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Consciência vs apropriação: na periferia, jovens disputam o mercado da moda

Na periferia de São Paulo, onde vestir marca muda a forma como se é tratado, a moda tem se tornado também uma carreira

Reportagem
20 de novembro de 2025
08:00
José Cícero/Agência Pública

Eram 14h de uma quinta-feira de setembro. Ele estava em casa, e como de costume, se encontrava bem trajado. No corpo, peças que remetiam à sua infância: boné da Lacoste, Mizuno nos pés, óculos Juliet e um sorriso no rosto. Nascido e criado na Cidade Tiradentes, Felipe Garcia sempre teve a periferia como lar. Modelo, viu sua vida ganhar uma nova roupagem quando decidiu ingressar no mundo da moda.

A história de Garcia não é um caso isolado. Na periferia de São Paulo, jovens talentos estão desenvolvendo carreiras, criando suas próprias marcas e reinventando a estética local. Apesar das barreiras sociais e econômicas, a cultura das ruas vem ganhando espaço no mercado, como mostram relatos e dados recentes sobre moda periférica.

Em julho deste ano, o Instituto Data Favela ouviu 16 mil moradores de favelas em todo o Brasil, revelando hábitos de consumo e aspirações. O estudo mostra que as favelas brasileiras movimentam R$ 300 bilhões por ano.

Outros dados chamam atenção: 78% dos moradores se esforçam para comprar coisas que não tiveram acesso na infância, 85% se sentem realizados ao conquistar esses itens, e 62% já se sentiram excluídos por não conseguir consumir algo da moda. O consumo nas periferias vai além do poder aquisitivo: ele está ligado à autoestima e ao senso de pertencimento. Cerca de 50% relatam já terem sido constrangidos ou humilhados por não ter determinado produto ou marca.

Outro levantamento, feito em março, mostra quais marcas predominam no consumo das periferias, reforçando padrões e preferências do público: na frente, estão a esportiva Nike, seguida da Lacoste, grife que estampa o boné de Felipe Garcia. Em terceiro, está outra esportiva, a Adidas.

O acesso a roupas de marca é um marcador social importante para moradores da periferia, e o mercado da moda também pode ser uma opção de carreira e de expressão artística.“

“O Joãozinho não é ‘ninguém’ desde pequeno na escola, mas quando ele compra um boné da Lacoste, ele é o Joãozinho da Lacoste”, explica o modelo. “[Na periferia] a gente tem logos grandes estampados, e por frequentar esses lugares [agora], eu vi que, às vezes, isso nem é bem visto”, completa.

Por que isso importa?

  • Pesquisa do Instituto Data Favela com 16 mil moradores em todo o país aponta que quase metade relata já ter sido constrangido ou humilhado por não ter determinado produto, ou marca.
  • Por outro lado, o mercado da moda tem adotado estéticas da periferia, muitas vezes como apropriação sem valorizar os criadores e trabalhadores que vêm dessa realidade.

Garcia lembra que, desde pequeno, aprendeu com a mãe que, na periferia, a roupa tinha uma função: proteger da violência policial. “Por morar na periferia e com a presença constante da polícia, ela [minha mãe] queria que eu saísse bem vestido de casa. Mesmo que eu seguisse meu próprio estilo, eu tinha que sair sempre bem vestido”, relembra. Ele diz também que o sonho da sua mãe era justamente ser modelo ou estilista.

Sobre episódios de preconceito velado, ele relembra uma situação desconfortável quando estava prestes a participar de um grande desfile no JK Iguatemi, um dos maiores e mais caros shoppings de SP. “Era o meu primeiro desfile lá, não tinha muita referência de onde pegávamos a pulseira de identificação”, relembra. Ao solicitar uma informação ao segurança, teve um tratamento pouco cordial. “Antes do desfile, alguns seguranças acabavam respondendo por obrigação, e era perceptível.”

No entanto, o tratamento foi totalmente diferente no final do desfile: “O pós foi diferente, era perceptível o tratamento diferente; estava maquiado e recebia o reconhecimento de algumas pessoas que assistiram, além de olhares e até cumprimentos de alguns seguranças”, acrescenta.

Enquanto conversávamos, Garcia relembrou um fato que ocorreu com o rapper Kyan, que também vem da periferia, na Praia Grande, São Paulo. “A Lacoste queria fazer um trabalho com o Kyan, mas queria pagar com roupas ao invés de pagarem com cachê, enquanto outros modelos iriam receber em dinheiro. Para mim, pela Lacoste ser simbólica na periferia, quiseram fazer isso, achei nada a ver, falta de respeito”.

