“O brasileiro ama demais o carro. No Brasil, a cultura em relação às montadoras é de que elas não cometem erros. No Judiciário, na mídia, endeusam as empresas. Só que elas não são perfeitas”, critica o engenheiro mecânico e perito de Brasília, João Valentim Bin.
Ele defende que o país adote um sistema mais rigoroso do ponto de vista científico e de fiscalização das operações da indústria automotiva. Algo nos moldes da National Highway Traffic Safety Administration (NHTSA), agência responsável pela fiscalização da indústria automobilística nos Estados Unidos.
Ouça aqui um trecho da entrevista de João Bin
O presidente e fundador da Associação Nacional das Vítimas das Empresas Montadoras e Concessionárias Automotivas (Anvemca) Jaílton de Jesus Silva, tem opinião semelhante: “A Senacon e o Denatran poderiam acelerar os recalls se agissem com indícios, como faz a NHTSA. Só que ficam à espera do consumidor, que tem que entregar todo o trabalho pronto para eles. O anúncio do recall deveria ser obrigatório no horário nobre da televisão e nas primeiras páginas de jornais e sites. As seguradoras deveriam ser obrigadas a informar ao governo quando um veículo estivesse envolvido em muitos acidentes com a mesma dinâmica”, pondera.
Jaílton, que criou formalmente a Anvemca em novembro de 2001, estuda a indústria automotiva desde 1994. São 20 anos de pesquisas e investigações sobre os motivos dos altos índices de acidentes de trânsito no Brasil e dedicação às relações de consumo.
Ele reúne tantas informações, incluindo documentos de circulação interna das montadoras, que o Grupo de Estudos Permanentes de Acidentes de Consumo (Gepac), criado pelo governo federal em 2010, o convocou para reuniões. E as impressões dele sobre o Gepac não são as melhores. “Foi o caso Vectra um dos provocadores da criação do grupo, que poderia ser mais efetivo, caso tornasse públicas as atas das reuniões e ouvisse as vítimas e os assistentes técnicos. O Gepac não possui nem engenheiros mecânicos especializados na tecnologia automobilística e não permite, nas reuniões internas, que os CREAs (Conselhos Regionais de Engenharia e Arquitetura) se pronunciem sobre os casos. Fica nítido que as montadoras, via de regra, são poderosas perante o poder público. Recebem muitos estímulos e são pouco cobradas”, ressalta.
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Em contraponto, existem os defensores da qualidade dos projetos das montadoras e que consideram suficientes as precauções tomadas. A Sociedade dos Engenheiros da Mobilidade (SAE Brasil), associação que congrega pessoas físicas, engenheiros e executivos para disseminar técnicas e conhecimentos relativos à tecnologia da mobilidade, é uma das vozes que exaltam os avanços do setor automotivo nacional. “Dos anos 90 para cá, nossos veículos melhoraram demais. Há muito cuidado nos projetos. As montadoras investem em alta tecnologia para assegurar a qualidade dos produtos”, diz o diretor-conselheiro da SAE Brasil, Francisco Satkunas, que foi engenheiro da indústria automobilística por 46 anos. Ele ressalta: “Por mais desenvolvimento que haja, um projeto pode apresentar problemas e a responsabilidade recai sobre o fabricante.”
Satkunas apresenta números sobre a origem das falhas e garante que as montadoras investem para combatê-las. “A indústria tem uma conta de que 60% dos problemas são causados por peças de fornecedores, 30% em erros humanos de montagem e 10% por projetos de engenharia. Hoje, mais do que nunca, se investe na cobrança do fornecedor, no sistema de fiscalização de quem fornece as peças. Também na preparação de quem projeta e monta os veículos. Ninguém gosta de recall”, coloca.
No entanto, o mapeamento das falhas sofre indagações. “Montadora é voraz, quer ganhar sempre muito. É empresa com fins altamente lucrativos. Não faz filantropia. Muitas vezes, o erro de produção vem da economia da própria empresa para produzir”, diz Paulo Cayres, presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM/CUT).
