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No oeste do Paraná, índios Guarani querem retomar as terras de onde foram expulsos em nome da construção da hidrelétrica de Itaipu pelo regime militar

Reportagem
16 de março de 2015
19:19
Este artigo tem mais de 9 ano

Pedro Alves pega uma vareta para mostrar as antigas aldeias guarani no oeste paranaense. O xeramõi – uma espécie de autoridade espiritual, ancião sábio – serpenteia o pedaço de pau pelo chão de terra batida da Tekoha Y’Hovy, aldeia onde vive, no município de Guaíra, e relembra onde cada parente morava e por onde corria o rio antes do alagamento para a construção da hidrelétrica de Itaipu. Em frente à sua roça, Pedro equilibra-se em um banquinho de madeira colocado no único rastro de sombra que resistiu ao sol do meio dia. “Naquela época a mata era quase virgem. Tinha mata, caça, palmito”, recorda. Seu Pedro apaga o desenho com as mãos e risca novamente o chão, dessa vez com várias linhas saindo de um ponto em direção à diversas regiões. Cada linha representa a direção tomada por seus parentes Guarani para fugir do alargamento do Rio Paraná, em 1982.

Em outra aldeia, a Tekoha Korumbe’y, situada dentro dos limites do município de Guaíra, o cacique Ismael Rodrigues explica: “Antigamente, quando eu tinha doze ou treze anos, já pescava aqui nesse Rio Paraná. Ele tinha um remanso muito bonito, e você tinha que ir em silêncio pescar lá, sem fazer movimentos bruscos”.

“Naquele tempo nós vivíamos na beira do rio. Não tinha fazendeiro nem nada. Só os índios que mandava. Fazia casa onde quiser! A terra era nossa”, complementa Vitória Barros, sentada em uma cadeira de plástico em frente à sua casa, na Tekoha Nhemboeté, em outro município, Terra Roxa.

Pedro Alves mostra a sua roça na Tekoha Y ‘Hovy. Fotos: Agência Pública/Greenpeace/Isabel Harari

“Eles fizeram medo, nos intimidaram pra que saíssemos daqui. Uns passaram pro Mato Grosso do Sul, outros foram pro Paraguai e pra outros lugares”, conta Simião Benites também na língua materna, sentado na opy, a casa de reza da Tekoha Poha Renda, em Terra Roxa.Gregório Sousa, também morador da Tekoha Marangatu, relata em guarani que alguns indígenas foram avisados, mas outros tiveram que sair às pressas quando viram o rio subindo: “a gente não estava sabendo de nada. De repente, começaram a fechar o Rio Paraná”.

Rosalina Souza, xaryi – guarani para anciã – da Tekoha Miri, aldeia que margeia uma estrada próxima à cidade de Guaíra, lembra-se ainda que “tinha várias pessoas que não queriam sair e a gente não sabe o que aconteceu com elas”. Faustino Duarte, xeramõi que também vive na Tekoha Miri, conta: “Eu não sei o que aconteceu com a minha mãe nem com o meu pai porque, quando ia fechar o Rio Paraná, eu corri [com outros parentes]”.

De volta à Tekoha Y’Hovy, Pedro espana novamente as mãos sobre o chão e rabisca mais uma vez o terreno. Com a vareta, desenha as figuras das aldeias que foram construídas – ou “retomadas” – recentemente pelos Guarani. A maioria delas foi realizada nos últimos quatro anos.

“Eu nasci e cresci em Guaíra e não posso deixar o lugar onde nasci. A gente não pode deixar o lugar que a gente nasceu e cresceu, por isso estamos aqui ainda. Os brancos, quando crescem, deixam o lugar onde nasceram, mas a gente é diferente”, conta Gregório, da Tekoha Marangatu.

“Pode levar pra onde quiser, pode ser pra longe, que depois volta tudo outra vez. Até a pé nós vem. Não adianta levar longe”, explica Vitória Barros, na Tekoha Nhemboeté.

O alagamento de vastas áreas no entorno do Rio Paraná, em 1982, para a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu-Binacional foi o último grande movimento de um longo processo que, durante o século passado, foi pressionando os índios cada vez mais a oeste e para fora do estado. Fruto de um acordo binacional entre o Brasil e o Paraguai, a construção do megaempreendimento já estava nos planos desde a década de 1940, por conta da importância estratégica da região fronteiriça e pela necessidade da produção de energia, fazendo coro ao binômio “Segurança e Desenvolvimento” pregado pela Ditadura Militar.

Em pleno regime ditatorial, controlado por uma elite civil e militar, a construção de Itaipu “levou a uma nova onda de esbulho territorial”, segundo concluiu o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em dezembro do ano passado. O levantamento sobre as violações cometidas em nome da usina, que hoje fornece cerca de 17% da energia consumida no Brasil, faz parte do capítulo sobre violações dos direitos humanos dos povos indígenas.

Em entrevista à Pública, a psicanalista Maria Rita Kehl, responsável pelo texto, lembra que o componente indígena aparecia, inicialmente, como “uma coisa pequena, uma nota de rodapé” a ser incluída na pesquisa. “Não sabia muito o que tinham os indígenas a ver com isso e muita gente me questionou: ‘Indígenas? Como assim? Eles não foram contra a ditadura’”. Durante a pesquisa, assombrou-se. “O relatório prova que foram graves violações de direitos humanos dos indígenas com participação direta ou com conivência do Estado”. O capítulo apresenta a estimativa de que pelo menos 8.350 indíos tenham sido mortos no contexto da implementação da política vigente ou pela participação direta de agentes estatais no período investigado pela CNV (entre 1946 e 1988). O texto aponta o caráter amplo das violações, que foram do esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, até torturas, maus tratos e extermínio de povos inteiros.

Durante os trabalhos, a psicanalista diz ter percebido que os índios “eram considerados um empecilho e havia um enfrentamento violento contra eles, como se fosse uma guerra contra outro país”.

O caso dos Avá-Guarani do oeste do Paraná merece destaque no capítulo. “As remoções também foram prática corrente quando se tratava de realizar empreendimentos em áreas com presença indígena”, diz o texto em referência à Hidrelétrica Itaipu. A equipe da CNV, através de seu coordenador, José Carlos Dias, fez um pedido de documentos  “em qualquer grau de sigilo” para Itaipu sobre as relações entre a empresa e os indígenas. Na solicitação, a CNV afirma ter sido informada sobre a existência, “no acervo desta instituição [Itaipu], farta quantidade de documentos relevantes sobre estes casos”. Mas não recebeu qualquer resposta.