A Pública entrou em contato com a Lacoste em busca de posicionamento, mas não obteve resposta até o momento.

Garcia atribui às marcas na periferia o poder de gerar sensação de conquista, não se tratando apenas de um gasto pelo gasto, mas de uma forma de dizer ‘cheguei lá’: “Saí recentemente do CLT e a primeira coisa que eu fiz foi comprar um mizuno, tem um valor afetivo”, complementa.

Estética da periferia, olhar do mainstream

Quando grandes marcas começam a olhar para a moda periférica, oferecendo visibilidade, às vezes essa ação fica apenas na superfície, incorporando elementos de forma rasa e sem reconhecer o contexto cultural e criativo que os originou. A especialista em moda e tendências Andressa Jurema aponta que, para além da visibilidade, é preciso valorizar o movimento de forma legítima:

“A linha está no reconhecimento do movimento por trás da moda periférica. Quando grandes marcas, criadores e semanas de moda valorizam os profissionais e coletivos das periferias, não apenas com ‘visibilidade’ pelas redes sociais — mas de fato colocando-os no centro do processo criativo, com crédito e remuneração justa, há uma valorização legítima. A inspiração se torna apropriação no momento em que a estética periférica é usada sem qualquer referência ao movimento de quem a construiu culturalmente”, critica.

Jurema defende que a moda periférica não deve ser vista como uma campanha pontual, é necessário oferecer oportunidades concretas e justas:

“Ainda percebo sendo tratada como algo pontual, muitas vezes em styling e direção criativa de editoriais. O mercado precisa se aprofundar além da estética e da narrativa visual, transformando estruturas sociais e políticas por meio da inclusão real: editais específicos, bolsas de estudo, parcerias com coletivos independentes, programas de mentoria e, sobretudo, a contratação de profissionais periféricos em posições de liderança”, complementa.

Para Ferréz, escritor e fundador da marca 1DaSul, a trajetória da marca é também um registro histórico de resistência. “A 1DaSul surgiu em 1999 com a vontade de ser uma marca de periferia. Eu achava que tinha que ter algo com a cara do bairro, alguma coisa que refletisse a nossa realidade.

Desde a sua fundação, a 1DaSul conquistou a periferia quando esse mercado ainda não era valorizado por marcas maiores. “Durante três anos consecutivos, a 1DaSul virou uma mania de vendas de boné. Os moleques soltavam pipa com a marca, foram pegando adesivos e colando nas bicicletas, motos; a marca se consolidou porque compreendia o território e suas necessidades: “As grandes marcas não entenderam muita coisa, não entenderam cor, não entenderam design… estão voltadas ao esporte de elite, não à realidade da quebrada.”

Ao longo do tempo, a 1DaSul precisou lidar com a percepção externa que minimizava seu impacto. “O que eu mais escuto é: ‘ah, é só uma lojinha’. Só que não é só uma lojinha, a gente já tem várias lojas. Tem esse desmerecimento quando é uma coisa periférica e tem muita coisa periférica que é importante, que fez história, que chegou antes de todo mundo, mas não tem o reconhecimento devido.”

Para Ferréz, apropriação cultural é uma ação externa: “Quando você vê uma grande varejista pegando pra fazer a identidade do gueto, eles pegam um símbolo nosso e começam a replicar nas camisetas, aí é uma apropriação. Agora quando a gente faz de dentro, usando os nossos artistas colaborativos, chamando as pessoas para ter essa representatividade mesmo na fonte é valorização. A marca sempre teve esse lugar de fala.”

Essa história de resistência encontra eco na análise contemporânea de Wesley Xavier, especialista em comportamento e tendências periféricas. “Elas fizeram o movimento mais difícil: foram as primeiras a evidenciar que a periferia não era apenas um mercado consumidor, mas uma fonte potente de identidade, estética e narrativa. Você até podia ter um tênis da Nike, mas ter um boné da 1DaSul diferenciava você, caracterizava pertencimento e autenticidade que outros produtos não permitiam acessar.”

Xavier ressalta que a apropriação acontece quando a marca tenta ser protagonista, extraindo a estética, os códigos e o hype da rua para benefício próprio: “Ela se torna uma caricatura, um produto sem alma.” A valorização verdadeira, segundo ele, exige construção de diálogos, fortalecimento das comunidades e crédito para os artistas locais: “Valorizar é dar crédito, é colaborar, é entender que navegar nesse universo é um campo minado que exige respeito para evitar crises culturais. A valorização, por outro lado, acontece quando a marca entende que seu papel é o de ser suporte da cultura, não o protagonista.”

