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Reportagem

O primeiro indígena com obras de arte compradas pelo Museu de Arte do Rio Grande do Sul

José Verá, 75 anos, desenha a natureza e a criação do universo segundo a mitologia Guarani

Reportagem
4 de outubro de 2025
08:00
O artista indígena José Verá, da etnia Guarani Mbya
Carlos Macedo/Matinal

Quando comentei que gostaria de conhecer o artista indígena José Verá e fazer uma reportagem sobre o seu trabalho, ouvi que deveria ir desarmada de pressa, pois os indígenas têm um tempo diferente do nosso. Se chegasse à aldeia em Barra do Ouro, entre os municípios de Caraá, Riozinho e Maquiné, a 140 quilômetros de Porto Alegre, como uma típica repórter branca estendendo a mão e intimando o interlocutor a contar sua história, ele poderia se fechar totalmente, indisposto a conversar comigo, ou preferir falar sobre outras coisas que não os seus desenhos.

José Verá é da etnia Guarani Mbya, a segunda mais populosa do Rio Grande do Sul, com 6,6 mil integrantes vivendo em aldeias, de acordo com levantamento de 2023 da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai). Ficam atrás dos Kaingang, com 18 mil aldeados, e na frente dos Xokleng e dos Charrua, com 249 e 18 aldeados, respectivamente. No total, 36 mil pessoas se autodeclaram indígenas no estado, segundo o IBGE de 2022, o que representa 0,3% da população do RS. 

Desde 1985, Verá vive na aldeia Yvyty Porã, área de 2,2 mil hectares no topo de uma serra com Mata Atlântica preservada, região rica em cachoeiras e piscinas naturais, em direção às praias do Litoral Norte. Trata-se de uma das primeiras e mais extensas terras indígenas demarcadas no estado, resultado de dura batalha com fazendeiros na década de 1990. 

Para chegar a Yvyty Porã – Serra Bonita, em português –, é preciso enfrentar uma íngreme estrada de chão a partir de Riozinho, salpicada de rochas que raspam na parte inferior do carro e arrancam caretas de dor do motorista. A urgência é forçada a se curvar a cada pedregulho à frente do caminho.   

Aos 75 anos, Verá é o primeiro artista indígena cujo trabalho foi comprado pelo Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS). Das 5,7 mil obras que compõem o acervo do museu, apenas 15 são de autoria indígena, sendo quatro do chileno José Higino Perea, três do amazonense Denilson Baniwa e uma do também gaúcho Xadalu Tupã Jecupé, nome em destaque nas artes visuais. Com exceção dos sete desenhos de Verá, todas passaram a integrar o acervo do MARGS através de doações. 

Chamar de trabalho a arte de Verá não é uma busca forçada por sinônimos para que o texto não fique redundante. É ele quem chama seus desenhos de trabalho e é com eles que vem ganhando dinheiro para ajudar sua comunidade.

Desenhar é o ofício de Verá, sua missão no mundo, algo que Nhanderu, deus na mitologia Guarani, pediu que fizesse aqui na Terra. “Eu nasci pra isso. Se não fazer trabalho, não vai dar certo pra mim. Eu tenho que fazer o meu trabalho. Deus pediu pra mim: tem que trabalhar”, diz. Sempre guiado por Nhanderu, ele desenha para retratar a realidade que o rodeia: a araucária, o ipê, a erva-mate, as cachoeiras, os pássaros, os peixes. Coisas simples da natureza, mas que parecem oásis aos olhos de quem vive nas cidades. Seus desenhos explicam a criação do universo segundo a mitologia Guarani e a importância de cada ser vivo para o equilíbrio do ecossistema constantemente ameaçado pelas ações do juruá, o homem branco que devasta.

Algumas obras estão no livro Nhemombaraete Reko Rã’i: Fortalecendo a Sabedoria, publicado em 2021 pela editora Riacho e pela Aepim – Associação de Estudos e Projetos com Povos Indígenas e Minoritários. As imagens são intercaladas por textos em que Verá explica a relação sagrada dos indígenas com a terra, sempre lembrando que tudo pode se perder. É diretamente com os brancos que ele fala. Suas palavras foram ditadas em guarani para o professor Francisco Moreira Alves, que fez a tradução para o português.