Com a construção da usina, o curso do Paraná foi barrado e o rio transformou-se em um imenso lago artificial, inundando, segundo o projeto original, uma área de 1350 quilômetros quadrados – destes, 770 do lado brasileiro. Apesar de a barragem estar em Foz do Iguaçu, outros 15 municípios foram atingidos pelas águas do Paraná. Dentre eles, trechos de Guaíra e Terra Roxa. Ficou também debaixo d’água a Cachoeira das Sete Quedas, de beleza natural inigualável. Na ocasião do fechamento das comportas para a criação do lago da usina de Itaipu no dia 9 de setembro de 1982, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreveu no Jornal do Brasil: “Sete quedas por mim passaram, e todas sete se esvaíram / Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele a memória dos índios, pulverizada, já não desperta o mínimo arrepio (…)”.

Antes mesmo da consolidação de Itaipu, o avanço das obras gerou uma onda de regularização fundiária feita às pressas pelo Instituto de Colonização Agrária (Incra) para por em ordem e indenizar as propriedades que foram adquiridas de forma ilegal com o avanço descontrolado da colonização das décadas anteriores. Os posseiros, ainda que de forma irregular, foram beneficiados em detrimento dos Guarani que ali viviam.

A ditadura aboliu a demarcação de terras indígenas nas regiões fronteiriças por conta da “segurança nacional”. A Funai foi sendo paulatinamente ocupada por “militares egressos dos Serviço Nacional de Informação (SNI) e do Conselho de Segurança Nacional (CSN)”. A militarização do órgão consolida a visão de que a demarcação de terras indígenas em zonas de fronteira nacional representaria um risco à soberania do Brasil.

Com a inundação do lago, as famílias Guarani tiveram que sair. “Ou corria, ou morria”, é uma frase ouvida frequentemente no relato dos mais velhos. Foram removidas 42 mil pessoas da área. “Foram indenizados os que tinham título. O não reconhecimento foi a estratégia usada para praticar o esbulho”, explica Diogo Oliveira, servidor da Funai que atuou na região entre 2012 e 2014.

Rosalina Souza, hoje moradora da Tekoha Miri, afirma que na região viviam muitos índios, ao contrário do que era disseminado por Itaipu e pela cúpula governamental: “Eu nasci na aldeia Oco’y, e perto de lá tinha uma aldeia chamava Ipiranga, Jakutinga, Porto Mendes, ‘Pepu’, Jurikaba, tinha vários lugares aqui, morava muitos Guarani”, conta. “Quando Itaipu ia fechar a água a gente correu foi pra vários lugares. Alguns foram pra Santa Helena num barquinho que a gente fez. Naquela época, a gente recebia muita ameaça e a gente morria de medo. Ameaçavam a gente, diziam que iam levar pra fazer sabão. E ai a cada um ia pro seu canto. E, com medo, a gente foi pra longe”.

Diferentemente de muitas histórias relatadas pelos indígenas, o xeramõi Gregório Matos nunca deixou a região. Hoje, vive na Tekoha Marangatu, nas proximidades de Guaíra, ocupada em 2004. Ele conta que na época da inundação a usina prometeu uma indenização que nunca chegou: “O pessoal da Itaipu falou que ia pagar para aqueles que iam sair. Pra mim eles não pagaram e eu fiquei onde nasci, mas não sei pros outros. Os cemitérios que a gente tinha antigamente ficaram debaixo das águas, e várias aldeias ficaram debaixo d’água também. Algumas vezes eu penso e dá um aperto. Os corpos de muitos dos nossos pais ficaram debaixo d’água”.

“A situação se encaminhou em 1982 para a remoção e confinamento dos Guarani numa exígua faixa de terra à beira do lago de Itaipu, sem qualquer paridade em tamanho e condições ambientais com o território ocupado anteriormente, o que também violava a legislação indigenista vigente”, diz o texto da CNV. Ali eles enfrentaram surtos de malária e doenças “decorrentes do uso de agrotóxico pelos colonos vizinhos, surtos esses que dizimaram parte da população”, prossegue o texto, baseando-se em um laudo antropológico assinado pela antropóloga e servidora da Funai Maria Lúcia Brant de Carvalho, que estudou e conviveu com os Guarani entre 2001 e 2007. Ainda segundo a CNV, “prevaleceu, contudo, a versão oficial dos ‘índios inexistentes’ e da ‘generosidade de Itaipu’”

Campo de soja em Terra Roxa. Foto: Agência Pública/Greenpeace/Isabel Harari

Só três reservas reconhecidas

Somente três reservas guarani na região são atualmente reconhecidas pelo governo brasileiro e recebem apoio técnico de Itaipu. A primeira, delimitada em 1982 pela Funai em São Miguel do Iguaçu, foi a do Oco’y. Com 251 hectares e incrustrada em parte de um dos ramais do lago de Itaipu, a reserva se sobrepõe à Área de Proteção Permanente (APP) do lago.

Para delimitar a reserva do Oco’y e quem tinha direito a ela, a Funai adotou no seu laudo “critérios de indianidade”. Os critérios haviam sido introduzidos em 1979 pelo Coronel Ivan Zanoni Hausen, que trabalhava na Funai, e colocavam cada família encontrada em uma escala de pontuação que denotava quem era índio e quem não era. Dentre os indicadores – quinze, no total –, entram como a sociedade nacional enxerga os “elementos culturais representativos” dos indígenas e como os índios apontam sua “identidade de caráter”, que não tem definição precisa.

Quando o laudo assinado pelo antropólogo Célio Horst foi feito em 1981, depois de repetidas pressões, havia apenas 12 famílias que viviam na região do Oco’y. Dessas, somente cinco foram consideradas indígenas. O laudo foi contestado por Clóvis Ferro Costa em 1987, então diretor jurídico de Itaipu. Em uma correspondência interna e confidencial com o diretor de coordenação da companhia, Clóvis afirma que “é evidente que o relatório sobre o qual se baseou Itaipu não é veraz” e conclui que “ao invés de Itaipu ter sido generosa, provavelmente terá subtraído muita área dos indígenas”.

“O fato é que os critérios que nortearam a criação da TI Avá-Guarani de Oco’y são meramente políticos e advém mais do processo de colonização e da necessidade imperativa de Itaipu de remover os índios das áreas onde se encontravam do que de critérios técnicos e antropológicos que tivessem levado em conta a tradicionalidade da presença indígena na região, seus modos e costumes, e o direito desses grupos de terem seus territórios reconhecidos”, coloca o texto do relatório do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), que serviu de subsídio à CNV.

Questionada pela reportagem, Itaipu respondeu que “essa posição não invalida os estudos promovidos por ocasião da construção da usina”, mas que “levou em conta essa posição do diretor em seu processo de gestão da questão indígena”.

