No apagar das luzes do último dia 12, enquanto as atenções estavam voltadas para o discurso da recém-afastada presidente Dilma Rousseff, o presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), João Pedro Gonçalves da Costa, 63 anos, assinava às pressas a última delimitação de terras indígenas da gestão petista, a TI Dourados-Amambaí Peguá I, na região de Dourados, Mato Grosso do Sul.
Costa, que assumiu a pasta em junho do ano passado, deixará o cargo tendo delimitado 12 terras indígenas, nove somente nos últimos dois meses e três no dia do afastamento da presidente. “Falamos: vamos correr com isso”, afirmou durante entrevista à Pública em seu gabinete em Brasília, provavelmente a última à frente do órgão responsável pela política indigenista nacional.
Ele diz serem “justas” as criticas ao governo que ostenta os piores índices em demarcações desde a redemocratização. No entanto, pondera que, diante de uma desabonadora conjuntura política e econômica, é positivo o “1 milhão de hectares homologados” por Dilma.
Na entrevista a seguir, o ex-deputado estadual, ex-vereador e ex-suplente de senador pelo PT do Amazonas se mostrou preocupado com os possíveis retrocessos no governo interino de Michel Temer. “Esse governo não tem DNA para ter uma relação sincera e reta com os movimentos populares”, avalia. Sobre Alexandre de Moraes, o atual ministro da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública de São Paulo, afirma: “Tem uma vida como advogado ligado a causas do crime”.
Costa falou ainda do orçamento diminuto da Funai e da necessidade de reestruturar o órgão, que opera com apenas 36% da sua capacidade total de servidores. Outros temas, como a PEC 215, a CPI da Funai e do Incra e a judicialização das questões indígenas, foram tratados na conversa. Até a publicação, Costa não havia sido exonerado do cargo.
O senhor vai deixar a presidência da Funai com o afastamento da presidente Dilma?
Esse processo político alcança todo o governo. Há uma ruptura e eu vou sair. Não tem como ser presidente da Funai no governo Temer.
Como devem ficar as pautas indígenas no governo Michel Temer?
Eu tenho muita preocupação. Saio com um misto de satisfação porque conseguimos montar uma equipe e trabalhamos bem na Funai. O concurso público [previsto para junho] foi um momento importante de conquista da casa que ainda falta ser realizado, mas está bem encaminhado e não vai sofrer nenhuma alteração. Também fico satisfeito na relação com os povos indígenas, já que conseguimos aprofundar uma relação de confiança e entusiasmo para trabalhar. Agora há um impedimento concreto nessa relação de trabalho e compromisso com a pauta indigenista, por isso nós temos que continuar fazendo resistência, e eu vou continuar, agora mais do que nunca. Na minha fala no Acampamento Terra Livre [mobilização anual da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil], afirmei que eu já tinha um caso com a causa indígena e que agora estou casado com ela depois desses 11 meses no cargo. O que está se configurando é um governo que não tem um DNA de ter uma relação sincera e reta com os movimentos populares, com a esquerda. Um governo para defender a agenda dos quilombolas, dos sem-terra, dos sem-teto, dos povos indígenas, esse governo tem que ter muito compromisso. E está se desenhando que o secretário de Segurança de São Paulo será o novo ministro da Justiça, um secretário que tem uma vida como advogado ligado a causas do crime.
Eu estou muito preocupado com esse cenário político, mas ao mesmo tempo acredito na mobilização, na organização, na interlocução do movimento indígena do Brasil.
O senhor falou sobre o governo Michel Temer, mas o governo Dilma também foi bastante criticado em relação às pautas indígenas.
Acho que criticado e justo, né? Porque como a Dilma vem da esquerda, há uma expectativa maior. Mas assim ela vai sair e, com toda a crítica, ela homologou mais de 1 milhão de hectares de terras indígenas.
No entanto, mesmo com esses atos finais do governo, ele se encerra como o governo que menos homologou terras indígenas desde a ditadura militar. O que inviabilizou essas demarcações? Qual etapa do processo de demarcação é a mais problemática?
Tem dois aspectos que precisam ser analisados. Por que houve essa sensação de paralisação? Primeiro porque, na Justiça, nós temos um corte histórico desde o debate no STF da demarcação de Raposa Serra do Sol [terra indígena em Roraima]. De Raposa saiu uma premissa que fortaleceu muito a Justiça, que foi o marco temporal [tese jurídica que propõe uma interpretação da Constituição Federal, ao definir que só poderiam ser consideradas terras tradicionais aquelas que estivessem sob posse dos indígenas na data de 5 de outubro de 1988].
Isso impôs uma lentidão nos procedimentos. Desde que se levantou o marco temporal no STF, ele virou jurisprudência nas várias instâncias da Justiça. Então, um juiz lá na ponta, por exemplo, em Antônio João, em Mato Grosso do Sul, suspendia o processo de demarcação a partir desse entendimento do marco temporal.
