A 19ª edição do Acampamento Terra Livre, que será promovida na próxima semana em Brasília, terá a questão do clima como uma das pautas centrais. Na quarta-feira (26), os indígenas presentes à principal assembleia dos povos originários do país vão decretar emergência climática. A intenção é reforçar seu papel, já identificado pela ciência, no combate ao aquecimento global. As terras indígenas funcionam como escudo contra o desmatamento, a principal fonte das emissões de gases de efeito estufa no Brasil.
“A ideia de decretar emergência climática é trazer para o debate o fato de que os povos indígenas fazem parte da solução. Mas para que nós possamos contribuir, tem que haver o engajamento e o comprometimento do poder público e do setor privado”, afirma Dinamam Tuxá, um dos coordenadores executivos da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organizadora do evento, que ocorre todos os anos na capital federal desde 2004.
Estudos científicos apontam que os territórios indígenas, sobretudo quando formalmente reconhecidos pelo Estado, têm sido as barreiras mais efetivas contra o desmatamento, fator que contribui para as mudanças climáticas a nível global. Dados do MapBiomas revelam que, de 1990 a 2020, as terras indígenas do país perderam apenas 1% de sua área de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas essa perda foi de 20,6%. Além disso, as florestas, que os indígenas ajudam a proteger, absorvem CO2 da atmosfera, desempenhando a função de estoque de carbono, e regulam os regimes de chuva.
A retomada das demarcações, totalmente paralisadas na gestão de Jair Bolsonaro (PL) e que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se comprometeu a destravar, também é a principal pauta do movimento indígena no debate climático. Havia a expectativa de que treze terras indígenas aptas para homologação – a etapa final do rito de demarcação – tivessem seus processos finalizados nos primeiros cem dias de governo Lula, o que não aconteceu. De acordo com as lideranças ouvidas pela Agência Pública, há a chance de o governo anunciar as homologações antes ou justamente no evento da semana que vem. Na edição do ano passado, diante de 8 mil indígenas, Lula, ainda pré-candidato, prometeu, que, caso eleito, homologaria todos os territórios indígenas até 2026 e falou pela primeira vez em criar um ministério para “assuntos indígenas”.
Segundo a Pública apurou, a reivindicação para que as demarcações avancem deve constar em um documento que será divulgado na próxima quarta-feira (26), dia em que será decretada a emergência climática no acampamento. Na ocasião, também será anunciada a reativação dos trabalhos do Comitê Indigena de Mudanças Climáticas (Cimc) da Apib. “O comitê já existia, mas infelizmente, nos últimos seis anos, principalmente nos últimos quatro, com a inoperância dos espaços de participação social [no âmbito do governo federal], ele ficou um pouco paralisado”, diz Kleber Karipuna, também coordenador executivo da Apib. A intenção é que o comitê sirva para posicionar o movimento indigena na discussão sobre o tema em nível nacional e no exterior e aumentar a interlocução com os governos nessa área.
Para os indígenas brasileiros, o momento é estratégico para incidir sobre o debate das mudanças climáticas. Há anos, eles levam delegações às Conferências do Clima da ONU, onde têm ganhado o reconhecimento da comunidade internacional pela eficiência na preservação das florestas e da biodiversidade, e se articulam com povos de outras regiões do mundo para projetar suas demandas. Agora, a ideia é voltar a trabalhar de maneira mais intensa essa mobilização no contexto doméstico, aproveitando a retomada da agenda ambiental e climática pelo governo Lula, a criação do Ministério dos Povos Indígenas, comandado por Sônia Guajajara – que conta com um Departamento de Justiça Climática – e a primeira presidência indígena da história da Funai, comandada pela ex-deputada federal Joenia Wapichana.
Justiça climática
Com a decretação de emergência climática, a Apib também pretende chamar a atenção para o fato de que, apesar de pouco terem contribuído para a eclosão da crise global do clima, os indígenas são altamente vulneráveis aos seus impactos, como apontou um dos últimos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). Isso ocorre porque eles dependem diretamente dos recursos naturais e da biodiversidade para a manutenção de suas práticas tradicionais e, em última instância, de sua sobrevivência.
Por isso, eles querem participar da elaboração de políticas de ação climática do governo federal, afirma Dinamam Tuxá, que também cobra o engajamento dos demais poderes nessa direção: “Não adianta a gente discutir mudanças climáticas se o Congresso Nacional faz proposições que vão na contramão do combate a esse problema. Vamos incidir contra as PECs e PLs que afetam não só o meio ambiente, mas os direitos dos povos indígenas. Queremos o arquivamento dessas propostas”. Logo no primeiro dia do Acampamento Terra Livre, haverá uma manifestação em frente ao Congresso Nacional pedindo a derrubada de projetos de lei como o 191/2020, que propõe liberar a mineração em terras indígenas. No fim de março, o governo Lula solicitou ao Congresso que a matéria fosse retirada de tramitação, mas a Câmara dos Deputados ainda não acatou o pedido.
Já em relação ao Judiciário, Tuxá explica que a principal demanda é a rejeição à tese do marco temporal, cujo julgamento se arrasta há anos no Supremo Tribunal Federal (STF) e deve ser retomado pela Corte em 7 de junho. “Se essa decisão não for favorável aos povos indígenas, acaba afetando as demarcações”, pontua o coordenador executivo da Apib.
Financiamento direto e mercado de carbono
Conforme a Pública apurou junto às lideranças da Apib, a declaração a ser divulgada no dia 26, ainda em elaboração, pode trazer outros pedidos do movimento indígena no âmbito das discussões sobre clima.
Uma das possibilidades é a demanda por financiamento climático direto às organizações indígenas, que praticamente não acessam os recursos doados por governos de países desenvolvidos e entidades filantrópicas, e que aguardam o cumprimento da promessa de doação de 1,7 bilhão de dólares anunciada na Conferência do Clima de ONU em 2021, a COP26, pelos governos do Reino Unido, EUA, Alemanha, Noruega e Países Baixos, com a participação de 17 fundações, para que povos indígenas de todo o mundo fortaleçam a proteção de seus territórios e ajudem no combate às mudanças climáticas.
O primeiro relatório de transparência do grupo de financiadores, divulgado em novembro do ano passado, mostrou que mais de 90% da verba empregada para o cumprimento do compromisso em 2021 ficou na mão de intermediários, principalmente de ONGs internacionais, que realizam projetos voltados aos povos originários. Com o objetivo de acessar o financiamento diretamente, comunidades indígenas de vários lugares do mundo construíram mecanismos geridos por suas próprias organizações. Há pelo menos dois desses no Brasil: o fundo Podáali, mantido pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), e o Fundo Indígena do Rio Negro (FIRN), que atende aldeias na região da tríplice fronteira com Venezuela e Colômbia.
Outra questão que pode estar presente no documento é criação de salvaguardas em iniciativas de venda de créditos de carbono florestais (os chamados projetos de REDD+), gerados de acordo com o desmatamento evitado. Projetos do tipo já foram denunciados pela imprensa por violações de direitos indígenas e de comunidades tradicionais no Brasil e em outros países amazônicos, como a Colômbia. “Não podemos e nem vamos impedir os povos indígenas de fazerem suas discussões, seus contratos e tomarem as decisões que avaliarem como necessárias para os seus territórios. O que a gente quer é criar mecanismos, salvaguardas e políticas que garantam minimamente os direitos indígenas no usufruto exclusivo dos seus territórios”, diz Karipuna.