém, enquanto diplomatas de 194 países discutiam como fazer com que as mudanças rumo a economias menos emissoras de gases de efeito estufa não acabem por aprofundar desigualdades — a chamada “transição justa” —, do lado de fora da conferência, a transição injusta mais uma vez mostrava sua cara. Nesta segunda-feira, 17 de novembro, a queda de uma ponte em uma mina de cobalto e cobre na República Democrática do Congo matou pelo menos 32 pessoas.

Segundo as autoridades, mineiros artesanais – ou garimpeiros, como diríamos no Brasil – forçaram a entrada na mina de Kalando, de cobre e cobalto, mesmo depois de terem sido banidos do local. De acordo com uma associação local, tiros por parte de militares provocaram pânico entre os mineiros, que correram por uma ponte improvisada, erguida para atravessar um trecho inundado pelas chuvas e que acabou colapsando.

Cerca de 2 milhões de pessoas no país trabalham na indústria de mineração artesanal, que atende a demanda global de cobre, cobalto e outros minerais críticos para a transição energética. A República Democrática do Congo possui as maiores reservas e é o maior produtor global de cobalto, usado na bateria de carros elétricos, como os produzidos pela empresa americana Tesla. Segundo o Banco Mundial, a mineração artesanal responde por entre 10% e 20% da produção de cobalto do país, a depender da estimativa.

  • Folhas de cobre das minas de Katanga, no Congo
  • Mina de cobre de Katanga, no Congo
  • Trabalhador da mina de Katanga, no Congo

Porém, enquanto a montadora do homem mais financeiramente rico do mundo lucra cerca de 3.150 dólares (R$ 16.927) com a venda de cada carro elétrico, um trabalhador da mineração na República Democrática do Congo costuma receber menos que 150 dólares (R$ 806) de salário mínimo, conforme levantamento da Oxfam. Ainda de acordo com a organização, o país africano recebe apenas 10% de royalties pela extração de minérios. 

O contraste não passou despercebido na COP30, principal conferência global sobre mudanças climáticas. Nesta terça-feira,18 de novembro, ativistas da República Democrática do Congo, de organizações de justiça climática e grupos feministas fizeram um protesto para denunciar a “transição energética verde” e pedir por uma “transição justa”, que não reproduza dinâmicas coloniais e modelos predatórios nos países em desenvolvimento. 

“A corrida moderna pelos minerais do Congo, que abastecem a transição energética e o setor de inteligência artificial, deixou um rastro de morte, destruição e deslocamento, com impactos devastadores sobre as pessoas e o meio ambiente”, disse Maurice Carney, da organização Friends of the Congo, em uma declaração antes do protesto.

Com cartazes que clamavam “pelo fim do saque de cobalto”, “sem assassinato por minérios” e “a transição energética do Norte Global está banhada com o nosso sangue”, eles denunciaram o que consideram um sistema que lucra a partir da pobreza das pessoas em países em desenvolvimento, concentrados principalmente no chamado Sul Global, como países africanos, latino-americanos e asiáticos. 

“Os minerais da transição estão sendo extraídos de um país em que apenas 10% da população tem acesso à eletricidade”, afirmou Melanie Chiponda, que trabalha com direito das mulheres.

Durante o ato, Chiponda, que é originalmente do Zimbábue, contou que em seu trabalho com grupos de mulheres na República Democrática do Congo, um rapaz pediu para participar representando a mãe dele, que trabalhava como mineira artesanal. “Ele disse que todas as manhãs, quando ela saía para trabalhar nas minas, ele rezava, porque não sabia se ela ia voltar viva ou morta”, relatou ela.

“Esse é o tipo de vida que nossas crianças estão vivendo, uma vida de medo, medo desse modelo que é baseado na extração para alimentar um sistema global de acumulação”, afirmou Chiponda.

Os ativistas denunciaram, ainda, a violência sexual cometida contra mulheres nas áreas de mineração e demandaram que o respeito aos direitos humanos na cadeia da mineração seja incluído nas decisões sobre transição justa na COP30.

