O sol forte faz o vapor subir nos asfaltos da cidade. A chuva, que antigamente caía todos os dias para aliviar o calor, hoje já não obedece à lei do tempo. No chamado “verão amazônico”, de junho a novembro, agora impera longos dias de estiagem. Banhada pela Baía do Guajará, Belém é uma mistura de belezas naturais e desafios urbanos profundos. Para seu 1,5 milhão de habitantes, morar na capital paraense é uma experiência de contrastes: a devoção ao Círio de Nazaré, a riqueza da culinária local e a vida pulsante às margens do rio convivem com a falta de saneamento básico, o custo de vida elevado e uma crise habitacional que se agrava a cada dia.
Nos últimos meses, Belém ganhou os holofotes nacionais devido aos valores cobrados em aluguéis e hospedagens para a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP30). No entanto, para quem vive na cidade, pagar caro para morar não é exatamente uma novidade, mas uma realidade histórica.
Dados do índice de preços ao consumidor (INPC-IPCA) do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em junho de 2025, comprovam essa tendência ao colocarem a capital como a que teve o maior aumento no preço dos aluguéis residenciais no primeiro semestre do ano, com uma alta de 5,95% – mais de dois pontos percentuais acima da média nacional.
Para entender os números por trás dessa estatística, que apenas escancara um problema crônico, é preciso mergulhar na história da cidade, em sua estrutura fundiária e no cotidiano de seus moradores.
Belém: peso do aluguel para quem mora
Alessandra de Paula, 51 anos, professora e carioca radicada em Belém há 44 anos, sente na pele o peso do custo habitacional. “É uma das cidades mais caras, em relação à renda. Belém não é uma cidade de uma renda alta e as pessoas não cobram preços considerando isso. Não tem um órgão, não tem nada que fiscalize, que regularize”, desabafa. Ela mora sozinha em um apartamento simples de dois quartos no subúrbio e paga R$ 900 de aluguel, valor que considera alto.
Contudo, ela afirma que não consegue se imaginar vivendo em outro lugar. “Eu amo morar em Belém, essa cidade tem uma coisa de que contagia e agrega. Belém é hospitaleira, festeira e, ao mesmo tempo, muito resiliente. No Círio de Nazaré eu reponho as energias para o ano todo. O círio define a minha existência e me fortalece”, diz a professora.
O bairro da Cremação, onde Alessandra vive, aparece na lista como um dos metros quadrados mais caros para aluguel na cidade, custando em média R$ 64,90/m², atrás apenas do Umarizal (bairro nobre), (R$ 67,80/m²) e do Jurunas (periferia) (R$ 67,30/m²). Com o crescimento da cidade, Cremação e Jurunas hoje são considerados bairros de borda, ficam entre o centro (bairros nobres) e a periferia mais recente. Com isso, a parte mais próxima do centro da cidade é supervalorizada em relação à que fica mais afastada.
O professor Dr. Raul Neto, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (UFPA), explica que essa disparidade é sintomática. “Proporcionalmente, em relação só de aluguel por metro quadrado, tu não tens uma diferença tão significativa entre um bairro de borda, como o Jurunas e um bairro nobre, como o Batista Campos. O preço de um kitnet em nível de metro quadrado é igual a de um apartamento de dois quartos num prédio médio. Aquela população que está alugando kitnet não está ganhando tanto quanto ganha uma pessoa que está alugando um apartamento em uma torre”, afirma.
Essa distorção é fruto do que os especialistas chamam de “cidade partida”. A professora Dra. Roberta Menezes Rodrigues, também da FAU-UFPA, traça um panorama histórico: Belém cresceu a partir da “primeira légua patrimonial”, uma porção de terra concedida à Câmara Municipal de Belém pela coroa portuguesa no século XVII, e que consistia a área rural da cidade. O investimento em infraestrutura e urbanização se concentrou fortemente nessa área central, que hoje abriga os principais equipamentos públicos, culturais e o mercado imobiliário de alta renda.