Mas Verá está longe de ser um guia espiritual misterioso e inacessível, imagem que eu havia criado após ser orientada a encontrá-lo sem pressa pela professora Ana Lúcia Liberato Tettamanzy, que leciona literatura indígena na Especialização em Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Tatiana Funghetti, coordenadora do núcleo educativo do MARGS e responsável pela aquisição das obras do artista. 

Na verdade, o que elas tentavam dizer era que eu me livrasse da ansiedade entranhada em quem vive preso à lógica de exploração do tempo para conseguir acessar o mundo de um indígena.

O artista

Embora seja o mais velho da aldeia e considerado pelos outros uma espécie de líder espiritual, nada na fisionomia de Verá, a não ser os sulcos profundos na testa, lembra a de um ancião. Pele cor de cobre, braços torneados pela lida na terra e uma testeira de miçangas impedindo que os fios de cabelo caiam sobre os olhos, ele parece um menino que tardiamente descobriu a infância, absorto com os lápis de cor e canetinhas. São ferramentas que nunca pôde comprar. 

Nascido em Tenente Portela, região Norte do Rio Grande do Sul, por anos viveu na estrada, vendendo artesanato, até se estabelecer em Barra do Ouro, onde começou a desenhar somente em 2004. “Não é como os brancos que têm o dinheiro. Papel, caneta, tudo tem que comprar. Fazer trabalho eu sei, mas eu não conseguia antes. Naquele tempo, eu não tinha onde parar. Só caminhava, fazer venda para salário. Meu salário era isso. Pra indígena, é assim. Então, muitos anos vivi assim, na estrada. Eu passei muita coisa. Frio, chuva, calor, porque eu morava embaixo da ponte. Comecei tudo assim”, diz.

Verá usava caneta Bic para desenhar até a visita do ambientalista Cilon Estivalet, fundador da Reserva Particular do Patrimônio Natural Federal Bosque de Canela, que foi à Barra do Ouro para conhecer Yvyty Porã. Cilon fez uma pergunta crucial a Verá, e a resposta que o indígena deu foi singela. “Muitas pessoas chegam à minha aldeia. Então esse homem perguntou o que eu queria? O que valia para sempre, ano e ano? Aí eu resolvi pedir papel pra fazer desenho. Uma pessoa queria me ajudar, perguntou o que valia, ano e ano, aí eu pedi papel pra desenhar. Naquele tempo eu não tinha lápis. Ele trouxe tudo. Aí eu comecei”. 

Pergunto como pôde chegar a esse nível de representação sem ter aprendido formalmente ou sido influenciado por outros artistas, sem nunca ter pisado em uma escola ou adquirido o hábito de mexer com lápis de cor e canetinhas. Alves, tradutor do livro, nos acompanha na entrevista para que eu possa me comunicar melhor com Verá. Não por Verá não conhecer o português, ele inclusive fala o idioma, mas porque uma pessoa da cidade faz perguntas simples usando estruturas complexas – o que entendi somente agora, escrevendo esta reportagem. 

Verá responde que foi Nhanderu quem lhe ensinou e pediu que desenhasse. Que é Nhanderu quem, de tempos em tempos, sopra em seus sonhos aquilo que deve colocar no papel. “Ele fala pra mim. Às vezes, chega pensamento na cabeça ou no coração. É tipo celular, que liga alguma pessoa e fala. É assim. O que vai acontecer por esse mundo, ele tem que falar, ele tem que contar pra mim o que vai acontecer”.

Na casa de taquara de apenas um cômodo, construída para ser seu local de trabalho, chamada de oga no guarani, Verá senta-se sobre a cama com as pernas cruzadas, curva o pescoço e começa a desenhar em cima do colchão. Ouve-se o silêncio, o gorjear de um pássaro e a risada de seu neto, Fabison, de um ano, que brinca do lado de fora. O fotógrafo Carlos Macedo fica diante de Verá para registrar seu processo de criação. Mais tarde, Macedo me dirá que Verá desenha e pinta com os olhos quase fechados. 