De acordo com o relatório do CTI, o pequeno número de famílias se deve à expropriação, pelo Incra, dos moradores da região durante a ditadura. Pedro Alves, ex-cacique da aldeia do Oco’y, conta que, já em 1969, o órgão “falou que tinha que sair, queimaram casa, e daí teve que sair”. Ele relata que as terras até então ocupadas pelos indígenas foram arrendadas pelo Incra para plantações de não-índios “enquanto a represa fica pronta”. “E daí os índios tiveram que correr e passar pro Paraguai”.

O mesmo relatório aponta que desde os anos 1940 o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão indigenista oficial da época, já se valia de estratégias para invalidar e reduzir o número de indígenas no oeste do Paraná. O órgão oficial realizou a remoção forçada de famílias Guarani para Rio das Cobras, reserva dos índios Kaingang em Laranjeiras do Sul, no interior do estado, e recusava sistematicamente emitir documentos de identidade aos indígenas em sua terra tradicional. Muitos acabaram por retirar o RG em outros estados, o que é trazido à tona até hoje como justificativa para alegar que os Guarani não são moradores do Paraná.

Na época, os Guarani pleiteavam uma extensão de 1500 hectares de terras. A área era estimada de acordo com seu território originário. Mas, frente ao avanço das obras que culminariam na elevação do nível do Rio Paraná, os indígenas aceitaram o acordo que garantiria os 251 hectares aos índios da aldeia do Oco’y.

Outras duas reservas foram criadas posteriormente, em 1997 e 2007, no município de Diamante d’Oeste.

Para uma terra indígena ser demarcada, é necessário um processo que envolve estudos antropológicos atestando a presença tradicional indígena na área, um período para contestações, delimitação do espaço e o reassentamento de não-índios que estejam no local. Participam na tramitação, além da Funai, o Incra, Ministério da Justiça, Ministério da Fazenda e a Presidência do País, conforme o decreto 1.775 de 1996. Já a realocação de indígenas em áreas nas quais não se comprovou, de forma oficial, uma presença ancestral daquele povo, é possível através de reservas indígenas ou terras dominiais nos casos em que a terra de ocupação tradicional não é mais acessível – é o caso das aldeias inundadas completamente pelo lago de Itaipu. Em ambas, a área pleiteada é doada por terceiros, adquirida ou desapropriada pela União.

Foi o que aconteceu nas áreas de Diamante d´Oeste. Ambas foram adquiridas por Itaipu e entregues aos indígenas, tornando-se reservas. Um dos problemas é que os indígenas não têm assegurados os mesmos direitos de gestão sobre o território.

Outra crítica é feita por Ilson Soares, cacique da aldeia Tekoha Y’Hovy. Para ele, a compra de um terreno não ocupado tradicionalmente é uma forma de lhes “tirar a cultura”. “Eles acham que podem compensar as terras que foram inundadas realocando os indígenas para outras terras. A nossa terra tradicional é sagrada, não vamos aceitar ficar em qualquer lugar”.

Criança guarani tomando banho na Pedreira, açude próximo a Tekoha Y’Hovy. Foto: Agência Pública/Greenpeace/Isabel Harari

Terra Sagrada

O historiador Clóvis Brighenti diz que, na época, os indígenas da região “resistiram bravamente” à inundação. “Alguns se lembram que quem se recusou a sair da margem do lago foi morto pelo alagamento, pois eles consideram a Sete Quedas como um legado de Nhanderu [deus] e que, portanto, eles teriam a responsabilidade de cuidar desse espaço. Mas a ação do Estado de construir a Itaipu aconteceu, na concepção deles, porque eles não conseguiram cuidar. Então preferiram a morte do que viver com essa culpa”.

A responsabilidade pela floresta é definida pelo cacique da Tekoha Y’Hovy, Ilson Soares, como parte do corpo dos indígenas: “A natureza, pra nós, representa muito. Representa a nossa vida e o nosso ser. A terra representa a nossa carne. As árvores representam os nossos ossos. Os rios representam o nosso sangue. Tudo isso que defendemos hoje é o que nossos antepassados lutaram e perderam as vidas para defender. Onde nós vivemos hoje é tudo o que sobrou. Se hoje tudo isso foi transformado em cidade, em asfalto, é porque não tivemos força pra ter defendido antes”.

Segundo Paulina Martines, vice-cacique da aldeia Tekoha Y’Hovy, era às margens das Sete Quedas – maior cachoeira do mundo em volume de água até ficar submersa em decorrência do alagamento causado pela usina – que os indígenas enterravam seus mortos. Em foz do Iguaçu um importante cemitério Guarani foi completamente inundado. “Nesses dois lugares os Guarani concentravam as urnas onde tinham os corpos, porque, estando próximo ao Yvy-marãei [Terra sem Males, em português], a alma da pessoa descansaria em paz”, conta Paulina. A Terra sem Males é um mito Guarani sobre um local sagrado, a ser buscado em vida, livre de dor e sofrimento. “A nossa luta é mais espiritual do que física, porque a gente quer estar perto do Yvy-marã ei que é a Sete Quedas. A gente sabe que a Sete Quedas não deixou de existir. Está debaixo da água, mas está viva, sempre nos ouvindo. Por isso que a gente luta pela terra em Guaíra, para que a gente saiba que está próximo do lugar sagrado”, explica.

As populações das aldeias atualmente ocupadas em Guaíra e Terra Roxa foram levantadas em 2013 pelo MPF. Os demais dados das aldeias atuais são do Instituto Socioambiental e de Itaipu. Os levantamentos referentes às aldeias atualmente desocupadas de Guaíra, Terra Roxa, Altônia e Ilha Grande são do Centro de Trabalho Indigenista. As informações das demais aldeias atualmente desocupadas foram obtidas por Maria Lucia Brant de Carvalho.

Cacique Ilson Soares, na Tekoha Y’Hovy. Foto: Agência Pública/Greenpeace/Isabel Harari

As retomadas

Hoje, a proximidade com o complexo de Sete Quedas e a tradicionalidade da ocupação guarani são os critérios para a reivindicação das terras na região de Guaíra e Terra Roxa.

Entre 2009 e 2011, os Avá-Guarani e os Guarani Mbya passaram a reivindicar outras terras dos municípios, apontadas pelos anciãos como ocupações tradicionais – e a ocupar os territórios perdidos no processo de esbulho e alagamento. Ao todo, são treze aldeias ocupadas hoje em dia.

Com 55 anos de idade, o cacique Ismael Rodrigues viveu parte desta história e desabafa: “Pra acabar essa briga tem que juntar todos os índios, cercar e metralhar, matar todos os índios pra acabar a dor de cabeça do branco, do fazendeiro e de Itaipu também! Enquanto nós estamos vivos, vamos seguir em luta. Se eu morrer, tem o filho que vai continuar. A luta não vai acabar nunca”.

