O deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) sonha com a presidência da República. Planeja se candidatar ao cargo no ano que vem, mas já tem procurado mostrar suas ideias e opiniões controversas. Em entrevista ao Estadão publicada no domingo (2), o parlamentar usou uma série de dados. O Truco – projeto de fact-checking da Agência Pública – verificou oito frases ditas por Bolsonaro. Solicitamos a fonte das informações usadas, mas a assessoria do deputado não enviou resposta.
“Eu nunca votei com o partido, tanto é que quem diz isso não sou eu. É o Joaquim Barbosa.”
Bolsonaro foi questionado sobre a convivência com políticos investigados na Lava Jato, já que foi filiado entre 2005 e 2016 ao PP, uma das legendas mais envolvidas no esquema de corrupção investigado pela operação. Hoje deputado pelo PSC, o parlamentar disse que “nunca votou com o partido”. Para validar sua afirmação, ressaltou ainda que “quem diz isso (…) é o Joaquim Barbosa”. Os dados mostram, contudo, que a frase de Bolsonaro é falsa.
Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Barbosa fez menção ao nome do deputado durante o julgamento da Ação Penal 470, o mensalão, em setembro de 2012: “A reforma da Previdência e a reforma tributária foram os principais exemplos de votações do interesse do governo federal na Câmara dos Deputados que teriam sofrido interferência desses pagamentos [do mensalão]. (…) Somente o senhor Jair Bolsonaro, do PTB, votou contra a aprovação da referida lei. Todos os demais votaram no sentido orientado pelo líder do governo e do PT na Câmara dos Deputados.”
Na época filiado ao PTB, onde ficou entre 2003 e 2005, Bolsonaro se posicionou contra a orientação partidária tanto na reforma da Previdência (PEC 40/2003) quanto na reforma tributária (PEC 41/2003). A primeira foi aprovada pela Câmara dos Deputados após 22 votações em plenário, em agosto de 2003. Presente em 19 delas, Bolsonaro votou com o partido somente em três ocasiões, manifestando-se contra a proposta governista nas votações em primeiro e segundo turno.
Nas 33 votações que envolveram a reforma tributária, ao longo de setembro de 2003, Bolsonaro foi contra o partido 31 vezes. Ele não foi o único dos 50 petebistas a bater de frente com a legenda – na votação em segundo turno da proposta, três outros deputados fizeram o mesmo.
Como se vê, Bolsonaro não respondeu à pergunta da reportagem sobre a relação que mantinha com investigados do PP. Valeu-se de uma citação do ex-ministro Joaquim Barbosa para passar a impressão de distanciamento da corrupção. O magistrado se referia, porém, a outra sigla, o PTB, e não à corrupção investigada pela Lava Jato, mas ao mensalão. A afirmação do deputado é classificada como falsa. Por mais que tenha sido um parlamentar rebelde enquanto esteve no PTB, o aspirante a presidente da República votou com o partido em algumas ocasiões – ao contrário do que ele e Barbosa disseram.
“O ano passado nós gastamos R$ 28 bilhões com o Bolsa Família.”
Ao criticar o Bolsa Família, Bolsonaro citou o valor que teria sido gasto com o programa no ano passado. Dados do Relatório de Programas e Ações do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, disponível no site da pasta, mostram que a quantia citada pelo parlamentar está correta. Em 2016, foram gastos R$ 28,5 bilhões em benefícios do Bolsa Família, que atenderam 13,5 milhões de famílias.
Os recursos destinados ao Bolsa Família têm caído desde 2014, se os números forem corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPC-A), elaborado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2015, foram destinados R$ 29,6 bilhões ao programa, que beneficiaram 13,9 milhões de famílias. Já em 2014 a soma foi equivalente a R$ 32,2 bilhões, para 14 milhões de famílias.
“Em 1999, o Estado-Maior das Forças Armadas fez um estudo mostrando que ao longo de 30 anos, na verdade, o militar trabalhava 45.”
A comparação feita pelo deputado Jair Bolsonaro entre as jornadas de trabalho dos servidores civis e militares é recorrente entre os integrantes das Forças Armadas. Apareceu recentemente em um artigo do comandante do Exército Brasileiro, General-de-Exército Eduardo Dias da Costa Villas Bôas; em apresentações usadas para defender o sistema de pensões e aposentadorias dos militares, disponíveis no site da Marinha; em um artigo de um coronel da Polícia Militar do Paraná, que está na reserva remunerada; e em uma reportagem que entrevistou um fuzileiro naval que está na reserva. É impossível saber se a informação está correta, porque não existem dados confiáveis sobre esse tema.
Em nenhum dos casos citados acima é mencionado quem seria o autor responsável pelo estudo que chegou a essa conclusão. Procuramos o Ministério da Defesa para confirmar se o Estado-Maior das Forças Armadas realmente fez essa análise em 1999, como disse Bolsonaro. A assessoria de imprensa afirmou que não pode responder sobre isso, porque a pasta foi criada em 1999 e todo o arquivo do Estado-Maior foi enviado para o Arquivo Nacional.
