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Em um centro de detenção no Arizona, latinos permanecem durante dias sob temperaturas congelantes; muitos contraem pneumonia e outras doenças.

Reportagem
25 de novembro de 2013
09:00
Este artigo tem mais de 10 ano

No momento em que a patrulha de fronteira avançou sobre Cláudia e seu marido, Marvin, enquanto tentavam atravessar o Rio Grande, uma fronteira natural entre o México e os Estados Unidos, a salvadorenha de 31 anos, mãe de duas crianças, sentiu-se vagamente aliviada. Era o fim de uma árdua jornada de 18 dias desde El Salvador, de onde a família fugiu para escapar das mãos – e facas – de uma gangue criminosa. Porém, era o começo de um novo e inesperado suplício: ela foi separada do marido e presa com os filhos – um menino pré-adolescente e uma menina, ainda bebê – para as celas cujo nome tem se tornado conhecido entre os imigrantes. “Nos levaram para as famosas hieleras”, diz Cláudia.

As hieleras, ou “os freezers”, é como imigrantes e alguns agentes da patrulha de fronteira se referem às gélidas celas de detenção que ficam ao longo da divisa entre EUA e México. As instalações são usadas para abrigar imigrantes ilegais temporariamente, até que possam ser transferidos para uma prisão das forças legais de Imigração e Alfandega (ICE, em inglês), de onde são enviados aos seus países de origem, ou soltos até as audiências de imigração.

Depois de serem detidos, Marvin e Claudia prestaram uma queixa contra a patrulha da fronteira, o que pode levar os agentes a enfrentarem ações disciplinares. O bebê do casal ainda hoje tem uma tosse persistente, segundo Claudia. “É assim que eles nos fazem sentir absolutamente sem valor, como se tivesse cometido um crime horroroso”.

Segundo entrevistas e documentos jurídicos, muitos imigrantes são presos nestas salas cujas temperaturas são mantidas tão baixas que homens, mulheres e crianças acabam desenvolvendo doenças associadas ao frio. As celas são superlotadas, com comida, água e padrões de higiene inadequados – o que causa mais doenças.

Em 2011, uma pesquisa feita com recém-imigrantes pelo grupo de defesa No More Deaths mostrou que 7 mil dentro dentre 13 mil imigrantes entrevistados enfrentaram condições desumanas nas celas da patrulha de fronteira. Cerca de 3 mil afirmaram terem sofrido frio extremo.

O conturbado debate no congresso americano sobre expandir a patrulha de fronteira com o México e revisar o sistema de imigração no país jamais tocou no assunto do tratamento aos imigrantes ou as condições das celas de patrulha. Mas, para milhares de homens e mulheres, esses prédios significam uma recepção dura logo depois do acreditavam ter sido a parte mais difícil da jornada, a travessia da fronteira. Além disso, os imigrantes presos têm passado mais tempo nesas celas temporárias porque as instalações da ICE já estão muito lotadas e não há agentes de fronteira suficientes para resolver rapidamente seus problemas.

Em junho, a senadora Barbara Boxer, uma democrata da Califórnia, propôs uma emenda ao pacote de revisão da imigração, impondo um limite de pessoas presas por cela, uma temperatura adequada, água potável, itens de higiene e acesso a cuidados médicos. Porém, a emenda foi retirada da versão do Senado. Em setembro, outra deputada democrata, Lucille Roybal-Allard, também da Califórnia, incluiu pontos similares no projeto de lei “Protect Family Values at the Border Act” (“Proteger Valores Familiares na Fronteira”, em inglês), que atualmente está sendo discutida no congresso.

O repórter Luis Megid, Univision (parceira da CIR), conseguiu visitar as celas provisórias, de concreto com privadas de alumínio. Não lhe foi permitido entrar em uma cela com detentos para julgar a temperatura, mas o oficial Daniel Tirado garantiu que agentes dão cobertores a quem pedir. O local pareceu mais limpo do que descrito pelos imigrantes, mas Christopher Cabrera, vice-presidente do Conselho de Patrulha de Fronteira, sindicato que representa os 21 mil agentes da ICE, contou que a equipe de limpeza é imediatamente acionada quando há uma visita ou inspeção especial de investigação.