Como solução da situação fundiária, aos indígenas foi proposta, por diversas vezes, sua realocação em outras terras. Ilson Soares, cacique da Tekoha Y’Hovy, é terminantemente contra. “Quando a gente fala que quer de volta aquilo que foi nosso, o branco costuma dizer ‘Ah, mas eles estão querendo o Brasil de volta’. Não que a gente queira o Brasil de volta, mas queremos aquilo que temos a memória de que aquilo era nossa tekoha. É onde a memória dos nossos antepassados diz que aquilo era uma aldeia. Muitas vezes a gente não tem, assim, uma localização exata de onde era tal tekoha porque foi desmatado, porque o rio alagou… Mas o que a gente entende é que a terra onde nós estamos, é porque nós buscamos a nossa Terra sem Males, a nossa origem, a nossa espiritualidade, a proteção de nossos ancestrais”, explica.

As “retomadas” trouxeram como consequência o recrudescimento da violência contra os indíos da região, acusados de não serem originários daquela terra, mas “estrangeiros” que vieram do Paraguai ou do Mato Grosso do Sul. Em resposta, o historiador Clóvis Brighenti explica que as fronteiras nacionais são uma criação muito posterior à ocupação dos Guarani daquele território. “Como essa população é estrangeira se eles hoje ocupam o mesmo local que estavam antes?”.

Em levantamento feito em 2010 pelo Centro de Trabalho Indigenista foram contabilizadas 290 aldeias Guarani Mbya e Avá-Guarani: cinco no Espírito Santo, 56 em Santa Catarina, 87 no Rio Grande do Sul, 69 no Paraná, 61 em São Paulo, dez no Rio de Janeiro e 60 aldeias Kaiowa e Guarani no Mato Grosso do Sul. No Paraguai, são cerca de 200 assentamentos e na Argentina são quase 150.

Os Guarani são o povo indígena mais numeroso no Brasil – eram 58 mil pessoas em 2012, segundo dados do Ministério da Saúde tabulados pelo Instituto Socioambiental. Ainda assim, possuem poucas terras homologadas.

De acordo com Diogo Oliveira, antropólogo da Funai, os Guarani têm hoje 49 terras indígenas no país classificadas como tradicionalmente ocupadas. Outras 20 são classificadas como reservas ou terras dominiais. “Mas as condições são diferentes entre cada terra indígena. Muitas foram criadas antes da Constituição de 1988 e precisam ser revistas. Há áreas homologadas para outros povos que são ocupadas também pelos Guarani e, também, terras Guarani que foram dadas a outros povos”, explica. O pesquisador está atualmente analisando os tamanhos das terras dos Guarani e ressalva: “Algumas são muito pequenas e nem deveriam contar”. Ele exemplifica lembrando da Terra Indígena Jaraguá, que é a menor do país, com 1,7 hectare, e conta com cerca de 500 indígenas Avá-Guarani e Guarani Mbya na zona norte da capital paulista.

Em 2012, o Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação contra a União e a Funai exigindo a apresentação de soluções para a alocação dos indígenas de uma das aldeias de Guaíra, em processo por reintegração de posse. Já em maio de 2013, a então ministra da Casa Civil e ex-diretora financeira de Itaipu, Gleisi Hoffmann, pediu a suspensão das demarcações no Paraná. A medida ocorreria menos de dois meses depois do anúncio da candidatura de Gleisi ao governo daquele estado e em meio ao acirramento das relações do Planalto com ruralistas em torno das demarcações de terras indígenas. Com a suspensão, o MPF solicitou a composição de um grupo de trabalho da Funai para avaliar a possibilidade de demarcação de terras para os indígenas.

A Justiça deu, como prazo, o dia 3 de fevereiro deste ano para o GT apresentar suas conclusões. O relatório foi entregue, mas ainda não foi determinado o tamanho da área. Camila Salles, geógrafa que faz parte do grupo, explica que o assunto “não foi acordado ainda” com os indígenas: “Eles propuseram uma área que está sendo analisada pela Funai”. Quando houver um acordo, Camila diz que os caciques de todas as aldeias devem assinar um Termo de Anuência Prévia declarando estar de acordo com os limites que serão propostos. Enquanto isso, o órgão e o MPF aguardam o parecer da juíza Ana Lídia Silva Mello para dar andamento ao processo.

De sua parte, os proprietários de terra defendem a aplicação do marco temporal de 1988. Querem que a Justiça considere que, para uma terra ser demarcada, precisa ter sido ocupada por indígenas na época da promulgação da Constituição Federal. A tese foi discutida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) durante a demarcação de Raposa Serra do Sol, conforme explica Bruno Morais, assessor jurídico da Comissão Guarani Yvyrupa, organização política de representação e articulação dos Guarani nas regiões sul e sudeste do país: “Na ocasião, os ministros do STF concluíram que um marco temporal é necessário, salvo nos casos em que os índios sofreram esbulho”, critica.

Oco’y e Diamante d’Oeste

As três reservas guarani reconhecidas pelo governo recebem apoio técnico e financeiro da Itaipu, conforme seu site. Nelas, vivem atualmente 273 famílias, ou 1300 pessoas. A partir de 2003, com a posse da nova diretoria sob o governo Lula, a empresa passou a adotar uma série de medidas de melhoria da infraestrutura, apoio à agricultura familiar e criação de animais, além do envio de cestas básicas – atribuição que até então era da Funai. A mudança é comemorada por Nelton Friedrich, diretor de coordenação da empresa: “Tem cabimento encontrar, em 2003, 35 crianças subnutridas?”, diz, referindo-se ao quadro encontrado no Oco’y ao assumir o cargo. O diretor aponta o sucateamento da Funai como resultante desta situação: “Nos anos 90, o Fusca da Funai ia na frente do carro da Itaipu porque não tinha pneu para trocar e às vezes tinha problema até de combustível”.

No último relatório anual do programa de Sustentabilidade de Segmentos Vulneráveis de Itaipu, a empresa diz ter repassado, em 2014, 1440 cestas básicas às famílias do Oco’y, além de doações vindas através de parcerias com outras entidades ou órgãos da administração pública.

Entre os alimentos cultivados na aldeia, 10,5 mil quilos de mandioca foram comercializados. A venda de artesanatos e apresentações culturais também fazem parte do que Itaipu considera ser “o resgate de sua cultura e a integração entre povos indígenas e não indígenas”. Programas semelhantes também são implantados nas duas reservas de Diamante d’Oeste.

“A Itaipu considera que tal reassentamento não caracterizou esbulho. A nova área de terras escolhida pela comunidade proporcionou melhores condições de vida (habitação, saúde, educação, alimentação, entre outros)”, explica a empresa em resposta à Pública.