O sindicalista não aceita que se aponte causas, principalmente as falhas humanas, sem uma análise profunda das ocorrências. “A empresa, por exemplo, trabalha com aços de qualidades diferentes, às vezes inferiores, em projetos. Não falar disso e apontar que a falha é humana é querer desviar responsabilidades”, salienta Cayres.
Uma das poucas análises aprofundadas sobre defeitos e recall na indústria automobilística no Brasil foi realizada pelo professor do curso de mestrado de Engenharia de Produção da Universidade Nove de Julho (Uninove) de São Paulo, Ivan Luiz Laranjeiras Silva. Ele pesquisou o tema por dois anos para escrever a dissertação apresentada em 2011, que cobre o período de pesquisa entre 2000 e 2010.
O estudo “O processo de recall na indústria automobilística: caracterização, análise e indicadores de desempenho do mercado brasileiro” compara Brasil, Austrália, EUA e Reino Unido em relação às medidas de empresas e órgãos públicos. De acordo com a pesquisa, que incluiu a coleta de dados em fontes de consultas públicas, a indústria automotiva nacional realiza menos recalls do que os outros países avaliados, que possuem agências reguladoras e sistemas integrados para garantir a eficácia do procedimento “Fazemos menor número de recalls que todos os países pesquisados, mas isso não é garantia de que o produto é melhor aqui. Na verdade, isso tem mais a ver com certa negligência com o recall”, explica Laranjeiras.
A dissertação foi além do exemplo da NHTSA norte-americana e estudou também o funcionamento da Vehicle and Operator Services Agency (Vosa), agência vinculada ao Departamento para o Transporte do governo do Reino Unido, e da Australian Competition and Consumer Commision (ACCC), responsável pelo controle, monitoramento e auditoria na efetividade das rechamadas de produtos na Austrália. ”No período da pesquisa, observei que os EUA apresentaram a maior produção de veículos, acima dos 116 milhões, e maior número de recalls anunciados: 6.080. O Reino Unido teve produção acima de 18 milhões de unidades, anunciando 2.564 recalls. A Austrália produziu pouco mais de 3 milhões e convocou 1.394. Já o Brasil, que produziu mais de 27 milhões de veículos, número maior que o de dois países comparados, anunciou apenas 319 recalls”, afirma o pesquisador.
Segundo o trabalho, entre os principais defeitos apresentados no país, 20,4% são oriundos do sistema de freios, 13,51% do sistema de combustível e 9,20% do power train, que é o conjunto do sistema de motor, transmissão e eixos dos veículos.
O levantamento também concluiu que a indústria brasileira passa, em média, 1,2 ano produzindo um modelo com defeito e leva dois anos para anunciar que o problema existe. “Estas informações mostram o período em que as montadoras permanecem produzindo um produto com falha após o início da comercialização. Podemos interpretar isso como uma deficiência das empresas em encontrar problemas crônicos nos produtos, o que põe em risco a saúde do usuário durante certo tempo. Em muitos casos, a produção com falha pode ocorrer durante toda a vida do produto. Em outros, a falha é identificada durante a produção”, pontua o autor do estudo.
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A pesquisa identifica ainda que muitos modelos voltam a apresentar defeitos. “É bastante comum o mesmo modelo, da mesma montadora, reincidir, várias vezes, por exemplo, num problema nos freios. Há um grande número de defeitos reincidentes para praticamente todas as montadoras”, comenta o professor. Entre as reincidências, destacam-se Ford e Renault, que apresentaram defeitos relacionados ao sistema de freio em dez oportunidades cada uma, ou seja, nove reincidências. Sobre sistema de combustível, a Renault e a Peugeot Citroen tiveram oito problemas, reincidindo sete vezes, e a Volvo teve seis, com cinco reincidências, considerado o período de análise.