Saio para conversar com Beatriz, esposa e companheira de Verá há mais de quatro décadas. Está sentada em um banquinho de madeira entre as casas de xaxim, construídas próximas umas das outras, onde vivem e dormem. Ela trança fios de taquara para os balaios que serão vendidos na cidade. Ao seu redor, cachorros vira-latas dormem atirados na terra batida. Aos 79 anos, com longos cabelos escorrendo sobre os ombros, as pernas envolvidas em uma saia de tecido comprida, também Beatriz se parece com uma menina. Pergunto como Verá aprendeu a desenhar. Em poucas palavras, ela diz que aconteceu de uma hora para outra. “Só pode ser Nhanderu”, acrescenta.

Os guaranis são um povo absolutamente religioso, com uma relação estreita com Nhanderu, explica Roberto Liebgott, advogado e missionário leigo do Centro Indigenista Missionário (Cimi) desde 1990, além de coordenador na região Sul da entidade vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “Eles não vivem sem Nhanderu, que é Deus. Para tudo na vida, Nhanderu tem que autorizar ou estar junto. Não andam sem Nhanderu”, diz. Como repórter de cultura acostumada a ouvir sobre técnica, formações, talento, força de vontade, recolho minhas dúvidas e me satisfaço com a resposta. Verá desenha porque Nhanderu assim deseja. 

Liebgott conheceu José Verá em 2006, em um evento do Cimi em memória de Sepé Tiaraju, líder guarani assassinado por espanhóis e portugueses durante a colonização do Rio Grande do Sul. “Verá sempre foi um pensador, um homem da mística, uma espécie de guardião dos saberes guarani. Mas um guardião discreto, muito tranquilo e sábio na comunicação com os demais. Quando ele se apropria do desenho, ele vê que aquilo que contava com as palavras poderia contar com lápis e caneta”, diz. 

A arte 

Ouvi palavras de aprovação quando mostrei a algumas pessoas o livro com desenhos de José Verá, mas uma reação em particular me intrigou: alguém disse que os desenhos pareciam feitos por uma criança. Árvores, pássaros e cachoeiras coloridos com lápis de cor. Ao mesmo tempo em que enxergo complexidade no traço de Verá, reconheço que, para um não indígena, seus desenhos possam sugerir um olhar ingênuo para as coisas da terra – o encantamento pela natureza e zelo pelas plantas e animais, postura de quem não foi tragado pelo mundo virtual.  

“Percebo um estilo, uma repetição nos desenhos dele, e até referências ocidentais, não-indígenas. Ele tem uma maneira muito própria de resolver algumas questões, como perspectiva, volume, profundidade. Talvez algumas pessoas considerem uma arte ingênua por ser algo diferente do que estão acostumadas a ver. Mas eu enxergo muita técnica e elaboração”, observa Tatiana Funghetti, do MARGS, licenciada em Artes Visuais. 

Pergunto a Verá se ele faz rascunhos, se treina o desenho repetidas vezes até chegar à versão ideal. Se não joga a folha fora quando acha que a arte não ficou boa. Ele ri, sem sarcasmo, e responde que não. Que, quando desenha, é para valer. “Tô fazendo bem certinho”, diz.

Bióloga integrante da Aepim, entidade que atua há 16 anos em colaboração com indígenas, quilombolas e pescadores artesanais do Litoral Norte e Região Metropolitana, Iana Scopel Van Nouhuys notou amadurecimento nos desenhos de Verá ao longo dos anos. Inclusive, percebeu a escolha por cores mais escuras em detrimento das alegres. “Antes, era tudo muito mais colorido. Agora, ele faz coisas mais chocantes aos olhos, histórias mais complexas. É interessante acompanhar esse amadurecimento artístico do Verá, sem que ele tenha acesso a artes indígenas. Ele não é uma pessoa com acesso a artes. Esses desenhos são realmente visões que ele recebe. Não há inspirações externas ao seu universo guarani”, diz.

  • Desenho do artista indígena José Verá, da etnia Guarani Mbya
  • Desenho do artista indígena José Verá, da etnia Guarani Mbya
  • Desenho do artista indígena José Verá, da etnia Guarani Mbya
  • Desenho do artista indígena José Verá, da etnia Guarani Mbya
  • Desenho do artista indígena José Verá, da etnia Guarani Mbya
  • Desenho do artista indígena José Verá, da etnia Guarani Mbya

Com décadas de experiências entre os indígenas, Liebgott diz que os guaranis, apesar da relação estreita com o canto e o artesanato, sempre foram ignorados como artistas. “Eles têm o canto, os instrumentos musicais, um mundo maravilhoso de arte e cultura. Só que nossa sociedade nunca olhou para eles. O Seu José chegou aonde chegou porque o grupo Aepim passou a divulgar o seu trabalho. Se não, ele estaria lá em cima do morro, sem qualquer livro que mostrasse sua arte. Ele saiu da invisibilidade porque alguém permitiu isso. Não existe nenhum tipo de vínculo que promova a arte dos indígenas”, diz.  

