Em junho de 2010, durante vistoria no assentamento Gedeão, sul do Amazonas, a líder Nilcilene Miguel de Lima foi agredida na frente de uma funcionária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Isso aconteceu enquanto ela mostrava um desmatamento dentro do assentamento. Surpreendida por um pistoleiro, Nilcilene levou socos, chutes e tapas no ouvido que lhe tiraram parte da audição. A funcionária do Incra tentou intervir e levou um soco no peito. As duas correram para o carro e fugiram. Nilcilene foi para a delegacia mais próxima fazer boletim de ocorrência e corpo delito. A funcionária do Incra voltou para Manaus e pediu transferência. O agressor e o desmatador nunca foram punidos.
No mesmo ano, uma funcionária do Terra Legal (programa de regularização fundiária do Ministério do Desenvolvimento Agrário) disse a um seringueiro que ele não tinha direito à terra onde nasceu e criou seus filhos. Segundo a funcionária do governo, a área pertenceria a um fazendeiro que mora em Rio Branco, Acre, e que é investigado por grilagem. A turma do “deixa disso” teve que intervir para evitar briga. O caso foi denunciado à Brasília por um membro da Comissão Pastoral da Terra e a funcionária foi exonerada. O programa nunca mais voltou ao local e, até hoje, o seringueiro não pode entrar na sua terra devido às cercas do grileiro.
Os dois casos são emblemáticos do modo como o governo federal conduz o combate aos crimes de grilagem e desmatamento na Amazônia. Quando confrontado pela truculência da quadrilha local, ao invés de voltar com mais força para enfrentá-la, o governo recuou. Movimento que fortalece os criminosos.
Foi exatamente o que aconteceu na condução do programa Terra Legal no sul de Lábrea. O município foi o primeiro da Amazônia a receber o programa, anunciado em 2009 pela presidente Dilma Rousseff como a maior ação para regularização fundiária do país. Lábrea é considerada prioritária por fazer parte do “Arco Verde” – cinturão que cerca a floresta nativa e onde mais avança a extração ilegal de madeira e a grilagem de terra. Três anos depois, porém, nenhum título foi entregue aos moradores do local.
“Foram muitas dificuldades e decidimos suspender o serviço”, explica Shirley Nascimento, secretária de Regularização Fundiária da Amazônia Legal. “A empresa contratada em 2009 para fazer o georeferenciamento achou que seria como trabalhar em São Paulo, tiveram dificuldade com os rios e ameaças. Havia pessoas perseguindo a equipe, querendo indicar onde deveriam medir”. O governo suspendeu o contrato e abriu nova licitação. Até hoje, o georeferenciamento não foi retomado.
Depois de iniciado o processo, porém, a corrida pela terra e pela madeira se intensificou. Nesse contexto, a demora do governo não só posterga a solução do problema, mas o agrava. “O Terra Legal precisa vir urgente desenrolar o trabalho que começaram. Depois que viraram as costas, piorou tudo. Ninguém sabe mais qual é a marca que tá valendo”, diz um pequeno agricultor que viu a casa de sua irmã ser queimada depois da intensificação dos conflitos.
Segundo os lavradores, uma nova leva de grileiros chegou depois que as medições foram adiadas. “Tem um grileiro novo aqui, chegou faz pouco mais de ano, que diz que pode verter sangue na canela que ele não vai abrir mão da terra que tomou”, afirma o mesmo produtor.
A imunidade é tanta que a máfia local não respeita nem os representantes dos órgãos federais. A coordenadora do Terra Legal na Amazônia Shirley Nascimento foi ameaçada de morte depois que indeferiu 21 títulos do sul de Lábrea. Juntos, eles somavam 30 mil hectares. Na gleba Iquiri, onde mora a líder Nilcilene e a maior parte dos produtores do local, 90% dos lotes inscritos têm menos do que 40 hectares cada.
A mesma coisa aconteceu com a superintendente do Incra do Amazonas Maria do Socorro Marques Feitosa. Ela voltou atrás de um voo para o sul de Lábrea, onde iria pagar créditos aos assentados acompanhada de dois policias, quando recebeu uma ligação de dentro do avião. “Eram os produtores dizendo que eu não fosse porque os pistoleiros estavam se reunindo para a minha chegada. Mandei outra pessoa”, afirma.