Para chegar aos números apresentados, Ivan Luiz esmiuçou 321 anúncios de recall feitos pela indústria automotiva nacional. “Por exemplo, se uma montadora anunciou um recall referente a um modelo de veículo produzido com falha entre 2006 e 2008, a produção com falha durou 2 anos. Esse tipo de informação foi obtida para todos os recalls estudados e para cada montadora, de onde extraí a média de tempo, em anos, que as empresas produziram veículos com problemas”, elucida.
A respeito de fiscalização e providências, o professor avalia que, no Brasil, a legislação está focada em fazer as empresas divulgarem a falha e não na obrigação do conserto do defeito. “Isso pode causar problemas de interpretação, o que explica, talvez, a negligência que causa a reincidência. Na Austrália, EUA e Reino Unido o foco está mais no controle da produção. Isso, por contraditório que pareça, causa mais recalls, o que permite correções mais amplas”, revela. Veja aqui a dissertação completa.
Em 2013, testes feitos pela Latin NCap, braço na América Latina da Global NCap, organização europeia que testa, de forma independente, a segurança de carros no planeta, demonstrou que os automóveis nacionais estão entre os mais inseguros e que os fabricantes podem construir veículos melhores por aqui. O projeto segue as recomendações estabelecidas no ano de 2009, na cidade de Moscou, durante a Conferência Ministerial da Segurança Viária da Assembleia Geral das Nações Unidas e preparadas para o “Plano Global para a Década de Ação pela Segurança Viária das Nações Unidas 2011-2020.”
A entidade recomenda que “o governo brasileiro deve introduzir regulamentações sólidas e transparentes e que os fabricantes de automóveis têm que oferecer aos motoristas brasileiros a mesma proteção que proporcionam a clientes em outras partes do mundo.”
“É importante os governos estabelecerem normas mínimas de segurança para os carros vendidos aos consumidores. Sem as normas, as empresas de automóveis continuarão a oferecer segurança deficiente e as famílias continuarão a sofrer desnecessariamente”, aconselha a instituição.
Pela falta de campos de testes adequados na América Latina, a organização tem que realizar os trabalhos de avaliação de segurança na Alemanha, na região de Munique, no laboratório do Automóvel Clube Alemão. “A razão para isso é que não há laboratórios independentes na América Latina”, avalia a Latin NCap. Confira aqui os testes e o nível de segurança dos carros.
“É possível fazer”
O promotor de Justiça de Defesa do Consumidor de Minas Gerais, Amauri Artimos da Matta, chegou a proibir a venda, em solo mineiro, de um carro com defeito. Em 22 abril de 2010, o modelo Toyota Corolla teve suspensa a comercialização em todo o estado.
A decisão do Ministério Público de Minas Gerais (MP-MG) ocorreu após alguns modelos apresentarem problema de aceleração contínua. A decisão assinada pelo promotor se baseou em relatos de nove casos de acidentes com os veículos.
Após essa decisão, o Grupo de Estudos Permanentes de Acidentes de Consumo (Gepac), do Ministério da Justiça, fechou um acordo com a Toyota para o recall de 107 mil unidades do modelo Corolla no Brasil. A campanha começou no dia 3 de maio de 2010 e os veículos voltaram a ser vendidos em Minas.
Amauri Artimos da Matta, no entanto, ressalta que as reclamações de pessoas a respeito de defeitos de fábrica em veículos são muitas e, para que os produtos deixem de apresentar tantos riscos ao cidadão, é necessário organizar iniciativas que envolvam poder público, montadoras e sociedade civil. “ É possível fazer. Nós, aqui em Minas, estamos articulando uma ação entre o Ministério Público, o Procon e uma associação de engenheiros especialistas na área automotiva. Temos, inclusive, o projeto de lançar um site específico para dialogar diretamente com a sociedade a respeito do tema”, conta.
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Edição de vídeo e áudio, e infográfico por Alexsandro S. Goes.
Essa reportagem foi financiada pelo projeto Reportagem Pública, em parceria com a Rede Brasil Atual.