A atual administração da usina de Itaipu considera o Estado brasileiro o responsável pela expulsão dos indígenas. “Os índios já tinham sido expulsos antes [do levantamento de terras que seriam alagadas pela hidrelétrica]. A injustiça já tinha sido praticada em toda a região que compõe o território Guarani”, diz o diretor-geral brasileiro de Itaipu Jorge Miguel Samek. “Eu não sou hipócrita de achar que o que fizemos pagou a conta [pela expulsão dos Guarani]. A sociedade brasileira tem uma dívida impagável aí. Cada um tem que se esforçar para fazer a sua parte e eu me esforço muito para que Itaipu faça a sua parte”.

A antropóloga Maria Lúcia Brandt Carvalho afirma que, no período em que estudou os indígenas da região, as reservas de Diamante d’Oeste sofriam um controle populacional por parte da hidrelétrica – a denúncia está citada em sua tesa de doutorado “Das terras dos índios a índios sem terras – O Estado e os Guarani do Oco’y: violência, silêncio e luta”, da Universidade de São Paulo. “Itaipu só deixa entrar cinco famílias por ano e impede casamentos com os Guarani que estão do lado do Paraguai”, diz ela. A empresa nega: “A Itaipu não adota, ou adotou, qualquer medida de controle populacional nas áreas ocupadas pela comunidade Guarani. Pelo contrário. Graças à efetividade das ações de combate à desnutrição e à mortalidade infantil e pela melhoria das condições de saúde e qualidade de vida, as famílias atendidas nas três comunidades hoje são maiores. A Itaipu também respeita o processo migratório que caracteriza o modo de vida guarani. O triênio 2010-2012, por exemplo, foi marcado pela vinda de novas famílias nas três reservas indígenas. Na comunidade Itamarã, de 22 famílias, em 2010, passou-se para 43 em 2012, resultando num aumento de 96% do contingente populacional; na comunidade Añetete, de 47 famílias passou-se para 73 (aumento de 56%); e no Ocoy, de 137 famílias, em 2010, passou-se a 160 em 2012 (aumento de 18%). Ao todo, são 273 famílias e, aproximadamente, 1.300 pessoas na atualidade”.

Camila Salles, do GT de delimitação de terra, acusa Itaipu de intervir fortemente na organização política dos índios do Oco’y. “Eles mandam dentro da terra indígena”, diz. Por diversas vezes, relata, funcionários da empresa impediram que os indígenas falassem em guarani durante reuniões com a empresa. Ela se lembra de ter ido, certa vez, a uma das reservas fazer uma reunião com os indígenas: “Dentro da reserva tem um prédio da Itaipu, com cozinha. Como era uma reunião política dos índios, uma funcionária da empresa disse que nós não poderíamos usar o prédio deles”, diz.

Diogo Oliveira avalia que “os projetos que Itaipu fez nos últimos doze anos deram uma situação mais digna, mas não resolveram os problemas”. Para ele, o erro da solução posta pela usina é que “não é uma coisa feita a partir da compensação pelos impactos ambientais que Itaipu causou. É a partir da lógica da responsabilidade ambiental da empresa. Isso acaba deixando os índios um pouco reféns desta situação: o dia que a empresa não quiser mais cumprir com esse pacote de responsabilidade social…”.

“Eles [Itaipu] falam que não precisa mais chorar, né. Que já resolveram tudo. Quando entregou aquela terra em Diamante D’Oeste falou que agora já não tem mais pra chorar, que já resolveram o problema. Resolveram nada”, desabafa Pedro Alves, que hoje vive na Tekoha Y’Hovy. O xeramõi Brígido, da Tekoha Miri, faz coro e cobra a empresa: “e agora a Itaipu não vê a gente. Pode ser que eles tenham dado aldeias, mas por aqui [Guaíra e Terra Roxa] não. Tem muita criança, é por eles que a gente luta pela terra. Agora eles deixam a gente num chiqueiro, em espaços pequenos, não tem como plantar. A gente sabe como tá sofrendo depois que a Itaipu fechou o rio Paraná. É triste essas historias quando a gente pensa a gente só entristece… A gente precisa de outras terras no lugar daquelas que já foram perdidas”.

Procurada pela reportagem da Pública, a Usina de Itaipu afirmou que não conhecia o relatório do CTI, mas que “em respeito à CNV e à comunidade indígena, o analisará com a devida atenção e zelo” (veja a resposta completa da empresa).

Famílias reclamam de falta de espaço e deixam reserva mantida por Itaipu

Apesar de considerar boa a estrutura da reserva do Oco’y, delimitada às margens do lago de Itaipu em 1982 pela Funai, o guarani Natalino de Almeida Peres, de 36 anos, deixou o aldeia para ocupar, no último dia 3 de fevereiro, outra terra a apenas dez quilômetros do local: “Não pode falar mal de onde nasceu e cresceu. Mas não tem mais como viver no Oco’y”.

A reportagem da Pública já estava nas etapas finais quando a família de Natalino e outras 36 decidiram abrir mais essa ocupação no cenário já conflituoso da região. Segundo ele, não há espaço suficiente para todos plantarem. A retomada de outras áreas ocupadas tradicionalmente pelos guarani – antes do processo de expulsão que culminou com  a hidrelétrica de Itaipu – seria uma forma de preservação de seus costumes. “Estamos procurando espaço para sobreviver. A cultura do índio tem que ter plantio de mandioca, milho… E lá [no Oco’y] não tem espaço. A gente perde a cultura”, diz Natalino.

De acordo com Itaipu, de fato, dos 251 hectares onde está a Terra Indígena Avá-Guarani de Oco’y, somente 48 estão disponíveis para o plantio das 165 famílias que vivem lá. “Evidentemente, pelo fato da aldeia estar inserida dentro da faixa de proteção do lago de Itaipu, a área total do Oco’y destinada ao plantio é reduzida, se comparada às demais aldeias do Itamarã e do Añetete”, declarou a empresa, que afirma ainda que “a comunidade compensa essa extensão de terra com técnicas agropecuárias sustentáveis e culturalmente adaptáveis às suas necessidades, promovendo a adoção de plantios adaptados ao terreno, à densidade populacional da área e ao valor nutricional dos alimentos”.

Natalino é hoje a liderança da Tekoha Atymiri, como foi batizada a nova aldeia que fica no município de Itaipulândia, vizinho de São Miguel do Iguaçu. O cacique lembra que “várias vezes, os índios já pediram a ampliação das terras, mas nunca deram ouvido pra gente”.

Mas, diz ele, mesmo se houvesse ampliação do Oco’y, viver no local seria difícil pelo fato de as terras ainda arborizadas serem parte da faixa de proteção permanente do lago de Itaipu: “Não dá pra plantar direito”.