Os desenhos de um indígena de 75 anos que vive em terra já disputada e em época de tragédias climáticas não surgiram pura e simplesmente pelo fazer artístico. Como se não houvesse tempo a perder, Verá usa de sua arte para se comunicar, para mandar recado aos juruá que estão passando por cima da natureza. “Juruá não pode mexer na vida do indígena. Se eu falasse pessoalmente, juntasse tudo os juruá aqui… Tem muito juruá, não é pouquinho, não é só mil. Mais de milhões. Tem que fazer livro e mandar pra cidade. Porque juruá não tem tempo. Trabalha todo dia. Só no domingo tem tempo. Juruá sofre muito. Só trabalha, trabalha, trabalha. Então é melhor fazer livro, se às vezes juruá tem tempinho pra ler… Mas não é todo dia também. Juruá sofre muito na cidade. Só papel, só papel”.

Para enviar mais recados aos juruá, ele lançará outro livro de desenhos, novamente com ajuda da Aepim. A publicação está prevista para o primeiro trimestre de 2026, mesmo ano em que terá sua primeira mostra individual, no MARGS. Para a exposição, será necessário refazer algumas obras, já que nem as imagens de um indígena exaltando a natureza foram poupadas da enchente que invadiu o andar térreo do museu em maio de 2024, na pior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul, que inundou o acervo em papel. Cerca de 3,7 mil obras do MARGS foram danificadas, incluindo as sete de Verá.

Curiosamente, fazia apenas um mês que ele havia saído de Yvyty Porã para conhecer o prédio histórico do museu, na Praça da Alfândega, e oficializar a venda de seus desenhos. Em torno dele, a equipe técnica do MARGS prestava atenção em cada palavra do primeiro indígena cuja arte era paga com dinheiro da instituição. Ouviram-no falar sobre as mudanças climáticas provocadas pelo homem branco e o aumento no volume de chuva. “Ele falou muitas vezes da necessidade de respeitar a natureza e as águas. Inclusive, falou que iria chover muito. Eu até me arrepio lembrando, porque foi algo meio premonitório”, lembra Funghetti.

Iana não sabe qual será o mote do próximo livro de Verá; se terá um tom apocalíptico, insuflado pela fúria das águas, ou seguirá retratando os seres vivos e a origem do mundo segundo a mitologia guarani. À repórter, ele contou que Nhanderu vem lhe falando sobre a renovação do planeta. “Essa terra, ele disse, vai continuar. Mais de não sei quantos mil anos ainda. E quantos mil anos já foi… Ele diz que renovação da terra já é perto. Vai renovar de novo essa terra. Ele disse que muitas doenças já têm essa terra. Juruá sujou muito, criou muita coisa. Ele diz que muito trabalho vai ser pra ele, pra fazer limpeza de novo nessa terra. Tudo isso de novo vai acontecer”.

A terra

Conhecida no passado como Campo Molhado, Yvyty Porã é uma das 19 terras indígenas demarcadas e devidamente regularizadas no Rio Grande do Sul – e uma das primeiras que os Guarani conseguiram reconhecer em território gaúcho. Sua história é marcada por conflitos com o Grupo Zaffari, antigo posseiro de parte da área, e pela mobilização nacional para a autodemarcação, processo em que os indígenas, diante da ausência do Estado, assumem a frente e fazem a delimitação com as próprias mãos.  

Matéria do Jornal de Brasília publicada em 7 de novembro de 1995 conta que “com o apoio de indígenas de sete estados, 100 guaranis de Barra do Ouro iniciaram ontem a autodemarcação de sua reserva, abrangendo uma área total de 2.850 hectares – incluindo os 1.824 hectares atualmente em poder de uma fazenda dos Supermercados Zaffari, que os índios acusam de grilagem”. 

