Desde a minha infância, eu ouvia a fala dos anciões sobre as ameaças de barragens no rio das Mortes. Já adulto, participando do espaço da warã, o conselho político dos homens que se reúne a cada noite no centro das aldeias Xavante, ouvi novamente os anciões falarem sobre o tema:
“Usina hidrelétrica é perigoso, não presta, vai matar todos nós, as matas ciliares, o cerrado, os animais, os peixes, o rio e todos os córregos vão secar. Não vai ter mais peixes, tudo vai acabar. Os empreendedores não ficam preocupados com o rio e com todos os seres que vivem dentro e na beira dos rios. Os grandes empresários só ficam preocupados com dinheiro para encher o bolso deles para comer e viver bem só com a família, o futuro deles é bem viver com dinheiro.
“Se um dia nós concordarmos e aceitarmos a proposta dos empreendedores sobre a barragem, a usina vai nos acabar, as novas gerações não vão se criar e não vão crescer bem igual a nossa geração. Não vai haver mais a nossa vivência, o nosso lugar, nossa aldeia, nossa cultura, as gerações, nosso alimento, o cerrado, as matas, o rio e os córregos vão ser destruídos.
“Os grandes empresários não têm dó da gente nem dos rios. Nós nunca vamos abrir mão de nosso rio para os grandes empresários fazerem a barragem, para que a nova geração e nossos netos possam crescer bem. A luta não é fácil para nós contra grandes empresários, é bem difícil, mas nós não vamos deixá-los montar a barragem no rio. Se deixarmos eles fazerem a usina, vamos perder tudo o que nós temos. Por isso pensem bem, quando vocês crescerem, aprendam a lutar para defender os direitos, sua comunidade, o cerrado, as matas ciliares, os seres vivos, o rio e os peixes.
“Assim a nossa geração lutou para defender o rio, ele é o futuro de vocês e das novas gerações que estão vindo. Assim como vocês, quando crescerem também vão aprender a lutar para defender o rio, o futuro de nosso povo. Nós nunca vendemos os nossos direitos e o das nossas comunidades, porque a vida, a terra, o rio, os córregos, os peixes, o cerrado e a mata são importantes para nós. Nós usamos todos os córregos para beber, cozinhar, tomar banho, pescar e bater água para o nosso ritual de furação de orelhas. Para nossa vida o rio é importante, sem rio e sem água ninguém vive. Todos os córregos que vêm do rio trazem os peixes para podermos pescar e comer, o rio das Mortes e os córregos que saem dele dão a comida para nós, sem rio não tem peixe, nem comida e nem água para tomarmos banho e beber. E não somos só nós que dependemos do rio e dos córregos para beber e tomar banho, todos os seres também estão usando para beber e para tomar banho, pássaros, anta, tamanduá, queixada, tatu e mais seres tomando banho como a gente.”
Nosso povo se fixou nas margens do rio das Mortes, no Mato Grosso, onde o Estado brasileiro demarcou as Terras Indígenas (TIs) Pimentel Barbosa, Areões, São Marcos, a Terra do Merure (Bo’e Bororo) e Sangradouro. Há muitos anos, nossos caciques e lideranças recusam as propostas de projetos de Pequenas Centrais Hidrelétricas, as PCHs, no rio. A geração de nossos pais participou, em 2013, por exemplo, da luta contra a UHE Água Limpa e Toricuejo, que ameaçavam a existência da cachoeira da Fumaça, depois transformada em Área de Preservação Ambiental, na margem da TI São Marcos.
Bom Futuro para quem?
Depois de muitos anos, em 2019, a empresa Grupo Bom Futuro fez a primeira reunião informativa em Primavera Leste (MT) com os A’uwe Xavante da TI Sangradouro para apresentar os quatro projetos de centrais hidrelétricas no nosso rio: PCH Entre Rios, Vila União, Cumbuco e Geóloga Lucimar Gomes.
É importante lembrar que a mesma empresa construiu ao longo da última década no rio Juruena várias hidrelétricas, destruindo o rio dos povos Enauenê-Naue, Pareci, Nhambiquara e Rikbatsa, onde já não há mais peixes. Com esses quatros projetos de PCH no rio das Mortes, os empreendedores querem acabar com o rio onde a gente sempre pescou. Os grandes empresários querem acabar com o que nós temos para comer, peixes, anta, tatu, paca, queixada, caititu e tamanduá.