As apresentações feitas pela Marinha encontradas pela reportagem incluem tabelas para explicar de onde veio a diferença de 15 anos de serviço que seriam prestados, a mais, pelos militares. Em uma delas, o texto cita como fonte “estudos realizados pelas FFAA [Forças Armadas] em 2003 e revisados em 2016”, sem mais detalhes. Procurado novamente, o Ministério da Defesa limitou-se a dizer, via assessoria, que os documentos foram produzidos pela pasta, com participação das Forças Armadas e da Fundação Getúlio Vargas. Não fica clara a metodologia utilizada, nem há o nome dos autores.
De acordo com as tabelas, na Marinha os servidores teriam em média 14 anos e 8 meses de trabalho adicional, tempo que subiria para 15 anos e 7 meses no Exército e cairia para 12 anos e 9 meses na Aeronáutica. O problema desses cálculos está em serem estimativas, ou seja, números que não quantificam casos reais. Não foi analisado o histórico da jornada de trabalho dos militares das Forças Armadas que prestam serviços em diferentes regiões do país – ou até mesmo uma amostragem representativa deles – para saber se todos são obrigados a cumprir essa quantidade de horas extras.
Ainda que todos os militares tiverem em média as jornadas citadas na tabela, a comparação desconsidera a existência de horas extras também prestadas pelos servidores civis. Parte da ideia de que os 30 anos de serviço desses trabalhadores não renderiam “anos a mais”, o que é impossível saber sem analisar também esses dados. Somente assim poderia ser determinada a diferença entre os dois tipos de servidores. Por isso, classificamos o dado na frase de Bolsonaro como impossível de provar.
“A massa que atualmente se aposenta está até três salários mínimos, mais da metade está até três salários mínimos.”
De acordo com o último boletim estatístico da Previdência Social, publicado em dezembro de 2016, 49,3% dos benefícios concedidos pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS) equivalem a um salário mínimo, 33% ficam entre um e dois salários mínimos e 8,9% entre dois e três salários mínimos. Portanto, 91,2% dos benefícios do RGPS encontra-se na faixa mencionada pelo deputado, entre um e três salários mínimos. Isso corrobora a veracidade de sua afirmação, já que ele diz que “mais da metade está até três salários mínimos”. A frase está correta, pois a análise dos dados e de outras fontes confirma a veracidade da informação.
“Como se não bastasse, nós temos quase 20 mil haitianos nas mãos do MTST em São Paulo, massa de manobras, inclusive o Haddad já cadastrou no Bolsa Família…”
Não foram encontradas fontes confiáveis que possuam dados relativos ao número de haitianos envolvidos no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). A reportagem procurou representantes do movimento e conversou com Natália Szermeta, da coordenação nacional do MTST. Ela afirma que a organização não possui nenhum tipo de levantamento do número de haitianos envolvidos no movimento. “Nossas ocupações são na periferia. Como em geral os estrangeiros ficam mais no centro, o número seria realmente irrisório”, afirma Szermeta. “Muitas ocupações não têm nenhum haitiano envolvido e as que têm contam com no máximo dois ou três. Esse número apresentado pelo deputado é largamente exagerado”.
Com relação ao cadastro de haitianos do Bolsa Família, é permitido a um imigrante haitiano receber o benefício, desde que ele esteja em situação legal no Brasil e tenha pelo menos um documento, como CPF ou carteira de trabalho. O Truco entrou em contato com o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, responsável por benefícios sociais, e também com a Caixa Econômica Federal, que efetua os pagamentos. Nenhum dos órgãos informou, dentro do prazo da reportagem, qual seria o número de haitianos beneficiados pelo programa Bolsa Família na cidade de São Paulo. Os relatórios de informações sociais disponibilizados no site do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário mostram diversos dados das famílias cadastradas no município, mas não informam a nacionalidade dos beneficiários.
Como o MTST não possui dados do número de haitianos envolvidos no movimento e tampouco o governo fornece informações do total de beneficiários do Bolsa Família com origem no Haiti, classificamos a frase como impossível de provar. Afinal, não existem dados confiáveis – oficiais ou de outras fontes – que comprovem a afirmação.
“A gente cresce 2 milhões de habitantes por ano [no Brasil].”
Ainda que tenha caído nos últimos anos, o crescimento da população brasileira ainda representa um acréscimo significativo ano a ano. Segundo dados do Banco Mundial, que se baseia em diversas fontes, entre eles os censos de diversos países e relatórios da divisão de população da ONU, nos últimos cinco anos a população brasileira aumentou, em média, 1,8 milhão de pessoas por ano. Veja, na tabela abaixo, o crescimento de 2010 a 2015. Classificamos a afirmação de Bolsonaro como verdadeira, já que o número indicado pelo candidato é muito próximo ao verificado em dados oficiais, e a tendência por ele apontada está correta.
