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Moradores de Santa Teresa denunciam alterações indevidas no tradicional bonde – tombado pelo Iphan – que está sendo adaptado a peso de ouro por empresa envolvida em acidentes, segundo advogado da associação do bairro

Entrevista
21 de janeiro de 2013
08:00
Este artigo tem mais de 11 ano

Quem é carioca ou foi a Santa Teresa, no centro do Rio de Janeiro, antes de 2011, certamente andou em um dos bondes amarelos, únicos que subiam as ruas estreitas, inclinadas e de paralelepípedos do bairro histórico. Muito mais do que um elemento turístico, os bondes faziam parte da cultura do Rio e eram o meio de transporte mais eficiente para os moradores de Santa Teresa há mais de cem anos. No começo de 2012, o Copa Pública contou a trajetória desastrada da modernização dos bondes e a tentativa da empresa Ttrans, contratada pela Companhia Estadual de Engenharia de Transportes e Logística (Central), em transformá-los em VLT’s (veículos leves sobre trilhos): o arranjo resultou em desperdício de dinheiro público na construção de “frankensteins” com peças antigas e novas misturadas que tiveram que ser aposentados – um desses é que provocou o acidente trágico que matou seis pessoas em agosto de 2011 e suspendeu a circulação dos bondes até agora trazendo transtorno e acidentes para os moradores que transitam pelas ladeiras íngremes e estreitas.

Na reportagem de 2012, Abaeté Mesquita, advogado, morador e integrante da AMAST (Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa) denunciava o que considerava “uma tragédia anunciada”: “Foi um projeto político que trouxe esses bondes ‘frankensteins’ para o nosso bairro  resultando em acidentes terríveis. Não temos dúvidas de que o sistema de bondes foi sucateado para justificar a entrada de trens de alta tecnologia a valores superiores a um milhão de reais e ser transformado em um elemento puramente turístico”, previa. E explicava por que: “A imagem do bonde de Santa Teresa sempre foi usada para vender a Copa mas nosso bonde tradicional não iria comportar o turismo de massa”.

Um ano depois, a teoria do advogado parece fazer ainda mais sentido. O novo plano de reestruturação do sistema de bondes de Santa Teresa, anunciado pelo governo do Estado do Rio, desenvolvido pela Central com colaboração da Companhia portuguesa Carris, promete entregar, ao custo de R$ 110 milhões, uma frota de 14 novos bondes bem diferentes dos originais: o número de assentos é reduzido, as laterais são fechadas,e não se pode caminhar sobre os estribos. O que contraria as exigências do tombamento feito pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que resguarda não só a parte estética como o mecanismo dos bondes antigos.

Também para servir os turistas foi implantada a bilhetagem eletrônica e a linha será ampliada até a estação do trem do Corcovado, o que, na prática, pode tirar dos moradores de Santa Teresa o seu meio de transporte: “O bonde vai sair da Estação Carioca que é no centro da cidade, lotado de turistas que vão em direção ao Bondinho do Corcovado. Vai ser praticamente inviável para o usuário pegar o bonde no meio do caminho porque ele já vai vir lotado e vai ser proibido andar em pé, já que os estribos vão ser removidos” lamenta Abaeté em nova entrevista.

Questionada sobre as modificações no sistema tradicional e tombado de bondes, a assessoria de imprensa da Central afirmou que “serão preservados os aspectos históricos e culturais, porém, visando a segurança, haverá um fechamento lateral de 80 centímetros de altura, em policarbonato translúcido” e “os estribos serão retráteis, para evitar que pessoas acomodem-se neles, e caiam”.

Sobre o destino dos sete VLT’s fabricados em 2007 pela empresa Ttrans aos custo de R$1 milhão de reais cada e que não chegaram a circular, a empresa, que teve o contrato cancelado depois que o Tribunal de Contas o considerou ilegal, respondeu apenas: “Os bondes antigos serão preservados para visitações turísticas”. Ironicamente, a mesma empresa Ttrans que construiu os condenados “frankensteins” ganhou novamente a licitação para a construção da nova frota dessa vez com orçamento bem maior.

“Quando este novo projeto começou, falou-se em 3 milhões e depois em 5 milhões. A verba inicial era de R$ 35 milhões, depois R$50 milhões e o último valor ficou em R$ 110 milhões. Além deste custo absurdo, os bondes tradicionais e os VLTS vão ser jogados no lixo”, lamenta Abaeté. Leia a entrevista.

O que mudou desde que nos falamos em dezembro de 2011?

O sistema de bondes continua fora de operação desde o acidente. Nós temos acompanhado o processo de planejamento e recuperação e tem sido uma decepção atrás da outra. O governo tem evitado o debate e a comunidade foi totalmente excluída do processo do novo projeto. A AMAST constituiu uma câmara técnica com entidades de renome de diversas áreas da engenharia, especialistas em bondes, transportes sobre trilhos mas foi ignorada.

Mas o bonde será transformado em VLT afinal?

Eles tentaram isso antes, fizeram aquele sistema de modernização que deu errado e que nós noticiamos que daria errado [ao contrário dos bondes antigos, que tinham jogo para andar nas ladeiras e curvas, os novos trens tinham o truck rígido – a parte que suporta o peso da locomotiva,  fornece propulsão, suspensão e freios, que fica entre o trem e a roda – e trepidavam nas curvas com perigo de descarrilar. Também tinham aceleração eletrônica e sistema automático de freios, eram silenciosos demais, causando riscos de atropelamentos e acidentes com carros e motos] Porque, como eu disse antes, o acidente de 2011 não foi com o bonde original mas com um bonde sucateado e canibalizado.