Transição justa é uma das metas da COP30

A transição justa é um dos itens da negociação diplomática formal da conferência. A expectativa é que, depois de dois anos de discussões em um grupo de trabalho, os 194 países cheguem a um acordo sobre o que é uma transição justa, quais princípios ela deve seguir e o que fazer para ela acontecer.

“A transição já está acontecendo, mas é uma transição da elite”, diz Kudakwashe Manjonjo, especialista em transição justa na Climate Action Network (rede que reúne quase 2.000 organizações climáticas de mais de 130 países) e especialista em minerais críticos e industrialização na Power Shift Africa, organização africana que produz análises e busca soluções para a crise climática no continente.

Organizações da sociedade civil, como a Climate Action Network, defendem a criação do chamado Mecanismo de Ação de Belém (BAM, na sigla em inglês), que teria três funções principais: coordenar as diferentes iniciativas de transição justa ao redor do mundo, que hoje estão espalhadas por diferentes instituições; garantir o compartilhamento do conhecimento, como planos que deram certo e bons exemplos de políticas públicas; e facilitar o acesso à tecnologia necessária e a possíveis financiadores.

Logo nos primeiros dias da conferência, o grupo dos países em desenvolvimento e a China apoiaram uma proposta similar para estabelecer um mecanismo dentro da ONU que possa atuar como uma plataforma para garantir o avanço de transições justas. Já a União Europeia propôs a criação de um “plano de ação”. As propostas, eventualmente, podem se juntar, mas as negociações seguem em andamento.

Em entrevista à Pública, Manjonjo, que trabalha no Zimbábue e é pesquisador de doutorado em desigualdade econômica, falou como um mecanismo poderia garantir que grupos sociais como os mineiros artesanais no Congo sejam incluídos nas mudanças produtivas. Ele também defendeu que os países que detêm reservas de minerais críticos para as tecnologias da transição passem a negociar em conjunto para garantir a transferência de tecnologia, o que poderia acontecer por meio de um mecanismo formal. 

Leia abaixo a entrevista, editada para melhor compreensão.

Como a tragédia que aconteceu no último sábado, 15 de novembro, na República Democrática do Congo se relaciona com o que está sendo discutido aqui na COP30?

Às vezes, quando se está nas negociações, é difícil explicar por que os textos são importantes para as realidades que as pessoas vivem. Nesse caso específico, com mineiros artesanais [garimpeiros] no Programa de Trabalho sobre Transição Justa, nós estamos pressionando por um mecanismo de transição justa, o Mecanismo de Transição Justa de Belém, como a sociedade tem chamado. E o motivo para isso é que um mecanismo global poderia apoiar o compartilhamento de conhecimento e mobilizar recursos para todas as transições justas. Uma delas é a transição dos minerais críticos.  

No continente africano e de forma geral no sul global, nós temos muita mineração artesanal que fornece cobalto, óxidos, cromo, vários minerais que são vitais para a transição energética como a conhecemos. Mas eles não são reconhecidos em nenhuma plataforma global, nenhum acordo global vinculante. Então, a relação é essa: como um mecanismo de transição justa vai apoiar grupos sociais esquecidos, como mineiros artesanais, indígenas, entre outros.

Você mencionou o cobalto. A República Democrática do Congo é a maior fornecedora de cobalto no mundo, usado inclusive em carros elétricos, como os produzidos pela Tesla – empresa do homem mais rico do mundo. Enquanto isso, os mineradores artesanais são, em sua maioria, trabalhadores informais que ganham menos de um salário mínimo. A tecnologia “verde” está aprofundando as desigualdades?

O capitalismo está aprofundando desigualdades. Não é a tecnologia em si. A tecnologia é sempre uma coisa boa, só depende de como ela é usada. A tecnologia não é o problema, o problema é o sistema no qual está baseada a tecnologia. Então, quando nós falamos dos minerais críticos e de veículos elétricos, nós não precisamos de mais Teslas. 

Essa é a minha primeira vez em Belém, e o que nós precisamos é de transporte público, de ônibus que rodem com baterias elétricas. Nós precisamos focar naquilo que realmente endereça as necessidades das comunidades, não coisas como Teslas.