“Além disso, você tem uma área que ficou em um processo de certa indefinição por bastante tempo, uma estrutura, um resquício fundiário dessas grandes propriedades”, explica a professora. O resultado é uma metrópole onde bairros centrais como Umarizal, Nazaré e Batista Campos possuem infraestrutura completa – calçadas largas, arborização, praças, esgoto tratado –, enquanto a vasta “área de expansão” e as periferias consolidaram-se como um “grande mosaico ou uma colcha de retalhos de diferentes estratégias e formas de moradia”, muitas delas marcadas pela autoconstrução e pela absoluta carência de serviços urbanos básicos, explica a pesquisadora.
A crise da moradia e o medo da remoção
A falta de regulação e de dados oficiais sobre o mercado imobiliário é um problema crônico. O professor Raul Neto confirma: “A prefeitura não tem uma política de pesquisa sistemática sobre o preço de venda de imóveis ou de aluguel. O que a gente faz aqui na universidade é coletar preço de OLX, de site, e vai tentando extrair as médias até chegar num valor aproximado”.
A ausência de transparência ganhou novos contornos com os preparativos para a COP30. Alessandra relata o que muitos belenenses estão vivendo: “O impacto mais específico é relacionado à questão do alojamento. Você tem todo um estoque de imóveis que estão voltados para o aluguel comum, buscando a possibilidade de, em um curto período, conseguir altos valores de lucro”.
Proprietários estariam rescindindo contratos para colocar imóveis no mercado de temporada, alimentado por plataformas como Airbnb e incentivado pela expectativa do evento. “Isso tem um impacto grande para a oferta de imóveis para o aluguel, que já não é barato, porque você tem uma escassez de oferta de boa qualidade e boa localização, e agora a coisa ficou bem mais complicada”, afirma Neto.
O temor é que a COP30 deixe como legado um patamar permanentemente alto nos preços de aluguel e compra de imóveis, um fenômeno já observado em outras cidades-sede de grandes eventos. No Rio de Janeiro durante a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, bairros próximos ao Parque Olímpico e à zona portuária viveram forte especulação, remoções de moradores e preços de aluguel que seguiram altos mesmo após os jogos. Fora do Brasil, o impacto também foi profundo: Barcelona, após as Olimpíadas de 1992, enfrenta até hoje uma crise de moradia causada pelo aumento no turismo e na especulação; e em Londres, os Jogos de 2012 provocaram valorização no leste da cidade, empurrando moradores de baixa renda para fora da região.
A professora Roberta alerta que grandes obras da COP, como os parques lineares da Doca e de Tamandaré, embora apresentados como investimentos em saneamento, também servem ao interesse do mercado imobiliário de valorizar e verticalizar áreas específicas. Na área da Tamandaré, muitas famílias foram removidas sob pressão, um processo que pode se repetir. No pacote do que está sendo chamado de “legado da COP” há obras de infraestrutura em diversos pontos da cidade, cerca de 12 canais estão em obras e mais de 500 residências estão sendo removidas para a continuação das obras.

Energia cara no estado que é um dos maiores produtores do país
Se o aluguel é o vilão mais visível, as altas tarifas de energia elétrica são um problema antigo. Washington Nunes, 42 anos, belenense que trabalha em um restaurante, mora em casa própria no bairro da Condor, na periferia, com outras três pessoas. Apesar de não pagar aluguel, o custo de vida o aperta. “Belém é uma cidade muito boa com as pessoas, mas o que mais pesa no meu orçamento mensal é a energia elétrica. Não entendo como uma casa pequena de dois compartimentos chega a vir R$ 300 e até quase R$ 400. Isso quebra a gente sabe? E agora que vi que a Cosanpa [Companhia de Saneamento do Pará] foi vendida [privatizada] meu medo é as tarifas de água também subirem”, desabafa.
Quem também sofre com as altas taxas de energia é Beatriz Nunes Amorim, aposentada de 82 anos e avó de Washington. Vizinha do neto, ela mora sozinha em um cômodo com banheiro que mede seis metros quadrados. Em sua casa, tem uma geladeira, um ventilador, uma televisão e um fogão elétrico. A idosa denuncia que a sua energia já chegou a R$ 300, mas com muita economia conseguiu reduzir cerca de 30% da conta.