O segundo aspecto é que a própria composição do governo ao centro impedia as demarcações e fazia com que as terras fossem sendo travadas politicamente. Você vê que a Kátia Abreu [ligada à bancada ruralista e ex-ministra da Agricultura] se tornou uma pessoa com muita influência dentro do governo. E o Congresso com todos os seus movimentos internos, como a eleição do Eduardo Cunha em 2015, trouxe uma agenda extremamente conservadora na conjuntura. Foi nessa conjuntura que votaram a PEC 215 na Comissão Especial [em outubro de 2015], assim como foi aberta a CPI da Funai e do Incra [novembro de 2015] que continua tramitando. Então, essa agenda conservadora se fortaleceu muito depois das eleições de 2014 e isso foi impondo politicamente uma trava ao governo.
A impressão que ficou é que, só quando o governo percebeu que estava sem apoio no Congresso e que o impeachment já era realidade, as demarcações avançaram.
Acho que a conjuntura empurrou para isso, mas não foi por isso. Aqui na Funai nós tínhamos nos preparado para publicar relatórios em abril, já estávamos vindo numa mobilização grande. Realizamos a primeira Conferência Nacional de Política Indigenista [dezembro 2015], instalamos o Conselho Nacional de Política Indigenista em abril, por conta do próprio calendário do decreto que o criou, e nós tínhamos preparado, ainda por conta da agenda do Acampamento Terra Livre, uma série de atos. Claro que, quando você se depara com essa possibilidade iminente que se materializou do fim do governo, falamos: “Vamos correr com isso”. Muitas coisas estavam sendo estudadas, chegando das terras indígenas, como os relatórios que são entregues pelos antropólogos e são submetidos a procedimentos de várias comissões internas que dão o seu parecer. Nós corremos, mas não teve essa coisa de “só agora”. Nós já estávamos fazendo. Com a iminência do final do governo, nós demos uma acelerada nesses atos. Ainda bem! Nós não temos que reclamar do que está saindo, porque é fruto de trabalhos técnicos, e não têm absolutamente nenhum arranjo. São trabalhos técnicos de campo, longos, demorados, sacrificados. Os últimos trabalhos da Funai foram feitos em Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e sul do Pará, onde realizamos nossas tarefas com ameaças físicas, impedimentos, seja de prefeitos ou jagunços tentando impedir o deslocamento das nossas equipes.
Não é frustrante para o senhor ver a questão indígena ser tão condicionada ao arranjo de forças políticas?
Não tenho nenhuma dúvida que pelo formato do Estado brasileiro, do Congresso, do presidencialismo, nós vamos ter sempre esse perfil. Enquanto não houver reforma política, teremos sempre essas forças contrárias próximas da pauta indígena. Além disso, o perfil do ministro da Justiça, onde a Funai está vinculada, se reflete na dinâmica do órgão. A Funai ligada ao Ministério da Justiça vai estar sempre sob influência do titular do ministério, e isso pode e vai se refletir na agenda da Funai.
A pauta dos povos indígenas continua atual. Temos 1 milhão de índios que precisam de políticas públicas. A Constituição rompeu com o paternalismo do Estado para com os povos indígenas, e as políticas públicas devem fortalecer a autonomia desses povos.
O que tem de ser rearranjado institucionalmente na Funai?
Primeiro é preciso fazer um debate sobre o tamanho e a estrutura do órgão. Eu tinha programado de fazer esse debate da reforma a partir de setembro, depois da realização do concurso público, com servidores, povos indígenas, sociedade civil e as organizações não governamentais. Nós temos uma estrutura que vem de um decreto em 2009, é preciso debater não só espaço físico, mas uma agenda de concepção para localizar melhor a Funai nos tempos atuais.
Qual seria esse novo papel que a Funai deveria adotar?
Temos uma agenda grande sobre a gestão de terras indígenas. É um grande desafio. Passa-se ao público um discurso que não é o discurso dos povos indígenas, de que tem muita terra para pouco índio. Precisamos desmistificar esse equívoco, e o Estado brasileiro precisa compreender que precisamos demarcar ainda muitas terras. Então, além do debate da gestão, existe o debate para demarcarmos mais terras. No Nordeste, por exemplo, você tem povos com 6 mil pessoas morando em pequenas cidades sem o reconhecimento da tradicionalidade de seus territórios. A Funai precisa ter um orçamento compatível com essa agenda de demarcação e ter mais técnicos.
A Funai vem sofrendo cortes de orçamento, sobretudo, nas atividades finalísticas, como demarcações e fiscalizações. O Executivo, pelo menos na execução orçamentária, não esteve tão comprometido assim com a pauta indígena?
