Embora a Lei de Acesso à Informação (LAI) determine, já no seu primeiro artigo, que toda a administração pública está sujeita a ela, incluindo “autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades” a Sabesp parece se considerar uma exceção.
Desde dezembro do ano passado, nossa reportagem pede, através da LAI, os contratos de Demanda Firme assinados pela Companhia de Saneamento com cerca de 500 empresas para o fornecimento de altos volumes de água. Juntas, elas consomem, em média, 1,9 milhão de m³/mês.
Agora, em resposta ao recurso da reportagem a Sabesp alega que as empresas têm direito à privacidade como as pessoas, este estabelecido pelo artigo 5º da Constituição. “A pessoa jurídica goza das garantias relativas à privacidade, garantindo-lhe o direito a segredos comerciais, fórmulas e métodos que lhe pertencem reservadamente, constituindo os elementos que compõem sua esfera privada”, defende a empresa na resposta (leia a íntegra aqui).
Para a advogada da organização Artigo 19, Karina Quintanilha, a comparação não tem respaldo legal. “O direito à privacidade, assim como o direito à informação, é um direito humano e tem certos critérios para ser aplicado. Não existe direito à privacidade de uma empresa, de pessoa jurídica”. Segundo ela, a posição da Sabesp não leva em conta a sujeição da empresa à Lei de Acesso. “A regra é o acesso à informação, a abertura dos documentos públicos e contratos. A exceção é o sigilo, e somente nos casos previstos na lei, nenhuma outra hipótese seria possível. Como a Sabesp é uma sociedade de economia mista, está enquadrada no artigo primeiro, não tem como fugir disso”.
A Sabesp também alega risco de prejuízo às empresas contratantes. “As informações solicitadas que se referem a um dos segmentos de mercado atendido pela Sabesp, podem apresentar uma vulnerabilidade, tais como perdas financeiras e ameaças à realização de seus objetivos”. Mas esse argumento também não se justifica, segundo a advogada. “Estamos falando de contratos públicos já que a empresa por vontade própria estabeleceu uma relação jurídica com um órgão público. A partir do momento em que ela firmou esse contrato de demanda firme com a Sabesp, [o contrato] está sujeito à lei da transparência”. Para ela, a disponibilidade de contratos dessa natureza é fundamental “para que se tenha acesso à forma como esses órgãos administram os recursos públicos – no caso, a água”.
Na mesma resposta, a Sabesp menciona o Artigo 29 do decreto 58.052, que regulamentou a LAI no Estado de São Paulo, e determina: “O disposto neste decreto não exclui as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça nem as hipóteses de segredo industrial decorrentes da exploração direta de atividade econômica pelo Estado ou por pessoa física ou entidade privada que tenha qualquer vínculo com o poder público”.
Segundo Karina, para que exceção pudesse ser feita teria que haver uma ação prévia da empresa nesse sentido. “[A Sabesp] deveria previamente classificar o sigilo, se fosse o caso, de acordo com a LAI. No caso do pedido sobre os contratos de demanda firme, caso existisse alguma informação protegida pelo sigilo industrial eles teriam que apresentar o registro disso. Mas essa é uma hipótese muito improvável já que o sigilo industrial ocorre quando tem alguma ‘fórmula’ da empresa a ser protegida por exemplo” explica.
Precedente negativo
Em um caso similar, o TRF da 2ª Região decidiu favoravelmente ao pedido do jornal Folha de S. Paulo para obter “relatórios de análise” de contratos firmados pelo BNDES. “Não há como acolher a tese de que o BNDES exerceria suas atividades de maneira idêntica às instituições financeiras privadas, sob o regime de direito privado, de modo a isentá-lo da fiscalização de toda a sociedade brasileira”, argumentou o juiz. E ainda acrescentou que “(…) os ‘Relatórios de Análise’ objeto do presente mandamus [ação judicial] são documentos produzidos pelo Órgão da Administração Indireta e que versam sobre utilização de recursos públicos, enquadrando-se, portanto, perfeitamente nas disposições da Lei de Transparência”.