“Eu tinha três lâmpadas: uma dentro de casa, uma no banheiro e uma na porta para iluminar a entrada. Tirei. Agora a frente da minha casa fica no escuro. Para quem recebe um salário mínimo e precisa comprar remédios de mais de R$ 200, isso faz diferença. Mas tudo bem, a gente paga porque não pode ficar sem luz,” conta a aposentada.
Com o círio chegando, Beatriz pede que Nazinha (como os paraenses carinhosamente chamam a Nossa Senhora de Nazaré), faça os políticos olharem melhor para a cidade.
“Eu nasci e cresci aqui. Nesta cidade criei meus filhos. Não é mais só lixo e caroço de açaí na rua, essa rua era embaixo d’água, hoje tem asfalto e não preciso mais andar em pontes de madeira. Antes a gente ia com os meninos no ver-o-peso pedir cabeça de peixe pra fazer um caldo, hoje a gente consegue ir ao supermercado encher o carrinho, peço que Nazinha ilumine os políticos porque eu acredito que ainda dá para melhorar”, finaliza.
Embora o Pará seja o segundo maior produtor de energia elétrica do Brasil – com hidrelétricas gigantes como Belo Monte e Tucuruí, que juntas são responsáveis por cerca de 11% da eletricidade do Sistema Interligado Nacional – o estado tem a tarifa mais cara do país. Enquanto a média nacional é de R$ 0,731 por quilowatt-hora (kWh), no Pará o custo chega a R$ 0,962 por kWh.
A explicação para esse cenário está em uma combinação de fatores, dentre eles, a vasta extensão geográfica do estado, o que torna a implantação e manutenção da infraestrutura elétrica mais cara. A baixa densidade demográfica também encarece a operação e a expansão da rede elétrica.
O valor da tarifa é definido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), e a sua composição inclui custos de operação e expansão, impostos, além de geração e transmissão da energia. Com o fim do subsídio federal às distribuidoras privatizadas, do qual a Equatorial Pará, concessionária que assumiu o serviço em 2012, não pôde mais se beneficiar. Com isso, a população paraense, mesmo morando em um estado que exporta energia para todo o Brasil, segue arcando com contas de luz que pesam cada vez mais no bolso.
Cercada de águas, Belém vive problemas para abastecer as torneiras das residências
Belém, a “cidade das águas”, é marcada por sua geografia hidrográfica singular. Localizada na confluência do Rio Guamá com a Baía do Guajará, 65% do território da capital paraense correspondem a 39 ilhas e é atravessada por uma rede de igarapés, furos e bacias hidrográficas que moldam sua paisagem e o cotidiano de quem vive aqui.
A abundância de água, que poderia ser sinônimo de riqueza natural e qualidade de vida, também escancara os desafios históricos da cidade em relação ao saneamento básico. Ao longo dos séculos, a urbanização reconfigurou rios e áreas alagadas, conhecidas como “baixadas”, mas sem resolver de forma estrutural o problema da falta de infraestrutura.
Levantamentos do Instituto Trata Brasil, divulgados em 2024, mostram que 91% da população paraense não tem acesso à coleta de esgoto. Enquanto o estado se prepara para receber a COP30, moradores da capital seguem sem acesso ao mínimo de dignidade garantido pelo saneamento.
Hoje, a capital da Amazônia ainda convive com ruas inundadas, igarapés poluídos e uma população que paga o preço do descaso em saúde, habitação e dignidade. Afinal, como garantir uma cidade sustentável, capaz de receber grandes eventos globais e oferecer qualidade de vida, se o saneamento continua sendo um dos maiores gargalos de Belém?