Abandonados pela polícia
Enquanto o governo federal adia os trabalhos, os moradores ficam sem ter a quem recorrer. São muitos os relatos de desconfiança em relação à polícia e justiça locais. A saga de um pequeno agricultor que resolveu buscar seus direitos depois de ter sido ameaçado e expulso da terra onde viva há mais de 10 anos ilustra a complexidade do problema:
“Fui no Ministério Público Federal em Rio Branco, disseram que tinha que pedir autorização, porque a terra aqui é do Amazonas. Se o Amazonas autorizasse, eles vinham investigar. Nunca vieram. Depois fui à Boca do Acre [cidade do Amazonas mas próxima], na Polícia Militar e na Civil. O delegado disse que esse grileiro é um homem muito bom. Que já tinham recebido não sei quantas queixas dele lá e, quando vinham averiguar, não tinha nada do que o povo reclamar. Ele nem registrou minha queixa. Fui no Ibama falar das árvores que tão derrubando, foi o mesmo jeito: ‘mas o homem é muito bom…’. Procurei o juiz, só tinha o escrivão. Me informaram que o escrivão pode receber no lugar do juiz. Quando falei que era daqui, ele virou as costas e disse que não podia fazer nada porque o juiz não estava lá. O único que ainda me deu uma dicazinha foi o moço do Incra. Ele disse bem assim: ‘Senhor, não adianta, nós já fomos lá nessa fazenda, não deixaram nem a gente entrar. Não passamos nem pelo mata burro’. Então, se o federal não entra, acabou-se”.
“Segurança aqui é só a de Deus mesmo”, diz outro pequeno produtor que não quer se identificar. “Se for registrar na polícia, os primeiros a saber são os pistoleiros. Aí eles somem com a pessoa, no ano passado sumiram dois aqui. A família foi pedir investigação e a polícia disse ‘sem corpo, não há crime’. Mas como, se os pistoleiros somem com o corpo? Dizem aí que eles jogam soda cáustica e socam os ossos em buraco de tatu”.
Como ele, muitos não pisam na delegacia local. Para colher o depoimento dos líderes Adelino Ramos e Nilcilene, o Ouvidor Agrário Nacional Gercino José da Silva convocou uma audiência separada. “Se não tiver esse tipo de apoio, eles nem comparecem às delegacias e com razão. Temos casos concretos de trabalhadores rurais que fizeram denúncias em delegacias e isso acabou se voltando contra eles”, afirma o ouvidor.
O posto policial mais próximo do sul de Lábrea fica na vila de Nova Califórnia, que pertence ao município de Porto Velho. Segundo o sargento Fábio Cabral de Lima, no último ano o posto recebeu mais de 20 registros de ameaças de morte feitas no sul de Lábrea, mas nada pode fazer, pois não é jurisdição de Rondônia. “Nós estamos de mãos atadas em relação a tudo que acontece lá. Agora, se a pessoa não tiver confiança para prestar informação para a polícia local, que procure a polícia do seu estado”.
A delegacia responsável pelo sul de Lábrea fica na sede do município, que é isolado da região pela floresta. Para ir até a sede, é preciso percorrer mais de 800 quilômetros de estradas, dando a volta por Rondônia.
Nos últimos quatro meses, três casas foram queimadas, uma produtora rural desapareceu e duas famílias foram expulsas de suas casas no sul de Lábrea. Nada mobilizou a equipe de Lábrea, nem de Nova Califórnia.
A mãe da agricultora desaparecida, que sumiu dia 17 de dezembro, ainda tentou localizar sua filha. Suspeitando de homicídio, ela foi até Boca do Acre, cidade amazonense mais próxima, para pedir o deslocamento da polícia. Depois de ouvir do delegado que eles não tinham dinheiro para deslocar uma viatura, ela fez uma vaquinha entre conhecidos, que cederam um carro e R$ 500 para o combustível. Foi assim que a polícia do Amazonas se deslocou até o sul de Lábrea, onde passou dois dias e não encontrou a vítima. Em janeiro, graças aos apelos de Nilcilene, com o apoio da Comissão Pastoral da Terra, uma equipe de Humaitá (Amazonas) foi até o local. Eles ficaram dois dias e, por falta de orçamento para alugar um barco, não foram ao local onde a produtora desapareceu. Até hoje ela não foi encontrada.
“Esse problema da jurisdição é em toda a região sul do Amazonas na fronteira com o Acre e Rondônia” diz Rosana Souza do Nascimento, da Central Única dos Trabalhadores do Acre. “Ano passado, um trabalhador rural foi assassinado no Amazonas a mando de um fazendeiro do Acre. O fazendeiro foi investigado e preso, mas foi liberado porque estava no Acre e o crime ocorreu no Amazonas. E olha que, pelo menos, ele foi preso. Na maior parte das vezes o delegado nem procura”.
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* publicado originalmente em 1/3/2012