Com uma matriz elétrica bem mais limpa do que a média mundial e um sistema interligado, que permite transferir energia entre regiões, o Brasil tem tudo para eliminar a geração elétrica a carvão – fonte poluente que acelera as mudanças climáticas. Mas ocorre o contrário: o país ainda tem usinas de energia movidas à queima de carvão e ainda subsidia essa produção, com dinheiro público.
Segundo a Empresa de Pesquisa Energética, o parque térmico brasileiro a carvão mineral, concentrado no Sul, soma apenas 1,9% da capacidade instalada da matriz elétrica do país. Em 2023, essas térmicas responderam por 10,4% da geração elétrica. Mas, nesse processo, emitiram 9,31 milhões de toneladas de emissões de gases do efeito estufa, segundo levantamento do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA). Para comparação, a cidade de Manaus, que possui uma importante zona industrial, emitiu nesse mesmo ano 7,89 milhões de toneladas, conforme dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG).
Há anos os brasileiros pagam para subsidiar usinas térmicas por meio da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), um fundo criado para custear várias políticas públicas do setor elétrico brasileiro, como o incentivo a fontes limpas e descontos para consumidores de baixa renda. Desde 2013, a CDE reembolsa 100% da compra do carvão mineral nacional para geração elétrica.
Conforme cálculo do Instituto Internacional Arayara, ONG voltada para litigância climática, os brasileiros gastam mais de R$ 1,04 bilhão por ano no subsídio embutido na tarifa de energia para incentivar a geração a carvão. Só no ano passado, foi cerca de R$ 1,14 bilhão, o equivalente a 2,4% de todos os subsídios do setor elétrico.
Hoje, duas térmicas continuam recebendo o reembolso da CDE: a Usina Termelétrica Candiota III, no Rio Grande do Sul, e o Complexo Termelétrico Jorge Lacerda, em Santa Catarina. Em 2023, último ano com dados disponíveis, as duas foram as maiores emissoras de gases do efeito estufa entre as 67 térmicas do país (incluindo as usinas movidas a gás e a diesel) – cada uma com mais de 2 milhões de toneladas, conforme o IEMA.
Apenas Candiota III (com 350 megawatts de potência instalada) respondeu por 12,5% do total de emissões das térmicas. A usina também registrou a maior taxa de emissão por eletricidade gerada: 1.205 toneladas de gás carbônico equivalente por gigawatt hora – quase o dobro da média observada no Sistema Interligado Nacional.
“Em termos de posicionamento internacional, seria um gol de placa o Brasil ter um plano de phase out [eliminação gradual] do carvão”, diz Rosana Santos, que acumula mais de três décadas no setor de energia e é diretora-executiva do Instituto E+ Transição Energética.
Na avaliação de Nicole Figueiredo de Oliveira, diretora-executiva do Instituto Internacional Arayara,assumir compromissos contra o uso do carvão mineral (não confundir com o carvão vegetal, que vai na churrasqueira) seria uma forma de o governo brasileiro entregar “algum progresso” na direção da transição energética justa.
“Se o Brasil anunciar na COP30 que não vai mais construir nenhuma térmica a carvão já é um ganho para na liderança climática, já que em outras áreas de energia não estamos tão bem, como é o caso da margem equatorial [projeto de expansão petroleira na Amazônia] e a carbonização da matriz elétrica”, disse Oliveira em setembro, durante uma audiência pública na Câmara dos Deputados.
O país não têm novos projetos de usinas a carvão, e o subsídio via CDE acaba em 2027 – ainda assim, uma delas já tem garantido outra forma de apoio econômico do estado brasileiro para continuar operando até 2040. E, no Congresso, tramitam propostas de emendas e um projeto de lei que podem obrigar a recontratação de térmicas com subsídio para os próximos 15 ou 25 anos.

“Regiões carboníferas dependem do carvão — e de planos que ainda não saíram do papel”
Se do ponto de vista climático, aposentar as térmicas a carvão seria um ganho, a questão que permanece é o que fazer com as regiões carboníferas, especialmente no Rio Grande do Sul (RS) e em Santa Catarina (SC), em que a mineração e a geração elétrica estão diretamente ligados. No RS, 73% do carvão é destinado ao setor elétrico. Já em SC, esse percentual chega a 95%, segundo o Arayara.