A professora Roberta é enfática: “Acesso à água em Belém é um problema. A rede de distribuição atende basicamente a área central e algumas partes da área de expansão. Mas a área de expansão não está sendo atendida. Então você tem comunidades inteiras que não tem água e que vai furar o poço raso ou poço profundo. Isso é um problemão porque [entra] a gestão da água subterrânea, da contaminação. A relação disso com esgoto é um problemão”.
Ela destaca que a falta de políticas públicas de saneamento básico no processo de urbanização é a regra. “Quando você faz grandes investimentos na cidade, você está lidando também com uma expectativa enorme das pessoas de que finalmente vamos ter condições básicas dignas de moradia: não preciso meter o pé na lama, não preciso ficar preocupada com a chuva que cai, não precisa ficar preocupada se vai ter água na minha torneira ou não”, afirma Roberta.
Os investimentos da COP30 em saneamento, segundo ela, estão prioritariamente focados em melhorar a infraestrutura de bairros já consolidados e valorizados, como o Umarizal, em detrimento das áreas periféricas que mais necessitam. “É um momento de lidar com essas expectativas… na área central tem sido muito mais difícil você conseguir viabilizar uma produção de habitação de interesse social porque você tem áreas que estão disputadas pelo mercado imobiliário e essas áreas que têm recebido mais atenção”.
O custo da alimentação na cidade da culinária tradicional
Dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) de agosto de 2025 informam que o custo da cesta básica em Belém diminuiu 1,28%, ficando em R$ 687,30. Neste período, o valor da cesta básica caiu em 24 das 27 cidades pesquisadas, como destaque para Maceió (-4,10%), Recife (-4,02%), João Pessoa (-4,00%), Natal (-3,73%), Vitória (-3,12%) e São Luís (-3,06%).
Itens como arroz, feijão e óleo de soja tiveram quedas significativas no acumulado do ano. No entanto, para Alessandra de Paula, alguns preços ainda não se justificam. “Peixe em Belém eu acho super caro e eu não encontro uma justificativa plausível nesse sentido porque a abundância de peixe, de rios, deveria ser mais em conta”, diz. Ela gasta em média de R$ 500 a R$ 600 por mês com alimentação e itens de higiene, morando sozinha.
Outro fardo pesado para o orçamento é o transporte público. “Quem precisa usá-los passa por um sofrimento diário”, lamenta a professora. O problema é metropolitano, exigindo soluções integradas entre Belém, Ananindeua e Marituba, cidades para onde uma parcela significativa da população de baixa renda foi empurrada pela falta de opções acessíveis na capital e se tornaram cidades dormitórios para milhares de trabalhadores.
A combinação de aluguéis altíssimos, infraestrutura precária e a pressão de um mercado imobiliário aquecido por um megaevento global cria uma tempestade perfeita para a crise habitacional. As histórias de pessoas sendo obrigadas a se mudar, como as relatadas indiretamente por Alessandra, começam a se multiplicar, ainda que de forma invisível para as estatísticas oficiais. Algumas semanas atrás, a vereadora Vivi Reis (PSOL), publicou em suas redes sociais que precisou se mudar devido a uma junção de aumento de aluguéis com a não disposição dos proprietários em renovar o contrato. A tática seria para manter a possibilidade de desocupação do imóvel no período da Conferência.
O futuro pós-COP30
O legado da COP 30 para a moradia em Belém ainda é uma incógnita. Haverá um reajuste dos preços para patamares mais razoáveis após o evento, ou a cidade seguirá o caminho de outras metrópoles, onde o “efeito Airbnb” e a especulação imobiliária tornaram o centro inacessível para seus próprios moradores?
Para o professor Raul Neto, é preciso que a prefeitura e o estado repensem a política habitacional, o planejamento urbano que é “tão permissivo” para o setor imobiliário, pois isso de alguma maneira torna o preço da terra inacessível para a maioria dos moradores da cidade.
A reportagem encaminhou à gestão municipal os questionamentos sobre o reconhecimento do impacto da COP30 na elevação dos preços dos aluguéis, a existência de medidas em andamento ou em estudo para mitigar esses efeitos e as ações previstas para evitar que o legado do evento aprofunde a crise de moradia em Belém, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.