Sinceramente, nós não precisamos de mais sedans ou de baterias maiores. O que o mundo precisa, do ponto de vista climático, é de mais ônibus que ajudem as pessoas a se locomover – inclusive primeiro para aqueles que não tem qualquer meio de transporte. E também para aqueles que hoje dependem de carros movidos a combustíveis fósseis terem uma opção que não os faça acabar em um carro. Então esse é o ponto: o sistema macro em vigor é onde está nosso problema. E a transição justa é parte disso: há muitas pessoas sendo deixadas para trás. Nós estamos clamando por uma transição justa, mas uma transição já está acontecendo, mas é uma transição da elite. As pessoas que podem comprar painéis solares por si próprias, as pessoas que conseguem comprar carros elétricos. Uma transição justa não deveria deixar ninguém para trás. 

E, nesse caso, nós estamos dizendo que a mineração de cobalto não deveria ser para sempre. Nós deveríamos minerar até um ponto que apoie o uso público e que esse uso público apoie mineiros artesanais e suas comunidades. Para que – esperamos – um dia a gente foque em reciclar muitos desses minérios, ao invés de sempre minerar.

Ainda falando de minérios. O sul global possui as maiores reservas. O norte global e a China têm a maioria das “patentes verdes” de tecnologias. Essa assimetria está sendo discutida nas negociações?

Sim, tem uma frase no texto que fala de tecnologia e nós vemos que o Norte Global está tentando empurrar isso para fora, “nós não queremos compartilhamento de tecnologia” ou nenhuma linguagem que fale de compartilhamento de patentes, por exemplo. Eles não querem isso, porque esse é o poder deles.

Eu penso nisso de duas maneiras. O tipo de tecnologia que nós estamos pedindo não é a tecnologia mais avançada de última geração, de data centers e coisas do tipo. Nós precisamos de tecnologia que nos tire da pobreza. E essa tecnologia já está disponível e não é de muito valor para eles [países do norte global].

Mas você mencionou um ponto importante: nós temos muitos minérios. O que também é importante é que os países com minerais comecem a negociar e a dizer: “nós não vamos continuar vendendo para vocês se vocês não nos derem tecnologia adequada para o nosso próprio desenvolvimento”. E não só painéis solares, mas também tecnologias de processamento, o que basicamente significa fazer uma mineração, uma extração melhor. A China tem algumas dessas tecnologias que hoje estão bloqueadas. Então, a China poderia fazer muito quando, ao investir em mineração na América do Sul, África ou no resto da Ásia, fornecer a melhor tecnologia para que a gente não acabe com enormes barragens de rejeitos que ainda contêm minerais, mas que não foram minerados adequadamente. 

Então, existe essa questão: não estamos recebendo a tecnologia adequada de que precisamos. Mas também não estamos negociando os minerais de forma a garantir que não ficaremos para trás. Nós precisamos da tecnologia adequada para sair da pobreza. 

Os países africanos e latino-americanos estão tentando fazer a negociação avançar nessa direção?

É parte, mas hoje está desconectado. E é isso que o mecanismo pode fazer. Nós precisamos de uma plataforma para que a negociação aconteça. 

O G20, por exemplo, está tentando criar um marco para minerais críticos, que teria uma abordagem muito ligada ao desenvolvimento, em termos de transparência para tecnologia. O Sul Global está pressionando, dizendo que quer condições melhores e capacidade de negociar. Se não conseguirmos no G20, precisamos avançar com esse mecanismo para ter esse espaço de negociação. Por que? O G7 [grupo das sete maiores economias do mundo] teve uma reunião no Canadá no início deste ano. E eles fizeram um acordo sobre como querem garantir o fornecimento de minerais críticos, então eles já têm um acordo como Norte Global.

Qual é o nosso acordo, enquanto Sul Global, em relação a como fornecemos esses minerais, agregando valor em nossos países? Precisamos chegar a esse ponto. É difícil. Não há nada de errado nisso. Mas é possível. A Indonésia fez isso com o níquel com a China, o que atraiu investimentos. A África do Sul atualmente está propondo regulações de exportação para cromo. Zimbábue e Namíbia estão proibindo exportações de lítio bruto, algo que poderia ser feito também no Chile. O importante é fazermos isso juntos, para que daí a China não “fuja” do Zimbábue e vá para o Chile pelo mesmo mineral, porque daí todos saberão que é um acordo global. É nisso que precisamos pensar. Nós estamos fazendo as coisas certas, mas cada país individualmente, precisamos de mais coordenação – e isso é algo que o mecanismo faria. 