A moda do corre: peças criticam rotina do trabalho 6×1

Quando decidiu criar o coletivo Na Atividade, aos 19 anos, Júlia Ramos, produtora de moda nascida e criada na periferia do Grajaú, enfrentou momentos de desânimo. “No meu primeiro trabalho coletivo, ninguém apareceu, pensei em desistir”, relembra. O episódio se tornou um divisor de águas, ajudando a filtrar quem realmente estava engajado com o projeto.

Antes disso, ela havia trabalhado como estagiária de costura — uma experiência breve, mas marcante: “Foi muito bom. Só sei costurar hoje graças a esse estágio”, conta.

O primeiro editorial do projeto nasceu com a proposta de transmitir a mensagem do corre, em crítica à rotina exaustiva do trabalho em escala 6×1. Por falta de material para o styling e devido à chuva, as imagens precisaram ser feitas de forma improvisada: algumas na rua e outras no bar do China, na região da República, centro de São Paulo.

Ao revisar o material, contudo, ela percebeu que ele não dialogava diretamente com o tema original: havia apenas fotos no metrô, mostrando os jovens nos meios de transporte.

Foi então que decidiu reorganizar o editorial em três fases – Resenha, Visão e Corre – simbolizando etapas vividas por um jovem periférico. A Resenha destaca a importância do lazer e do convívio com os amigos; a Visão traz reflexão sobre o futuro e a realidade periférica; e o Corre representa a virada de chave que todo jovem periférico enfrenta ou vai enfrentar em algum momento da vida.

Ramos observa que muitas vezes as grandes marcas buscam o trabalho periférico sem representar a realidade local, enquanto produções feitas por quem vive na quebrada traduzem sentimentos como insegurança, medo e raiva, criando conexão verdadeira com a comunidade. Ela acrescenta que esses sentimentos também são fonte de inspiração, motivando novas criações. E crítica que: “A realidade continua na quebrada; eles [as grandes marcas] só levam a estética.”

“Eu já fazia a minha moda, mesmo sem saber o que era”, diz designer

O Asa Dudu é um projeto do Fundo Agbara, em parceria com a estilista Mônica Anjos, que busca incluir mulheres negras e afro-indígenas na moda, fortalecendo empreendedoras já atuantes no setor. O programa oferece formação em história da moda, corte, costura, modelagem, styling e planejamento econômico, ministradas por profissionais como Carol Barreto, Alexandre dos Anjos e o coletivo Ateliê TRANSmoras.

Entre histórias marcantes das empreendedoras que participam do projeto está a de Fa Thereza da Silva, mulher preta atuante há anos no mercado da moda e militante do movimento negro. Quilombola de Rio de Contas, na Bahia, Silva conta como a moda entrou em sua vida naturalmente: “Quando eu morava no interior da Bahia já fazia a minha moda, mesmo sem saber o que era. As pessoas já diziam: ‘a sua roupa é diferente, o seu estilo é diferente’. Eu não tinha informação, era totalmente intuitivo”, relembra.

Há mais de 20 anos em São Paulo, foi lá que a virada de chave veio, através de uma indicação inesperada de uma conhecida: “Vim para São Paulo, trabalhava em subemprego, até que me indicaram para prestar serviço artesanal em um ateliê. Em um mês fui contratada e aquele momento foi um divisor de águas, porque ali que encontrei minha essência de criadora, ali me encontrei. A partir daí, nunca mais saí da moda”, conta.

E assim começou a sua trajetória – de fato – no mercado. Se formou em Design de Moda e pós-graduou em Educação e Relações Étnico-Raciais.

Treze anos após ter deixado o mundo corporativo e aberto sua própria marca, Silva reflete sobre sua maior conquista nesse tempo: “Tenho orgulho de ter criado uma marca que representa a comunidade preta, e que as pessoas se orgulham e se encontram enquanto pessoas pretas através desse trabalho”. A Santa Thereza Design, sua marca autoral, tem como missão trabalhar a identidade e o empoderamento da população e estética negra.

Militante do movimento negro, Silva também expõe os maiores desafios enquanto mulher preta no mercado de moda: “O grande desafio pra pessoas pretas, sobretudo num mercado elitista e europeu como a moda é o racismo, né? Mas é possível estar no mundo da moda e ser um profissional negro apresentando a cultura afro. Nós podemos — e, juntas, conseguimos ir muito além por meio do conhecimento, do empoderamento, da nossa história e da nossa cultura”, conclui.

Edição:
José Cícero/Agência Pública
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