O projeto novo é da empresa portuguesa Carris, que vem sendo denunciada há anos por estar desmantelando o sistema de bondes em Portugal. E o sistema deles também é totalmente diferente do nosso, são bondes fechados e andam no plano.

Mas foi oficializado esse sistema da Carris?

Eles contrataram essa consultoria técnica que custou mais de R$ 100 mil, os técnicos vieram ao Brasil, fizeram um trabalho de campo e recomendaram o óbvio, que era a troca dos trilhos. O resto foi rolando nos bastidores. Até que no início de 2012 surgiu a declaração que a gente mais temia: iriam fechar as laterais do bonde, reduzir o número de assentos, tudo que viola o decreto de tombamento. O bonde é tombado também enquanto sistema, nas suas caracteristicas mínimas, mecanismos. Além disso, iriam reduzir o número de assentos de 32 para 24 e instalar um sistema de bilhetagem eletrônica que elimina a figura do cobrador, que era uma figura essencial, fazia parte da cultura do bonde.

E a Carris também não procurou a comunidade para entender melhor essa realidade?

Nunca. No início de 2012 o Estado abriu uma licitação para contratar a empresa que iria então cuidar dos bondes e apareceu esse projeto recomendado pela Carris, que pretendia fechar a lateral do bonde com policarbonato, manter a aparência estética e mudar profundamente a configuração do sistema, a capacidade de transporte e no final das contas, além da alteração estética, a redução da capacidade de transporte foi da ordem de 60% porque além de tirar assentos, eles querem esticar uma das linhas até o Bondinho do Corcovado para atender a uma demanda turística. O bonde vai sair da Estação Carioca que é no centro da cidade, lotado de turistas que vão em direção ao Bondinho do Corcovado. Vai ser praticamente inviável para o usuário do sistema pegar o bonde no meio do caminho porque ele já vai vir lotado e vai ser proibido andar em pé, os estribos vão ser removidos. Os argumentos são sempre relacionados à segurança porém de forma distorcida. O fechamento das laterais, por exemplo, veio porque um turista francês caiu dos Arcos da Lapa. Mas o turista caiu porque ele se desequilibrou ao tentar tirar uma foto. Os Arcos da Lapa têm uma grade de proteção que estava em péssimo estado de conservação. Se essas grades tivessem sido recuperadas o turista no máximo teria se machucado. Pegaram esse fato isolado, porque não há mais nenhum caso assim, para fechar as laterais, delimitar o número de passageiros e transformar o bonde em um aparelho unicamente turistico.

E qual vai ser a tecnologia?

Da parte de mecanismos, nada vai ser aproveitado do bonde original ou modernizado, eles vão refazer sem respeitar o tombamento. A licitação foi relançada em maio de 2012 pelo Estado e a parte pior é que quem ganhou foi a TTRans, a mesma empresa que fez os VLT’s que resultaram no desastre. Quando o acidente que tirou o sistema de circulação aconteceu, tinham sido entregues 7 VLT’s. O atual presidente da Central disse que esses 7 VLT’s não vão voltar a circular. Cada um custou mais um milhão de reais e ninguém sabe o que vão fazer com eles! E o contrato da T’Trans com a central para a produção daqueles VLT’s tinha sido declarado ilegal pelo Tribunal de Contas. Além disso a partir do momento que o Estado tirou estes bondes de circulação por entender que tinham falhas graves de projeto, como é que vai pedir o mesmo tipo de serviço para a mesma empresa? A estimativa para a entrega dos novos bondes é até o fim de 2013.

Então o bonde ficou uma mistura daquele projeto de VLT da Ttrans, que já era um Frankenstein, com esse novo da Carris?

Exato. O bonde tradicional circulou por mais de 100 anos. Agora eles produzem essa aberração. Em paralelo nós fizemos um referendo e coletamos quase 15 mil assinaturas de usuários do sistema de bondes e de moradores do Rio de Janeiro apoiando o bonde tradicional. Entregamos esse referendo ao secretário da Casa Civil pedindo reunião mas isso foi ignorado. Não houve concessão de nenhum tipo. Não sabemos que interesses existem por trás disso, se também tem a ver com os VLT’s da Copa mas atendem interesses da empresa que cuida do bondinho do Corcovado. O embarque do bondinho é no Cosme Velho, já chegou ao limite da capacidade, o impacto ambiental é enorme. Então eles viram aí mais uma oportunidade de negócio para o bondinho do Corcovado. Eles vão desviar a função primordial do bonde que é o transporte para transformar em equipamento turistico para a estacão do silvestre onde passa o Bondinho do Corcovado.

Existe o valor de cada bonde?

Isso é muito importante. O custo de restauração de cada bonde original foi estimado pelos técnicos entre R$ 300 e 500 mil. O VLT fabricado pela Ttrans em 2007, cada um custou R$ 1 milhão de reais. Quando esse novo projeto começou, falou-se em R$3 milhões e depois em R$ 5 milhões. A verba inicial era de R$ 35 milhões, depois R$50 e o último valor ficou em R$ 110 milhões. Além deste custo absurdo, os bondes tradicionais e os VLTS vão ser jogados no lixo tendo custado uma fortuna!

E tudo isso para dar tempo para a Copa?

Esse processo reproduz o que está acontecendo em outros setores no Rio de Janeiro, tudo está sendo atropelado: decretos de tombamentos, legislação ambientais,  soluções técnicas melhores, tudo para ficar pronto rápido para a Copa, não se pensa no depois nem na nossa história, identidade, cultura, que está sendo destruída através desse processo. Infelizmente a justiça anda muito mais devagar que o executivo então eles estão apostando em fatos consumados. Seja com o Maracanã, seja com a área portuária, seja com o Bonde. É lamentavel, mas é verdade.

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