Agora a reportagem da Pública recorreu à segunda instância, que é a Corregedoria-Geral da Administração (CGA), e está aguardando a resposta. Para Karina, se a tese da Sabesp for acatada pela CGA, pode abrir um precedente perigoso, “justamente porque através desses documentos de contratos é que a gente consegue informações precisas sobre as negociações estabelecidas ente empresas e o poder público”, explica.
“A Sabesp está colocando o segredo industrial como um princípio maior, acima do direito à informação. Isso levaria com certeza a um precedente muito negativo para a liberdade expressão e o acesso à informação”, diz a advogada da Artigo 19.
A Sabesp já foi alvo de críticas da organização, que monitora a aplicação da LAI no país, em um relatório publicado em dezembro sobre a crise do sistema Cantareira. De sete pedidos feitos à Companhia, nenhum foi respondido. “A gente entende que justamente nesse momento de crise é essencial garantir a transparência. É isso que vai possibilitar que a sociedade possa participar das decisões, e elas podem se continuamente monitoradas e acompanhadas pelas pessoas que são as mais afetadas”, completa Karina.
Contratos estimulam o consumo de água
Os contratos de demanda firme estão no centro da discussão sobre as políticas adotadas pela Sabesp nos últimos anos. Eles começaram a ser usados em 2002 pela Sabesp como forma de “fidelizar” clientes do comércio ou indústria que têm grande consumo de água. Em 2010, o contrato passou a valer para clientes que consomem acima de 500m³/mês. Empresas como a General Motors do Brasil, o aeroporto de Congonhas, a SPTrans, o Jockey Club de São Paulo, a Ford Brasil e a Universidade Metodista já assinaram contratos dessa modalidade, garantindo um desconto que pode chegar a ate 40% do valor pelo alto consumo de água.
O programa prevê um consumo mínimo de água. Se o cliente consumir menos, pagará o valor completo de todo jeito. Se ultrapassar a quantidade acordada, paga a diferença. Ou seja, a empresa é penalizada se economizar, e é instada a usar mais água, já que pagará de qualquer forma. Outro problema nesse tipo de contrato é que a Sabesp exige exclusividade de fornecimento. Uma reportagem do Valor Econômico mostrou que um centro comercial na zona oeste de São Paulo foi forçado a abandonar dois poços artesianos para receber apenas água da Sabesp, em troca do desconto na conta.
As taxas cobradas não estão disponíveis no site da Sabesp. Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa afirmou apenas que “cada contrato tem sua característica própria” e “as informações são confidenciais”. De acordo com os dados do Plano Estadual de Recursos Hídricos 2004-2007, o setor industrial respondia por 30,4% do consumo de água no estado.
A Sabesp finalmente reviu essa obrigação de consumo mínimo em março do ano passado, depois do agravamento da crise hídrica. Em 29 de dezembro, durante uma audiência na Arcesp, chegou a anunciar a intenção de isentar os clientes dos contratos de demanda firme da sobretaxa dos consumidores que aumentarem o consumo em relação à média do ano anterior – afinal liberada pelo TJ para vigorar neste janeiro. Depois da repercussão negativa já no dia seguinte nos jornais, as grandes clientes foram incluídas na sobretaxa. Mas os descontos previstos pelos contratos de demanda firme continuam a vigorar.
Para Marussia Whately, coordenadora da Aliança pela Água, coalizão de organizações da sociedade civil, esses contratos não levam em conta que a água é um bem escasso e é muito importante que sejam conhecidos pela população. “Muitas vezes os contratantes são prestadores de serviços para as pessoas, como supermercados, academia de ginásticas; com a crise há um interesse ainda maior em relação a como a água é consumida”. Além disso, ela destaca que “a postura da Sabesp e do governo do Estado, de ausência de informações claras e de canais mais amplos de diálogo com a sociedade, até contribuiu para piorar a crise”.