A aldeia está em área de mata preservada de um terreno do Governo do Estado cedido, desde 2008, ao Instituto Agronômico do Paraná (Iapar) – uma repartição pública estadual. No restante do local, o Iapar produz soja. Na mata do terreno, Natalino diz que as 37 famílias dividem, em barracos de lona, um terreno de 43 alqueires (o equivalente a 100 hectares): “é pequeno, mas dá pra pegar o fôlego pra gente lutar. A gente quer qualidade de vida”. O número é contestado pela hidrelétrica, que diz terem saído do Oco’y somente 15 famílias “por conta de diferenças políticas entre o grupo migrante e a liderança da comunidade”.

Natalino nega. “Itaipu está envergonhada de ter saído tanta gente porque eles têm a responsabilidade pela aldeia. Não existe disputa nenhuma e nem tem porque ter”.

Ao lado do terreno onde a Tekoha Atymiri foi estabelecida, uma base náutica em área da mata ciliar do lago de Itaipu é ocupada desde maio de 2014 por outras 14 famílias guarani. Elas saíram da Tekoha Vy’a Renda, em Santa Helena, e fundaram ali a Tekoha Itacorá.

“Estamos tentando uma audiência pública com Itaipu, Iapar e Copel [Companhia Paranaense de Energia] para fazer compromisso e melhorar as condições, [além de] instalar energia aqui”, afirma Eládio Vera, um dos indígenas que vivem na Tekoha Itacorá.

Parte da ocupação da base náutica também alcança o terreno do Iapar, de acordo com o diretor de administração e finanças do instituto, Altair Dorigo. A repartição pública havia pedido, ainda em maio de 2014, através da Procuradoria Geral do Estado do Paraná, a reintegração de posse do terreno. Em fevereiro, depois da nova ocupação, o governo pediu a suspensão do pedido e solicitou que a Funai busque uma terra aos indígenas, segundo a assessoria de comunicação do governo estadual. A Funai afirmou ainda já ter solicitado Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, “medidas de saneamento básico e atendimento de saúde”. “A próxima medida será o envio de cestas básicas da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab)”, afirmou em nota.

Entre a bala e o decreto

“Cacique das minhas bolas” escreve um usuário do Facebook sobre Ilson Soares, o Sabiá, cacique da Tekoha Y’Hovy, aldeia próxima à cidade de Guaíra, no oeste paranaense. O comentário refere-se a uma foto publicada na página da Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip), associação de proprietários rurais da região, que retrata Ilson em uma manifestação pela demarcação das terras Guarani em novembro de 2014. Sobre outra imagem, de uma indígena Guarani fumando o petyngua, tradicional cachimbo de madeira, um usuário comenta “paraguaios vagabundos”; ao ver a mulher vestida outro usuário questiona “O que essa roupa estampada tem de índia?”.

É a materialização das tensões que imperam nos municípios de Guaíra e Terra Roxa, no oeste paranaense, desde 2009, quando a ocupação de terras consideradas tradicionais pelos Guarani levou a pequena população local, que, somada, alcança os 47 mil habitantes, a responder com violência e preconceito.

Com 53% de toda a terra ocupada por lavouras temporárias – sobretudo soja e milho, segundo o Censo Agropecuário de 2006 do IBGE –, o pouco da Mata Atlântica ainda preservada na região é disputada entre os fazendeiros e quase 1800 índios que lutam pela demarcação de suas terras após um longo processo de violações aos seus direitos que incluiu o esbulho de terras, remoções forçadas e a consequente desagregação social. Apenas na última década, eles voltaram a se organizar.

Desde pelo menos 2004 os Ava-Guarani e os Guarani Mbya passaram a “retomar” áreas que os anciãos indicam terem sido habitadas tradicionalmente antes das expulsões sistemáticas que culminaram com a construção de Itaipu. Na época, muitos fugiram para o Mato Grosso do Sul, São Paulo, outras regiões do Paraná e o Paraguai – a partir daí são pejorativamente taxados de “estrangeiros” ou “paraguaios”.

“Antigamente eles matavam a tiros, a bala. Hoje eles matam com decretos e portarias”, diz Ilson, cuja aldeia é uma das treze retomadas a partir de 2009, a menos de três quilômetros do centro de Guaíra. “Nestes últimos anos a violência tem aumentado. A discriminação aumentou. Até agora existe um clima de insegurança em Guaíra. A gente percebe que as pessoas têm muito mais preconceito que antigamente”, completa.

Em uma carta de repúdio à violência, as lideranças da Tekoha Y’Hovy descrevem haver “um discurso de ódio, discriminação e racismo contra o nosso povo Avá-Guarani que tem sido impactante para os jovens, crianças e também adultos, nos trazendo insegurança, fazendo com que nosso povo fique acuado sem saída e vendo todos os dias que as pessoas nos olham com repúdio, como se fossemos pragas, como se não fossemos seres humanos”.

Cercada por lotes de casas à venda e plantações de milho e soja das várias propriedades de médio porte do município, a Y’Hovy abriga 30 famílias que cultivam feijão, mandioca e milho. Diariamente, a vice-cacique Paulina Martines guia as atividades na opy, a casa de reza. Já na escola improvisada Paulina ensina as crianças e adolescentes o guarani: “Praticar a nossa religião e frequentar a casa de reza todos os dias vai fortalecer ainda mais o nosso ser, a nossa cultura, e mais do que isso, a gente vai estar seguindo o ensinamento que Nhanderu [deus guarani] deixou para o povo indígena”.

Paulina mantém a aliança entre a luta espiritual e a defesa da terra. Já tarde da noite, antes dos cantos e rezas naopy, pede que cada criança e adolescente vá ao centro da casa e, em guarani, discorra sobre as perspectivas do processo de demarcação das terras indígenas em 2015. Os xondaros e xondarias – guerreiros e guerreiras – em idades de cinco a dezesseis anos, fumam o cachimbo petyngua e falam, alguns tímidos e outros mais animados.

Violência Brutal

“Cacique das minhas bolas” escreve um usuário do Facebook sobre Ilson Soares, o Sabiá, cacique da Tekoha Y’Hovy, aldeia próxima à cidade de Guaíra, no oeste paranaense. O comentário refere-se a uma foto publicada na página da Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip), associação de proprietários rurais da região, que retrata Ilson em uma manifestação pela demarcação das terras Guarani em novembro de 2014. Sobre outra imagem, de uma indígena Guarani fumando o petyngua, tradicional cachimbo de madeira, um usuário comenta “paraguaios vagabundos”; ao ver a mulher vestida outro usuário questiona “O que essa roupa estampada tem de índia?”.