As PCHs vão afetar todos os seres que vivem na beira do rio, tudo vai se acabar, não vai ser igual como antes, as matas vão secar, o rio, os peixes vão morrendo, os animais, os pássaros vão morrendo e córregos vão todos secar.
Dando andamento ao processo de licenciamento das quatro obras, o Grupo Bom Futuro adotou a estratégia de dirigir-se somente à TI Sangradouro. Nessa TI foi fundada, durante a pandemia de covid-19, com o apoio do Sindicato Rural de Primavera do Leste/MT, uma suposta cooperativa de grãos, já multada pelo Ibama. A estratégia dos empresários de dividir o nosso povo resultou em que alguns membros da cooperativa já estão ao lado dos empreendedores. Uma liderança de Sangradouro falou na audiência pública, que a empresa realizou online, de forma irregular, que aceitará a proposta de usina, na ilusão de que a mitigação resolverá os problemas das aldeias. Sabemos que o dinheiro que oferecem não pagará o fim do peixe e da caça em nossas vidas.
Em 2022, foi realizada a primeira audiência pública da PCH Entre Rios para apresentar o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente (Rima), para mostrar para o povo A’uwe Xavante, pequenos agricultores, pescadores, fazendeiros e moradores na beira do rio das Mortes. Para os moradores da beira do rio saberem como vão ser afetados e quem vai ser impactado diretamente. Os participantes dessa primeira audiência não concordaram com o projeto porque não vai ter mais peixes e água doce no rio, as matas ciliares serão afetadas, a terra e os seres que vivem na beira do rio também.
Na audiência pública os representantes de pequenos e grandes agricultores não indígenas também não aceitaram a proposta de EIA e Rima, porque a terra é vida e o rio é vida e peixe, sem essas coisas a gente não vive. O Cerrado é importante, as PCHs não são importantes para nossas vidas, só vão destruir todos os seres.
“Diretamente afetado”: nosso rio
Nas três audiências públicas, a da PCH Entre Rios, uma única audiência para as PCHs Geóloga Lucimar Gomes e Cumbuco e a da PCH Vila União, convocadas pela empresa para as quatro PCHs, a empresa apresentou o EIA confirmando todos os danos que nossos anciões já tinham nos avisado. A fase seguinte do licenciamento que corre na Secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso é o Estudo do Componente Indígena (ECI), que a empresa quer realizar somente na TI Sangradouro. Nesse processo, a empresa está se apoiando na Portaria 60/2015, que fixa o limite das comunidades afetadas a somente 40 km da obra. Nesse caso, somente a TI Sangradouro seria considerada impactada diretamente, o que não é verdade.
O impacto das barragens propostas pelo Grupo Bom Futuro não será passível de mitigação sobre os peixes, sobretudo os que migram para se reproduzir, afetando gravemente as espécies que nos alimentam. A caça será impactada, pois as matas ciliares no entorno do rio são os corredores por onde migram os catetos, a anta, a capivara, paca, caititu, queixadas, que, com a presença do agronegócio de monocultura, são as únicas matas que restaram. O projeto de construção das hidrelétricas prevê inundar as matas ciliares.
A afetação maior será sobre a vida do rio, por isso os grandes empreendimentos são obrigados a fazer o estudo do potencial malarígeno, para os reservatórios de água parada que vão existir se a empresa construir as barragens. Dengue, chikungunya, febre amarela e malária são as doenças transmitidas pelos mosquitos que se reproduzem nos lagos das hidrelétricas. O EIA-Rima também apresenta o risco de propagação de doenças sexualmente transmissíveis, com os trabalhadores das obras das barragens nos municípios afetados pela obra.
Na sua estratégia de legalização das obras, a empresa considera que somente Sangradouro será “diretamente afetada”, mas o rio é vivo. O fluxo das águas não pode ser interrompido pela barragem, sob o risco de matar todos os seres que conhecemos.
Além de tudo isso, na tentativa de ultrapassar impedimentos legais , a empresa utiliza as atas das reuniões informativas que realizou em Sangradouro como se fosse a consulta do povo A’uwe Xavante. As quatro TIs às margens do rio das Mortes não foram consultadas e não estão sendo consideradas pela empresa.
A Consulta Livre, Prévia e Informada, segundo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), deve ser antecedida pela elaboração do Protocolo de Consulta, no qual definiremos quem será consultado. Segundo a lei que garante os direitos dos povos indígenas, a consulta deve anteceder o licenciamento de grandes obras.