Nessas regiões, além de existir uma relação histórica e cultural com o carvão, o setor carbonífero é associado a uma cadeia produtiva (outros setores que utilizam o mineral são o petroquímico, o cerâmico e a indústria do cimento, por exemplo) e a empregos considerados melhores.
Um dos principais polos carboníferos do país, Candiota (RS) com seus 10,7 mil habitantes é um exemplo. O município concentra cerca de 21% das reservas de carvão mineral, explorado pela Companhia Riograndense de Mineração (CRM), estatal do governo estadual, e pela mineradora Copelmi. O carvão alimenta duas térmicas: Pampa Sul (345 megawatts de capacidade instalada), que não recebe subsídio da CDE e foi a última térmica a ser contratada em um leilão de energia no país; e Candiota III (350 megawatts), que recebe o subsídio e teve seu contrato de longo prazo encerrado no final do ano passado.
“A região de Candiota depende do carvão, como dependia há 10, 20 anos atrás. Já faz pelo menos 15 anos [que se discute essa dependência] e nada foi feito para a região desenvolver outras atividades”, afirma Rosana Santos. “Ainda não foi dado o devido tratamento à atividade econômica que vai substituir o carvão na região”.
Para os trabalhadores do setor, o ponto mais importante é a preservação de empregos com o mesmo nível salarial. Dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), declaração recolhida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, apontam que, no ano passado, a média de remuneração dos trabalhadores da mineração do carvão foi de R$ 7.454, – a média municipal é de R$ 4.818.
“Como encerraria hoje a atividade carbonífera para pensar em outra atividade? Onde vamos colocar essa mão de obra de trabalhadores? No último censo, Candiota foi o único município da região que cresceu. Tem a segunda melhor média salarial do Rio Grande do Sul, 4,4 salários mínimos para cada trabalhador formal”, afirma Hermelindo Ferreira, diretor de Comunicação do Sindicato dos Mineiros de Candiota e há 22 anos funcionário da CRM.
Segundo Ferreira, hoje são cerca de 300 funcionários na CRM. O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), que há anos atua no município, aponta para cerca de 600 empregos diretos ligados à indústria do carvão na cidade, considerando também os funcionários das térmicas. A organização estima 36 mil trabalhadores diretos e indiretos da cadeia do carvão na região Sul.
Apesar de o governo do RS ter assumido, ainda em 2021, durante a COP26, o compromisso de reduzir em 50% as emissões do estado até 2030 e neutralizá-las totalmente até 2050, foi só em outubro do ano passado que concluiu a contratação de uma consultoria para elaborar o “Plano de Transição Energética Justa para as regiões Carboníferas”. O plano ainda está sendo desenhado e deve ficar pronto até o final do ano, segundo a Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) – mais ou menos um ano antes do fim do subsídio da CDE.
De acordo com a secretária Marjorie Kauffmann o plano possui um “olhar social gigantesco”, com escuta às comunidades, e vai apresentar caminhos possíveis para as regiões carboníferas – incluindo alternativas econômicas, como o turismo, a geração de energia renovável e de hidrogênio verde, agropecuária de baixo carbono, entre outras.
“O que nós não defendemos é que essa transição não seja uma transição, ou seja, que ela seja feita de forma abrupta, porque temos muitas questões que precisam ser consideradas, como a cadeia consumidora da energia térmica e a indústria.”, disse ela à Pública.
Para Kauffmann, o importante é que o RS consiga “neutralizar as emissões”. Perguntada especificamente se, na preferência do governo, o caminho para isso passaria pela manutenção do setor carbonífero, mas com uma compensação das emissões, a secretária afirmou que o estado vai trabalhar na compensação, independentemente de um encerramento, ou não, dessas atividades. “Mas precisamos da segurança energética para viabilizar todas as cadeias. Não estou falando que vamos encerrar ou que não vamos, por isso que nós teremos um plano com opções”.
Para Ferreira, do Sindicato dos Mineiros, opções mais promissoras para o salário dos trabalhadores são os projetos para criação de um polo carboquímico na região de Candiota, que preveem produção de liga metálicas e de compostos químicos utilizando o carvão em circuitos fechados, nos quais o CO₂, ao invés de ser emitido, é usado, por exemplo, para fazer ureia.
“O que precisamos para chegar nesse ponto? Uma legislação que permita minerar carvão no futuro”, opina.