É a materialização das tensões que imperam nos municípios de Guaíra e Terra Roxa, no oeste paranaense, desde 2009, quando a ocupação de terras consideradas tradicionais pelos Guarani levou a pequena população local, que, somada, alcança os 47 mil habitantes, a responder com violência e preconceito.

Com 53% de toda a terra ocupada por lavouras temporárias – sobretudo soja e milho, segundo o Censo Agropecuário de 2006 do IBGE –, o pouco da Mata Atlântica ainda preservada na região é disputada entre os fazendeiros e quase 1800 índios que lutam pela demarcação de suas terras após um longo processo de violações aos seus direitos que incluiu o esbulho de terras, remoções forçadas e a consequente desagregação social. Apenas na última década, eles voltaram a se organizar.

Desde pelo menos 2004 os Ava-Guarani e os Guarani Mbya passaram a “retomar” áreas que os anciãos indicam terem sido habitadas tradicionalmente antes das expulsões sistemáticas que culminaram com a construção de Itaipu. Na época, muitos fugiram para o Mato Grosso do Sul, São Paulo, outras regiões do Paraná e o Paraguai – a partir daí são pejorativamente taxados de “estrangeiros” ou “paraguaios”.

“Antigamente eles matavam a tiros, a bala. Hoje eles matam com decretos e portarias”, diz Ilson, cuja aldeia é uma das treze retomadas a partir de 2009, a menos de três quilômetros do centro de Guaíra. “Nestes últimos anos a violência tem aumentado. A discriminação aumentou. Até agora existe um clima de insegurança em Guaíra. A gente percebe que as pessoas têm muito mais preconceito que antigamente”, completa.

Em uma carta de repúdio à violência, as lideranças da Tekoha Y’Hovy descrevem haver “um discurso de ódio, discriminação e racismo contra o nosso povo Avá-Guarani que tem sido impactante para os jovens, crianças e também adultos, nos trazendo insegurança, fazendo com que nosso povo fique acuado sem saída e vendo todos os dias que as pessoas nos olham com repúdio, como se fossemos pragas, como se não fossemos seres humanos”.

Cercada por lotes de casas à venda e plantações de milho e soja das várias propriedades de médio porte do município, a Y’Hovy abriga 30 famílias que cultivam feijão, mandioca e milho. Diariamente, a vice-cacique Paulina Martines guia as atividades na opy, a casa de reza. Já na escola improvisada Paulina ensina as crianças e adolescentes o guarani: “Praticar a nossa religião e frequentar a casa de reza todos os dias vai fortalecer ainda mais o nosso ser, a nossa cultura, e mais do que isso, a gente vai estar seguindo o ensinamento que Nhanderu [deus guarani] deixou para o povo indígena”.

Paulina mantém a aliança entre a luta espiritual e a defesa da terra. Já tarde da noite, antes dos cantos e rezas naopy, pede que cada criança e adolescente vá ao centro da casa e, em guarani, discorra sobre as perspectivas do processo de demarcação das terras indígenas em 2015. Os xondaros e xondarias – guerreiros e guerreiras – em idades de cinco a dezesseis anos, fumam o cachimbo petyngua e falam, alguns tímidos e outros mais animados.

Violência Brutal

Mas, do lado de fora da pequena aldeia, as mesmas crianças costumam enfrentar um ambiente hostil. Nas escolas, elas sofrem com xingamentos dos jovens não indígenas. Muitas são chamadas de “invasoras” pelos colegas. “É uma xenofobia ao contrário”, arremata Ferdinando Nesso, coordenador técnico local da Funai em Guaíra. “Os índios vieram para cá muito antes e agora são chamados de ‘invasores’”.

O cacique Ilson conta que, hoje, quando um índio entra em mercado é sempre observado por seguranças. “Não sei se é por medo que o indígena vá furtar alguma coisa ou porque talvez o indígena possa praticar algum tipo de violência, ou talvez contaminar as mercadorias”, ironiza. Na cidade, diversos indígenas relataram ainda terem que pagar um valor maior que o cobrado aos não-índios pelo mesmo produto. “Esses dias, precisei comprar uma peça para minha moto que havia quebrado. O homem que estava na minha frente na fila pagou 35 reais, mas o dono da loja queria me cobrar 72. Eu não pago!”, indigna-se Inácio Martins, cacique da aldeia de Marangatu.

Ilson também relatou à Pública diversos episódios de ameaças e tentativas de intimidação: “Já pararam uma senhora guarani que estava a caminho na aldeia pra avisar que a gente está em perigo. O mesmo foi feito com um grupo de crianças que voltavam da escola”. Ele conta que já foi perseguido por um carro quando voltava de bicicleta para a aldeia: “Ele me acompanhou em baixa velocidade por alguns metros. Quando a gente entrou na rotatória, consegui desviar”.

O preconceito já levou a casos de violência física. Em agosto de 2013, uma adolescente indígena, estagiária da Funai, foi sequestrada à luz do dia no caminho para o trabalho. Agredida e abusada sexualmente dentro de um carro com vidros escuros, ela foi liberada três horas depois no meio de um matagal com um recado: “fala pra Funai que a gente vai acabar com eles”. Ela não conseguiu identificar os agressores e ninguém chegou a ser punido.

Também em 2013, Bernardino D’avalo Goularte, um jovem guarani, foi assassinado a tiros próximo à aldeia Tekoha Porã, que fica em uma área urbanizada de Guaíra. Na ocasião, a polícia disse se tratar de uma briga de bar, mas indígenas alegam que os tiros foram disparados a esmo. Além dele, três crianças foram atingidas de raspão.

“Houve várias tentativas de atropelamentos. Alguns até foram atropelados e encaminhados pro hospital, mas não denunciavam o ocorrido” diz um trecho de outra carta dos Guarani. Segundo Ilson, uma senhora indígena foi atropelada em frente a rodoviária por um carro a 120 quilômetros por hora; o condutor fugiu a pé deixando o veículo em cima do corpo.

“O que Guaíra vem fazendo com a população guarani é uma das coisas mais absurdas e mais deprimentes que uma sociedade pode manifestar. Isso é um crime contra essas comunidades”, avalia o historiador Clovis Brighenti.

Para o cacique Ilson, a insegurança fundiária é o principal motivo para a situação de violência vivida em Guaíra e Terra Roxa, e a demarcação das terras é a única solução para apaziguar os conflitos.

“Lá na nossa região vai dar conflito, vai dar morte”

Quando os Guarani começaram o processo de retomada em 2009, os produtores das terras ocupadas entraram com pedidos de reintegração de posse. Os processos tramitam na Justiça, mas até agora, com os recursos impetrados pelo Ministério Público Federal (MPF), as dez aldeias mais recentes puderam permanecer.

