A mão direita estendida, os dentes escondidos num sorriso discreto da boca miúda e a expressão de simpatia não revelam o transtorno que a pobre coitada passa todos os dias. Digo pobre porque as próximas cenas são vazias de entusiasmo; e coitada porque ninguém merece se manter de pé e com os olhos abertos 24 horas por dia na entrada deste plenário.
Poderia até ser um clichê de “ah, se ela falasse”, mas a última coisa que sairia dela seria fofoca; tudo é explícito e público. Optaria por gritos de raiva. E, ok, para não ser tão radical, vamos dizer que ela poderia cantar. Quem sabe Beatles? Help.
Aquela que representa o Senhor Diretas, o poeta, o deputado que peitou o regime militar, deveria estar na lista oficial de servidores do parlamento, com auxílio à insalubridade e um bônus de sei lá o quê. Arranjem algo, ela merece.
Afinal, ela já viu brasileiro erguendo bandeira americana com orgulho, quem usa a voz a serviço do medo falando em censura, o sentido de direitos humanos virando de ponta-cabeça feito ginasta olímpica e, se prepara que lá vem: infame sendo vangloriado, aplaudido e por pouco não tendo as botas lambidas ao vivo — alguém por favor tira essa cena da minha cabeça.
Querida estátua do Seu Ulysses, perdão não ter direcionado a mensagem desde o início a você. Mas é que antes era preciso detalhar um pouco do sofrimento que a vejo passar e a vida, ainda que inanimada, sendo mais difícil do que conjugar o verbo tumulto.
Se bem que tumulto sempre fez parte da trajetória daquele que você encarna em pedra. Afinal, ninguém espera só calmaria após propor anti-candidatura contra quem governava com boina, farda e sangue.
Se observar direito dá para entender o motivo de estar recolhida num cantinho, deve ser vergonha de alguns colegas dos tempos modernos. Falta de disciplina e hierarquia? Ah não, melhor não falar nisso que dá gatilho. Desculpa, nada de gatilho porque lembra a arma, e lá tem uma bancada bala no tema. Nada de arma e bala porque me vem logo à cabeça indicador para frente e polegar erguido. Traumas, né.
Aqui tudo afirmo de pé junto, mas com os dedos cruzados, claro, porque não tá dando para confiar nem em escultura. Vai que cai em cima de mim e depois ainda me acusa de impedir a liberdade de esmagar os outros.
Mas chega de baixo astral, são um metro e oitenta e cento e dez quilos de imponência. Você tem história, tem sentido, tem nome. É muito mais mais do que só uma imagem, um peso em cima do tapete verde com o olhar distante como quem procura espaço para fuga, sair desse local sem luz natural e cair numa praia, pegar um pouco de sol, embora o bronze esteja super em dia.
Continua com esse queixo erguido e a carequinha apontada ao teto. Tenha esperança, tenha fé, coragem e tudo mais que um bom coach diria. Vamos pensar no seu mindset, quem sabe não seja a grande questão. Ressignificar para sobreviver. A mesma mão que serve para hi-five também pode ser um grande aviso de “parem”.
Nota ao leitor: A estátua em homenagem a Ulysses Guimarães foi inaugurada na Câmara dos Deputados em 7 de outubro de 2019. Ulysses foi deputado federal por dez mandatos e presidiu o Congresso constituinte em 1988. Foi um árduo defensor da democracia e da constituição.