Ainda falando do que aconteceu na República Democrática do Congo. Segundo a imprensa, o governo vem incentivando os trabalhadores a aceitarem uma oferta de capacitação no agronegócio, o que é uma grande mudança. Esse tipo de mudança de carreira é adequada para os trabalhadores?

O mundo é um lugar muito diverso. Mas nesse caso, mineiros artesanais sendo orientados a migrar para o agronegócio, isso se deve ao fato de que muitos não trabalham apenas com mineração, eles também são agricultores. As pessoas têm múltiplas identidades, inclusive do ponto de vista econômico. A transição justa precisa levar isso em conta: as pessoas não são apenas trabalhadores. Elas são membros de uma comunidade, elas são parte de todas essas coisas que compõem uma vida. E isso implica na forma que oferecemos soluções – elas precisam ser diferentes para cada situação e para cada cenário. 

Nesse caso, o que precisamos é reconhecer essas pessoas e apoiá-las do ponto de vista territorial. Quando pensamos em mineração, muitas vezes achamos que só deveria existir a mineração das grandes empresas. Isso é errado. A mineração artesanal, quando apoiada de forma adequada, pode ser responsável, ambientalmente consciente — e como esses trabalhadores já fazem parte da cadeia produtiva, estaríamos enfrentando muitos dos problemas ambientais atuais.

E outro exemplo, no caso dos trabalhadores da indústria do carvão, na África do Sul, Zimbábue, Zâmbia…

Brasil…

Sim, Brasil. Precisamos entender que, primeiro: proteção social é fundamental para eles. As empresas para as quais trabalham ganham dinheiro suficiente para sustentar um fundo de proteção social no caso de demissões, seja por mudanças tecnológicas ou por transições energéticas.

Mas, mais importante — e aqui está o ponto central — precisamos enxergar a vida de um minerador de carvão como algo que não é apenas mineração. Eles podem fazer muitas outras coisas. Há requalificação possível e muitos empregos potenciais. Um aspecto importante, segundo pesquisas na África, é que as energias renováveis podem gerar mais empregos do que as fontes fósseis — e não estamos falando sobre isso o suficiente.

E, de novo, por isso um mecanismo seria importante. Porque um país não tem como fazer isso sozinho. Nós podemos aprender uns com os outros e precisamos de uma plataforma coordenada para acelerar o processo.

A União Europeia fez uma contraposta: um plano de ação em vez de um mecanismo. Há uma resistência por temor que existam mais obrigações financeiras?

As duas propostas têm convergências. Mas um mecanismo de transição justa não será caro – 2 ou 3 milhões de dólares para manter um escritório e funcionários. Na África do Sul, literalmente gastaram 300 milhões em um plano de transição energética justa que não gerou resultados concretos, porque estava excessivamente focado em contratar consultores para nos dar ideias e mais ideias. Então, já há dinheiro sendo gasto em uma transição justa. 

O que estamos dizendo é: vamos ser um pouco mais inteligentes nisso. Vamos investir primeiro nessa instituição. 

E claro, nós não trabalhamos ainda os meios de implementação no financiamento público. É por isso que o artigo 9.1 [que diz que os países desenvolvidos precisam mobilizar recursos para os países em desenvolvimento] é algo tão importante. Ainda estamos buscando esse financiamento público, que depois vai alimentar o mecanismo. Mas isso não pode ser usado como desculpa para não criar o mecanismo. O mecanismo pode funcionar muito bem. E o financiamento para a transição justa certamente virá à medida que nós, do Sul Global, continuemos pressionando.

Edição:
Domínio Público/Wikimedia Commons
Domínio Público/Wikimedia Commons
Domínio Público/Wikimedia Commons
Isabel Seta/Agência Pública
Isabel Seta/Agência Pública
Isabel Seta/Agência Pública
Kudakwashe Manjonjo/Cortesia

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