ANO | POPULAÇÃO |
2015 | 207,847 milhões |
2014 | 206,077 milhões |
2013 | 205,259 milhões |
2012 | 202,401 milhões |
2011 | 200,517 milhões |
2010 | 198,615 milhões |
Fonte: Banco Mundial
“Você tem o Rio Cotingo [em Roraima] que, pela topografia, você pode construir três hidrelétricas lá. Uma só já seria suficiente para abastecer Roraima e ainda sobraria metade [da energia].”
O Rio Cotingo, em Roraima, tem capacidade de abrigar cinco barragens, pela sua topografia. Isso permitiria a construção de várias hidrelétricas, mas, desde os anos 1980 apenas uma dessas barragens tem sido considerada como projeto a ser executado – enfrentando forte resistência por estar em área indígena. O deputado Jair Bolsonaro errou ao dizer que a energia produzida por ela seria suficiente para abastecer o estado e “ainda sobraria a metade”. A comparação de estudos produzidos nas últimas décadas com o consumo atual de energia pelo estado mostra que a afirmação é falsa.
A ideia de construção de hidrelétricas no Rio Cotingo surgiu na década de 1970, durante a ditadura militar, de acordo com artigo escrito por Philip Martin Fearnside e Reinaldo Imbrozio Barbosa, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Segundo os autores, a Eletrobrás fez naquela época um levantamento de sítios hidrelétricos potenciais em toda a bacia amazônica. As análises identificaram pontos em que seria possível instalar cinco barragens no Rio Cotingo, que somariam 584,4 megawatts de potência instalada. Desses, 274,2 megawatts seriam energia firme, ou seja, gerada ao longo de todo o ano. Todos os lugares ficam dentro da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
No início da década de 1990, a construção de uma hidrelétrica no Rio Cotingo começou a se tornar um projeto concreto – impulsionado pelo governo do estado – e foi incluída no Plano Decenal da Eletrobrás (1993-2002). A ideia era construir apenas uma das cinco barragens possíveis, na região da cachoeira do Tamanduá. De acordo com Fearnside e Barbosa, a usina deveria ficar pronta até 1999 e teria uma potência de 136 megawatts na sua segunda etapa.
A obra esbarrou em questões sociais, uma vez que atingiria áreas indígenas, e também ambientais e financeiras. Diante da resistência dos povos da região, de decisões judiciais e de estudos técnicos que apontaram sua inviabilidade, não foi levada adiante. Ainda assim, de tempos em tempos políticos tentam ressuscitar a ideia. Em 2011, a Comissão de Minas e Energia da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Decreto Legislativo 2540/06, do Senado, que permite a construção da usina do Rio Cotingo. A proposta precisa passar ainda pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e pelo plenário. Após forte reação dos povos indígenas, que escreveram uma carta condenando o projeto, permanece engavetada.
De acordo com a Eletrobrás, a energia elétrica consumida em Roraima vem do complexo hidrelétrico venezuelano de Guri e Macaguá, de onde chegam até 200 megawatts. “Em casos emergenciais, uma usina termelétrica com 62 megawatts de potência instalada entra em operação”, diz o site da empresa. Logo, a energia consumida pelo estado pode chegar a 262 megawatts. Se estivesse em funcionamento, a Usina Hidrelétrica do Cotingo geraria até no máximo 136 megawatts – metade do que Roraima consome. Se houvesse cinco barragens, garantiriam 274 megawatts e só em alguns períodos do ano chegariam a 584 megawatts. Por errar tanto na quantidade de hidrelétricas como na energia que será gerada por aquela que um dia pode ser construída, consideramos falsa a afirmação de Bolsonaro.
“O orçamento no ano passado, se não me engano, desse ano, dá R$ 1 trilhão e 700 milhões para rolagem de dívida e amortização. Praticamente metade do que se arrecada no Brasil vai para o sistema financeiro.”
O deputado criticava a não inclusão de gastos financeiros na PEC do Teto de Gastos, aprovada em 2016, quando afirmou que R$ 1,7 trilhão do orçamento deste ano será destinado ao pagamento da dívida pública, ou “praticamente metade do que se arrecada no Brasil”. Recorremos aos dados do orçamento federal de 2017, consultados por meio da Lei Orçamentária Anual e também do portal Siga Brasil, mantido pelo Senado Federal, e constatamos que as observações de Bolsonaro estão corretas.
Aprovado em dezembro pelo Congresso Nacional, o orçamento prevê uma arrecadação de R$ 3,505 trilhões em 2017. Do montante das despesas, R$ 1,72 trilhão estão reservados para o pagamento de juros (R$ 339 bilhões), amortização (R$ 437 bilhões) e refinanciamento (R$ 946 bilhões) da dívida pública, ou 49,1% da previsão de receita para o ano.
Bolsonaro acertou, portanto, ao dizer que “praticamente metade” da arrecadação será revertida para pagamentos relacionados à dívida pública. Também acertou ao dizer que serão investidos em seu pagamento R$ 1,7 trilhão – se considerarmos somente a primeira casa decimal. A afirmação do deputado é classificada, portanto, como verdadeira.
Atualização (05/04, às 18h48): As imagens dos selos da quinta e sétima checagens estavam invertidas. Corrigimos o problema.