O orçamento foi cortado para todos. Você vai no Ministério da Defesa é a mesma situação, “parece que o governo não tem compromisso com as Forças Armadas?”. Nós precisamos brigar por mais recursos. Tem dois anos de crise concreta na economia brasileira, e nós sofremos bastante com esses cortes do orçamento.
Qual foi o impacto?
Primeiro, o orçamento da Funai de hoje é o menor dos últimos quatro anos. Em 2015, nós executamos R$145 milhões. O orçamento que saiu do Congresso Nacional foi R$ 5 milhões menor do que tínhamos executado no ano passado. Não foi o poder Executivo, foi o Congresso que cortou o orçamento da Funai. Para fazermos uma agenda digna, precisamos ter mais técnicos, fazer uma reestruturação, ter outro orçamento. Nós acabamos de fazer uma agenda com os yanomami de Roraima voltada ao combate da mineração ilegal em suas terras. Fizemos uma operação com os caiapó do sul do Pará e de combate a mineração com os Cinta-Largas. Ou seja, é isso que nós fazemos com o orçamento, impomos um ritmo mais forte na proteção. Com essa ruptura institucional, o lado frustrante é não darmos continuidade ao trabalho.
Quanto pesa o contingenciamento de verbas?
Se reflete na diminuição das ações, e de todas elas. Atribuo essa situação à crise econômica, e não ao embate de forças.
Mas o quadro de servidores não é insuficiente?
É o que falei, precisamos fazer uma reestruturação. Estamos fazendo o concurso público e vamos ter mais 300 vagas abertas. O ministro do Planejamento pode chamar 50% do número das vagas. É suficiente? Não. Nós precisamos fazer mais uns três concursos para repor a nossa força de trabalho e a nossa presença. Do final do ano para cá, mais de 500 servidores estão aptos à aposentadoria. Precisamos repor, assim como precisamos demarcar mais terras, o que exige uma presença maior da Funai.
Aproximadamente 180 terras indígenas ainda precisam ser identificadas. Por que essas terras estão paradas nesse estágio e não foram identificadas adequadamente?
Não tem isso de não foi feito. Se faz bem, já falamos dessa questão. Depois do marco temporal, muitos trabalhos da Funai foram suspensos administrativamente, e ninguém consegue ir a campo porque um juiz de Mato Grosso do Sul, por exemplo, decidiu que não se pode fazer os procedimentos fundiários. Muita coisa emperrou por conta da judicialização dos trabalhos da Funai. A Funai não parou, mas nós tivemos muita dificuldade de concluir trabalhos nas terras indígenas.
A PEC 215 é o fim da Funai?
Penso que não. Se votada no plenário, produz um grande retrocesso nas conquistas indígenas e no que foi pactuado na Constituição de 1988. Agora, não se pode negar a capacidade de mobilização, e os povos indígenas não estão sozinhos, vai ter muito enfrentamento para se materializar a PEC 215. Acredito que ela não passe nas duas casas, Câmara e Senado, mesmo com toda a força que tem essa direita representada por ruralistas e pelo agronegócio.
A CPI da Funai e do Incra é uma tentativa de desmoralizar esses órgãos?
A CPI vai nesse sentido, sim, de constranger e criar um clima. Minha leitura é que essa CPI é para viabilizar a PEC 215, então a CPI faz um diagnóstico e tenta desqualificar os antropólogos, constranger os povos indígenas, os trabalhos da Funai, mais nessa estratégia de criar um clima anti-indígena e puxar para o Congresso a questão é um absurdo. Você imagine uns parlamentares discutindo terra indígena a partir de sua ancestralidade, a partir de sua historicidade? O Congresso não tem perfil para fazer uma discussão e garantir a terra indígena.
Como você responde às acusações da CPI de interferência das ONGs nos trabalhos?
A CPI é um instrumento legal, faz parte da natureza do Congresso instalar uma CPI. Agora, o que nós ouvimos de alguns parlamentares é vergonhoso. Agressivo. Chega a ter manifestações odiosas contra os povos indígenas, desrespeitosas contra os antropólogos. Nós não podemos aceitar essas manifestações que tentam denegrir e desqualificar pessoas que dedicam suas vidas estudando os povos indígenas no país. É inaceitável essa postura contra a Funai.
Por que a Funai não consegue manter uma fiscalização sistemática nas terras indígenas?
Nós não deixamos de ir, de combater o fogo nas terras guajajaras, nós não deixamos de combater a mineração, nós não deixamos de fazer enfrentamento. Mas isso se reflete por conta de orçamento. Para você fazer um combate ao fogo, mineração, você precisa contratar helicópteros, ter uma infraestrutura para fazer desintrusão de terra; quer dizer, é uma mobilização grande que vai além da Funai… Tem a ajuda da Guarda Nacional, mas quem paga os carros, a gasolina, é a Funai. É preciso uma mobilização de outras instituições, mas, se o orçamento é curto, acaba refletindo na efetividade dessas ações.