É claro que as estações estão superlotadas. Segundo o oficial de patrulha da fronteira Juan Ayala, outro dia ele levou quase cinco horas para preparar 732 sanduíches de mortadela para um único almoço na estação da patrulha em McAllen, no Texas. Ele mesmo carregou os sanduíches e os sucos em um carrinho de compras, e os entregou aos 732 imigrantes adultos detidos da estação naquele dia.

A estação, segundo Cabrera e Ayala, foi construída para abrigar entre 200 e 250 presos.

A tortura do frio

Dentre todas as adversidades, os imigrantes ex-detentos relatam que a pior era mesmo o frio extremo. Muitos dos que atravessaram a fronteira e acionaram advogados e grupos de direitos concordaram dar seus depoimentos para esta reportagem, sob a condição de anonimato.

Adonys, 15, que migrou de Honduras em julho para juntar-se à sua mãe nos Estados Unidos, disse que a patrulha de fronteira o apreendeu atravessando a divisa perto de McAllen, no meio de um grupo de 28 homens, mulheres e crianças. Já na estação, os oficiais o obrigaram, a despir seu casaco – ele ficou apenas com uma camiseta – e tirar o cadarço dos sapatos. “Quando agachei para desamarrar o sapato, senti um agente jogando água gelada em mim. Ele ficou rindo”. Cinco outros policiais ficaram parados, sem dizer nada. Depois, o colocaram em uma cela fria, com camiseta molhada e tudo. “Pedi algo para me cobrir e um deles disse ‘Não, você vai ficar aí desse jeito’”, lembra Adonys. “Estava muito, muito frio. Era insuportável. Não conseguia aguentar.”

Sofia, uma mulher de 25 anos que também fez pedido de refúgio nos EUA, ficou presa ali por duas semanas. Segundo ela, a cela era tão fria que dava para ver sua respiração. “É tão frio que você treme e os lábios racham”.

Apesar das condições relatadas, existem poucas queixas legais sobre a detenção de curto prazo. Geralmente, os advogados dos imigrantes se importam mais com a questão imediata de como ficar nos EUA. No começo deste ano, a organização Americanos por Justiça Imigratória, sediada na Flórida, entrou com um processo legal por danos a sete mulheres e um homem detidos nas hieleras de estações no sul do Texas.

O problema, entretanto, se repete ao longo de toda a fronteira dos EUA com o México, de acordo com advogados e ativistas. “Não poderia ser mais difundido”, diz James Duff Lyall, um advogado de causas migratórias da ACLU (American Civil Liberties Union) no Arizona.

Punição sem crime?

A preocupação, segundo alguns advogados de imigrantes detidos, é que eles estejam sendo colocados em lugares gelados para serem punidos – sendo que o propósito da detenção de fronteira é assegurar que pessoas procurando abrigo ou encarando deportação compareçam às audiências. Elas não são acusadas de nenhum crime.

Lyall, da ACLU, explica que a detenção de imigração é regida pela Quinta Emenda da Constituição Americana, que proíbe condições que consistam em punição até que o processo seja julgado, incluindo a privação de comida, roupa, abrigo e cuidados médicos adequados. Ele também relata violações como a falta de acesso a um advogado e aos consulados, e a coerção de detentos a assinarem ordens de remoção voluntária.

Um dos problemas é que a Agência de Proteção de Fronteira e Alfândega não é sujeita a inspeções regulares que garantam cumprimento dessas diretrizes.

A política da Agência dita que “sempre que possível” detentos não podem ser mantidos em prisões temporárias por mais de 12 horas. Passadas 24 horas, um memorando tem que ser enviado para o encarregado pela estação de patrulha. Depois de 72 horas, o chefe do setor deve ser avisado.