Nossa forma de viver depende do rio das Mortes, as barragens em nosso rio ameaçam nossa existência física e cultural.
Na TI São Marcos, entrevistamos o senhor Caetano Moritu, que nos diz quem é o rio para os Xavante: “Sim. Os nossos antepassados atravessaram o rio das Mortes. Esse rio atravessa as nossas terras até Maraiwatsede. Sempre moramos na beira do rio, é ele que nos alimenta. Os peixes sobem os córregos até as aldeias. Como nossa mãe, ele nos dá o peixe, a comida, o leite. A gente precisa muito mamar o leite no peito da nossa mãe. A gente ama esse rio. Não podemos trair o rio por causa do dinheiro grande. Senão, como nossos netos e bisnetos vão viver depois da gente com a barragem no rio?”
Entrevistamos também o cacique Jurandir Siridiwé, da TI Pimentel Barbosa: “Sou cacique da aldeia Etenhiritipa, municípios de Canarana e Ribeirão Cascalheira. Estou acompanhando este projeto de usina que foi chamado PCH Entre Rios. O nosso rio, conhecido como öwawe por nosso povo, historicamente chamava rio Manso e, depois da colonização, com a ocupação do cerrado, foi chamado de rio das Mortes.
Se até os fazendeiros da cidade de Primavera do Leste são contra, como vimos muita gente falando contra esse projeto, por que entre os Xavante também poderíamos dizer não? Porque, se construírem a usina, nós que vivemos embaixo, como a cidade de Nova Xavantina, a TI Areões e a TI Pimentel Barbosa, o rio não vai ter mais o mesmo nível que ele tem hoje. E, no momento de construir, quando eles quiserem, vão fechar e abrir as comportas da barragem. O nível do rio vai diminuir muito, o rio vai secar. Quando abrir, vai ser alagamento. Então, já é impacto, já é um problemão. A empresa que quer construir não está se preocupando, não está nem aí com povo, não está nem aí com o problema, porque vamos ser afetados. Só falta isso pra poder entrar na linha do Protocolo de Consulta e, se for preciso, faremos processo legal. Quando chegar a consulta, vamos falar que não. Então eu já estou falando: eu sou contra a PCH no rio das Mortes. É bem preocupante… Essa família Blairo Maggi [ex-governador do MT e ex-ministro da Agricultura e Pecuária do governo Michel Temer], que já acabou com o cerrado, agora quer acabar com o rio das Mortes.
Os gigantes do agronegócio brasileiro, não satisfeitos em derrubar a vegetação do Ró, jogar veneno em toda a terra, abrir e asfaltar estradas em nosso território ancestral, agora querem represar os nossos rios. Há cerca de dez anos, construíram inúmeras hidrelétricas no rio Juruena, acabando com os córregos e o peixe dos povos indígenas. Agora, os mesmos grupos econômicos pretendem dar continuidade a esse projeto com riscos de destruir o nosso rio, danificando nosso território e acabando com nosso peixe.
Enquanto povo A’uwe Xavante já vivemos outras experiências de PCHs. Esse foi o caso da PCH Paranatinga II, no rio Culuene, onde a afetação sobre o peixe foi conhecida por todos na última década. Nada disso será benefício para nossas vidas, para a vida do Ró, o cerrado que conhecemos. Os Xavante vivemos com o rio, não podemos abrir mão do rio das Mortes.
Outro lado
Veja abaixo a íntegra da nota da Bom Futuro Energia:
“Os projetos de empreendimentos hidrelétricos no Rio das Mortes sob controle da Bom Futuro tramitam processo de licenciamento ambiental pelos órgãos competentes, seguindo o rito legal, e cumprindo as exigências mitigadoras e compensatórias previstas, sendo a área de influência dos empreendimentos objeto de estudo e monitoramento.”
Conheça o autor
Róptsudi Rãiwari
Meu nome é Róptsudi Rãiwari, nasci em 1982 na aldeia São Marcos, município de Barra do Garças – MT. Comecei meus estudos na aldeia e continuei em Campo Grande – MS, no colégio salesiano Dom Bosco e terminei no seminário. Depois fiz o primeiro ano de filosofia. Desisti do seminário em 2007 e voltei para a minha aldeia. Desde 2008, participo do movimento indígena, atuando junto à Federação dos Povos Indígenas do MT – FEPOIMT. Sou diretor atualmente de nossa Associação, a APSIRE.