A substituição de fontes que usam combustíveis fósseis por outras menos poluentes – a tal da transição energética – é a principal medida para reduzir a emissão dos gases do efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global, que levam às mudanças climáticas. Nas conferências da ONU sobre o clima dos últimos anos, os países signatários se comprometeram com uma “transição para longe” dos fósseis”.
Na cúpula de 2024, 25 países assumiram o compromisso voluntário de parar de abrir novas usinas a carvão sem sistemas de captura do CO₂. Entre os signatários estão países como Austrália, grande produtor de carvão; Alemanha, que acaba de atingir sua meta de redução de carvão no sistema elétrico; e Reino Unido, que fechou sua última usina no ano passado. O Reino Unido também capitaneia a “Powering Past Coal Alliance”, coalizão de governos e entidades comprometidas com a eliminação gradual do carvão. Para Oliveira, uma eventual adesão brasileira à aliança seria positivo para a imagem do país.
Ainda assim, a demanda por carvão bateu recorde em 2024, liderada pelo consumo na China e na Índia, onde o combustível responde por mais de 60% da matriz elétrica, segundo a Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês). Ambos países aprovaram a construção de novas térmicas nos últimos anos.
Já nos primeiros seis meses deste ano, a geração de usinas eólicas ultrapassou a de usinas a carvão pela primeira vez na história, segundo um relatório do thinktank Ember ao qual o jornal britânico Guardian teve acesso.

Entre promessas e adiamentos, transição não chega
Ganhar tempo tem sido a principal resposta quando o assunto é carvão na região Sul. Em 2022, foi aprovada uma lei federal específica para o Complexo Termelétrico Jorge Lacerda, em Santa Catarina. Defendida à época como necessária diante do encerramento, em 2027, do reembolso da compra do carvão via CDE, a lei garantiu subvenção econômica para a continuidade da operação da usina até 2040 e criou um “plano de transição energética justa” para o estado, com diretrizes gerais.
No mesmo ano, o governo de Santa Catarina instituiu a Política Estadual de Transição Energética Justa e determinou a criação de um plano local. Mas só em junho deste ano o governo de SC contratou a Fundação Getúlio Vargas para elaborar o plano, visando o término da geração a carvão para 2040.
“A lei estadual determina que o plano contemple medidas de proteção social e políticas voltadas aos grupos mais vulneráveis. Isso significa discutir desde a requalificação profissional em áreas como energia renovável, manutenção elétrica, recuperação ambiental e economia circular, até mecanismos de apoio para aposentadoria e renda”, afirmou a Secretaria do Meio Ambiente e da Economia Verde de SC. Para a secretaria, a região carbonífera do estado tem potencial de se tornar um “polo de economia verde e inovação”.
“O dinheiro público vai continuar financiando a poluição do carvão. Santa Catarina tem o maior passivo ambiental de mineração da América Latina”, diz John Wurdig, gerente de Transição Energética do Instituto Internacional Arayara.
Em SC, décadas de mineração subterrânea do carvão deixaram passivos cujos custos hoje são pagos por todos os brasileiros, já que a Justiça determinou que a União deve arcar com a recuperação ambiental das áreas de mineração. Esse trabalho está a cargo do Serviço Geológico Brasileiro, que atua em mais de 6 mil hectares degradados a céu aberto, com 1.242 quilômetros de rios impactados (em três bacias hidrográficas diferentes) e 800 bocas de mina abandonadas.
Já a situação de Candiota é mais indefinida. Desde o final do ano passado, a usina de Candiota III não tem mais contrato de longo prazo de fornecimento de energia ao Sistema Interligado Nacional. A térmica ficou 90 dias parada no início deste ano por decisão da Âmbar, empresa do grupo J&F, dona da usina. Ainda assim, recebeu o subsídio da CDE em parte desse período, como denunciou o Instituto Internacional Arayara – a organização defende a realização de uma investigação parlamentar sobre os desembolsos da CDE. Entre agosto e setembro, a operação foi novamente paralisada por uma decisão da Justiça, que, depois, foi revertida.
Fernando Luiz Zancan, presidente da Associação do Carbono Sustentável, que reúne a Âmbar, a Diamante Energia (dona do complexo Jorge Lacerda), além de mineradoras de carvão, defende um novo contrato de longo prazo – de 25 anos – também para Candiota III. Segundo ele, esse é o tempo necessário para que se possa investir na usina e fazer investimentos em tecnologias de baixo carbono para neutralizar emissões.