Para advogados de direitos humanos, as condições nas “hieleras” violam padrões internacionais. Para Michele Garnet McKenzie, diretora de advocacia na organização Advogados pelos Direitos Humanos, se a temperatura é rebaixada no intuito de humilhar ou degradar os detentos, se conformaria um tipo mais grave de violação. “Há um momento em que (a temperatura) é deliberadamente abaixada como forma de coerção e privação de sono”, disse McKenzie. “E é aí onde se tem a argumentação para uma queixa legal”.

Viagem de El Salvador para uma cela de detenção

Para Cláudia e sua família, as celas de detenção frias foram um verdadeiro choque.

Eles deixaram San Salvador, capital de El Salvador, às pressas. Encheram duas pequenas mochilas com algumas roupas, fraldas e dinheiro, e pegaram um ônibus em direção ao norte. Marvin tinha sacado seu pagamento como motorista de ônibus no dia anterior, e Cláudia tinha um pouco de dinheiro que conseguiu como vendedora ambulante.

O casal acabara de receber a notícia de que a família fora “denunciada” – marcada para morrer – pela MS-13, a gangue que controlava o seu bairro. Isso porque Marvin vira membros do grupo torturando um cunhado de Cláudia, que tinha no peito a tatuagem de uma falange rival. Por um tempo a gangue permitiu que a família ficasse em paz; mas quando veio a ameaça, eles tiveram que fugir.

Durante 18 dias, viajaram em ônibus lotados e velhos até Cancún, no México, e dali para a cidade de Reynosa, na fronteira com o sul do Texas.

O bebê pegou um resfriado. Sem dinheiro, tiveram que ficar oito dias numa casa de um cartel de “coyotes” que atravessam os imigrantes pela fronteira. Só conseguiram atravessar o Rio Grande quando um familiar enviou a quantia do Canadá. Foram presos logo depois de cruzarem o rio.

Uma vez dentro da instalação da patrulha de fronteira, Cláudia recebeu um cobertor que reflete calor, parecido com um saco de salgadinhos. O filho foi para uma cela com outros adolescentes, ninguém contou a ela onde seu marido estava, e o bebê tossia muito. A pequena cela estava cheia.

Milhas longe dali, em outra estação da patrulha de fronteira, Marvin também estava numa cela lotada e fria. Ali não havia espaço sequer para agachar-se, quanto mais deitar e dormir. As luzes eram mantidas acesas o tempo todo, e o oficiais faziam barulho quando algum dos presos fechava os olhos. Além disso, não havia colchões, apenas o chão de concreto gelado, debaixo de ventiladores que sopravam um ar gelado.

Em ambas celas, a privada não tinha privacidade. Na cela de Claudia, uma câmera de segurança mirava o assento, e ela podia ver os oficiais assistindo toda vez que uma mulher, desesperada, usava o banheiro. Não havia chuveiros, sabonete ou escovas de dentes.

Claudia comia dois sanduíches por dia, de mortadela no pão branco. A água tinha gosto de lama, e ela teve medo de beber, pois estava amamentando a bebê, que tossia cada dia mais. Foram então levadas a um hospital, onde Cláudia pôde banhá-la e vesti-la com roupas limpas. De volta à cela, os oficiais não deram os remédios receitados pelo médico.

A família viveu assim por seis dias, ou 144 horas. Sem ter nenhum conhecido nos Estados Unidos, Claudia e suas crianças hospedaram-se no La Posada Providencia, um abrigo de imigrantes em San Benito, Texas, cuja diretora, a irmã Zita Telkamp, ajudou a localizar Marvin.

O bebê ainda está doente e Cláudia tem pesadelos com a patrulha de fronteira. Agora, o plano, segundo Marvin, é seguir lutando. “Para que eles não nos mandem de volta.”

Leia aqui a reportagem original em inglês.

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