Zero Hora também cobriu o assunto. Reportagem de 15 de novembro de 1995, assinada por Ângela Ravazzolo, relata que “há 15 dias, dezenas de guaranis vigiam, com o rosto pintado de preto, os acessos da maior e mais isolada reserva do Rio Grande do Sul. Barra do Ouro é ocupada pelos guaranis há mais de 20 anos e até 1992 foi marcada por conflitos de terra. Os limites da reserva confundem-se com os da Fazenda Frazzari, ligada ao Grupo Zaffari. É a primeira vez no Estado que os guaranis estabelecem por conta própria os limites”.

Verá já vivia em Barra do Ouro naquela época. Lembra de funcionários da fazenda soltando gado para que os animais invadissem a área ocupada pelos indígenas e comessem o que eles plantavam. Também lembra de ameaças com arma de fogo e muita incomodação. 

A autodemarcação que virou notícia nacional contou com apoio de guaranis de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Mato Grosso do Sul, todos acampados em Barra do Ouro para montar guarda e fazer frente aos fazendeiros. Antônio Carvalho, da aldeia capixaba Tekoaporã, explicou a razão para tamanha mobilização: “Os guaranis não têm nenhuma terra demarcada aqui no Rio Grande do Sul”, disse. Naquela época, apenas a aldeia Votouro, em São Valentim, havia sido demarcada pela Funai, mas a homologação do governo federal ainda não tinha saído.

Campo Molhado, mais tarde rebatizada de Yvyty Porã, virou área indígena regularizada em 2001. Verá começou a desenhar em 2004, ainda timidamente, usando caneta Bic. Ganhou segurança de uma terra para seu povo viver em paz. “Eu tenho que conseguir terra, terra demarcada, pra fazer trabalho. Muitos anos eu não tinha onde parar pra fazer trabalho. Agora, eu tenho aqui. Essa terra demarcada ninguém mais incomoda. Antes, juruá entra de toda parte, pra criar gado, cortar madeira, erva-mate, araucária. Não é só uma pessoa, de toda parte. Nós pedimos, nos reunimos, para fazer demarcação da terra. Agora nós estamos livres”, diz, como se a conquista de mais de 20 anos atrás ainda soasse fresca e merecesse ser comemorada. 

Verá guarda os lápis de cor no estojo e avisa que está cansado e não vai mais desenhar. Entendo como um sinal de que a entrevista terminou. Passa do meio-dia e ele ainda não almoçou, nem diz se irá almoçar. Sai da casa que construiu para ser seu local de trabalho e se junta à Beatriz, que segue trançando os fios de taquara, e ao menino Fabison, que abraça as pernas do avô. Não há compromisso urgente ou evento que exija ser realizado. Macedo pergunta ao professor Francisco se ali na aldeia eles têm o costume de contar as horas. “Não, não existe hora certa de fazer as coisas. Aqui não tem horário”, responde o guarani. 

Dizemos adeus com a sensação de que deveríamos ficar um pouco mais, apesar da relutância de Verá em seguir conversando. A vontade é nossa – o desejo de ficarmos em um espaço em que as horas não são contadas e não somos cobrados por nada, nem ninguém. Macedo liga o drone para registrar, lá do alto, as casas de xaxim e de taquara de Yvyty Porã. Surpreso, diz que é um monte de terra apenas existindo, sem plantação, sem gado, sem ser explorada, o que deixaria os juruá – decoramos essa palavra – enfurecidos.  

Divido com Liebgott essa provocação. “De modo geral, a relação dos indígenas com a terra e com a natureza diverge das nossas concepções capitalistas. Por todos os lugares onde andei, e já andei muito pelo Brasil, não há povo indígena que não admire e não cultue a natureza, e que, portanto, a defenda. Nós, brancos, vemos um pinheiro e pensamos o que vamos tirar dele e o quanto vamos ganhar com isso. O guarani prefere ver o pinheiro em pé”, diz o missionário. 

Há 140 quilômetros de Porto Alegre, em um pedaço de Mata Atlântica protegido pelos guaranis, nem a terra, nem o tempo são explorados.

Edição: | Fotógrafo:

Esta reportagem foi publicada originalmente na Matinal Jornalismo e republicada em parceria pela Agência Pública.

Carlos Macedo/Matinal
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Carlos Macedo/Matinal
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