“A gente entende que transição, no nosso caso do carvão, não é acabar com a indústria do carvão: é remodelar a indústria para trabalhar no âmago da questão, que são as emissões do uso do carvão. Estamos trabalhando para inovar e não ter emissões, para em 2050 a gente estar operando com a indústria do carvão, mas sem CO₂, com tecnologias em desenvolvimento de captura, armazenamento e uso do CO₂”, afirmou Zancan. Entre os exemplos citados por ele estão plantas pilotos de captura e de uso do gás para a produção de fertilizantes.
O setor carbonífero vem tendo vitórias no Congresso: conseguiu incluir no projeto de lei das eólicas offshore um “jabuti” (termo que designa tópicos estranhos ao assunto original de uma proposta legislativa) que obrigava a recontratação de térmicas a carvão até 2050. O presidente Lula vetou o trecho, o que ainda pode ser derrubado pelo Congresso.
Duas emendas parlamentares à Medida Provisória 1.304, editada em julho, procuram dar sobrevida à usina de Candiota III e à usina de Figueira, no Paraná – esta última não está operando desde fevereiro de 2024. Uma delas, do deputado Paulo Pimenta (PT-RS), prevê a contratação de energia elétrica na modalidade de reserva pelas duas usinas e pelo Complexo Jorge Lacerda. A outra, de autoria do senador Esperidião Amin (PP-SC), também prevê a contratação de reserva de capacidade dessas usinas até 2050.
Na mesma linha, até com texto de justificativa idêntico ao da emenda de Amin, há ainda um projeto de lei de dois deputados do Rio Grande do Sul tramitando na Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados que também prevê a contratação das térmicas pelos próximos 25 anos.
“A pergunta é: quanto tempo o planeta aguenta essa transição?”, questiona o economista Nelson Karam, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), que há anos trabalha com a questão do carvão no Sul. Karam conta já ter ouvido muitas vezes o argumento de que o setor carbonífero é pequeno e que responde por um baixo percentual das emissões do país. “Mas se cada um pensar assim… os indicadores [da crise climática] são cada vez mais drásticos”.
Para ele, é razoável o horizonte de 2040 para uma transição do carvão. “Mas o mais preocupante é que não está se fazendo nada no correr desses anos. E daí não tem tempo que seja adequado. Vamos chegar em 2040 e vão pedir mais 15 anos”, diz o economista, que vê falta de proatividade dos governos – estaduais e federal – em lidar com o problema.
Sem planejamento, uma transição “forçada” já acontece. Nos últimos anos, usinas térmicas mais antigas foram fechadas. Mais recentemente, a Copel, antiga dona da Usina de Figueira, concluiu a demissão voluntária de mais de 1.400 funcionários. Em maio deste ano, a carbonífera Rio Deserto, de Santa Catarina, desativou uma de suas minas – segundo a imprensa local, alguns funcionários foram transferidos para outra operação.
Em fevereiro, a deputada federal Taliria Petrone (PSOL-RJ) apresentou um projeto de lei que extingue os subsídios atuais e proíbe a concessão de novos incentivos para o uso da fonte fóssil no setor elétrico.
“Existe uma questão fiscal colocada. Ao mesmo tempo, existe a questão do momento dramático que estamos vivendo de emergência climática. O Brasil esse ano sedia a COP30 e precisa ser um momento onde a cúpula vai apresentar pro mundo um freio diante do aquecimento global”, afirmou Petrone na audiência pública em setembro.
“A transição energética é um pilar para enfrentar o aquecimento global e, sem dúvida, olhar para o uso dos combustíveis fósseis e pensar medidas econômicas de geração de energia e de desenvolvimento que sejam alternativas é fundamental para mudarmos esse quadro”, completou.
Uma das opções mencionada pelos especialistas ouvidos pela reportagem seria a de, gradualmente, mudar o destino do subsídio hoje concedido à geração elétrica a carvão. Os recursos passariam a financiar o desenvolvimento de outras atividades econômicas para as regiões.
Rosana Santos vai além. Para ela, é preciso falar de transição energética do lado da demanda. “No Brasil, falar em transição energética é chover no molhado. Tirando o carvão e o gás, temos uma matriz elétrica 90% renovável. O que precisamos discutir é como monetizar esse fato: produzir algo com essa eletricidade, seja um fogão verde, um liquidificador verde, por exemplo, e vender para o resto do mundo produtos com baixa emissão”.