A partir de 2012 os produtores rurais da região passaram a organizar uma forte campanha contra as ocupações indígenas: “O Brasil que produz merece respeito” é o slogan estampado em adesivos colados nos carros e folhetos distribuídos pela cidade. No ano seguinte, criaram a Organização Nacional de Garantia ao Direito de Propriedade (Ongdip), que tem organizado debates e manifestações, além de mobilizar políticos da região contra as demandas dos Guarani.

No mesmo ano, prefeitos e vice-prefeitos de onze municípios da região realizaram um encontro no município de Marechal Cândido Rondon com parlamentares estaduais e do Congresso Nacional, além de representações patronais, para elaborar uma carta a esferas do Poder Executivo e Legislativo. Com o auditório lotado de agricultores da região, a carta demonstrava “preocupação com a possibilidade da demarcação de reserva indígena no oeste do Paraná” e reforçava a visão de que os índios seriam “estrangeiros” na terra.

“É importante lembrar que esta região foi libertada da exploração estrangeira justamente pela ocupação dos colonos a partir da década de 40, após adquirirem terras que foram distribuídas pelo governo às colonizadoras”, diz o documento. “Chama a atenção o fato de que até bem pouco tempo, praticamente não existiam indígenas nesta região. Além disso, é público e notório que índios estão migrando de outras regiões do país e até do Paraguai para iniciar este suposto movimento visando a demarcação de uma área indígena em terras produtivas do extremo Oeste do Paraná”, prossegue.

O deputado federal Dilceu Sperafico (PP-PR), membro da Frente Parlamentar da Agropecuária, a bancada ruralista, é um dos signatários que levou a carta para leitura no plenário da Câmara dos Deputados. À Pública, o parlamentar disse que a Funai “fica fomentando invasões de áreas e tentando demarcar a todo custo áreas que já são tituladas há cinquenta anos na nossa região”. Na sua visão “a finalidade da Funai não é só demarcar áreas indígenas. É dar bem-estar, acompanhar e inserir, na medida do possível, o índio à sociedade”.

“Não somos em hipótese alguma contra os indígenas”, afirma Dilceu. Ele também defende que as ocupações recentes de terras são feitas por indígenas que “estão vindo do Paraguai, da Bolívia, do Mato Grosso, de todo lugar, pra lá” e por isso “a solução seria demarcar onde não haja conflitos e tenha áreas disponíveis. Ou, se [a Funai] quer determinada área que seja uma propriedade, tem que indenizar, se o proprietário tiver interesse”.

O deputado ainda argumenta que, além da Funai, ONGs internacionais “têm interesses de todo lado” na questão: “Tem gente que vive disso, é o ganha pão deles ficar trabalhando para uma ONG”. Se não houver uma solução, ele vaticina: “Lá na nossa região vai dar conflito, vai dar morte”.

A reportagem tentou, ao longo de uma semana, ouvir representantes da Ongdip, mas o presidente e o vice-presidente estavam viajando e não retornaram os contatos.

Qual o valor da terra?

Clovis Brighenti, que atua com populações indígenas desde 1988, resume o impasse: “Para o agronegócio, a terra é uma mercadoria. A terra é um dos bens mais valiosos e, hoje, a terra tem um valor econômico expressivo. Mas a população indígena – os Guarani, especialmente – ocupam o espaço de outra maneira. Eles querem a terra pra poder viver sobre ela. É um espaço sagrado. Para o mercado, não. Então o mercado jamais vai aceitar que a terra seja – na visão dele – ociosa”.

Para o historiador, os indígenas são vistos como “estorvos” pela população. “É uma sociedade com uma única língua, com um único pensamento, com um único modo de produção, e quem não se enquadra está fora. Os militares no Brasil tiveram a proeza de fazer essa castração total, de impedir qualquer diferença, diferença biológica, diferença cultural”.

Apesar de terem direito constitucional a uma educação escolar diferenciada, na região apenas a aldeia de Marangatu, existente desde 2004 em uma área de preservação do Lago de Itaipu, tem uma escola em condições adequadas. Com áreas em disputa judicial, o poder público tem sido pressionado pelo MPF a garantir condições mínimas de sobrevivência aos indígenas. Em junho de 2013, uma série de procedimentos instaurados pelo órgão exigiu a instalação de água e luz nas aldeias. Até então, das treze ocupações só uma tinha fornecimento adequado de água. Nenhuma delas contava com luz elétrica para todos – seis ficavam completamente no escuro durante a noite.

Os procedimentos do MPF também resultaram em investigações por conta de publicações recentes na internet contra os indígenas. Há um inquérito policial e cinco ações penais movidas na Justiça contra pessoas acusadas de postar conteúdo racista em redes sociais e blogs. As postagens foram removidas por conta do processo, mas ainda assim conteúdo de cunho racista e violento pode ser encontrado na página da Ongdip. Além disso, a polícia ainda investiga denúncia contra uma cooperativa da região, de demissão em massa de indígenas motivada por discriminação social. O inquérito corre em sigilo.

Antropólogos hostilizados

Além dos indígenas, funcionários e especialistas que atuam com os Guarani sofrem retaliações dos cidadãos de Guaíra, onde estão dez das treze aldeias ainda não demarcadas. Diogo Oliveira, antropólogo da Funai que trabalhou na região entre 2012 e 2014, conta que, no período, o clima era de “hostilidade e tensão”: “Eu era hostilizado nas ruas e sempre havia uma insegurança em permanecer na área”. Ele lembra que, certa vez, quando estava saindo de um restaurante, um carro que não conhecia se aproximou e seu motorista abaixou o vidro e disse: “isso vai acabar”. Com a atuação do MPF, que estabeleceu uma unidade em Guaíra em 2012, a situação ficou mais tranquila: “Hoje os indígenas conseguiram um pouco mais de reconhecimento, mas situações de preconceito e de violência permanecem”, diz Diogo.

Camila Salles, geógrafa integrante do grupo de trabalho designado pela Funai para avaliar a presença indígena na região, afirmou à reportagem que um comerciante local chegou a ser constrangido a deixar de atendê-la. Camila comprava com frequência alimentos em quantidade para os indígenas, e já era conhecida na cidade pela sua atuação. Depois de algum tempo, ela conta, o dono do comércio se negou a vender a ela. Disse ter recebido a ligação de um funcionário de uma agência bancária da cidade questionando “de que lado” ele estava, e alertando que ele não devia mais comercializar com a antropóloga. Pesquisadores do Centro de Trabalho Indigenista (CTI) ouvidos pela Pública também contaram que, depois de reconhecidos, uma agência local de aluguel de carros deixou de atendê-los. Hoje, é preciso alugar carros em outro município para conseguir se deslocar entre as aldeias.

A vice-cacique Paulina atenta para o fato de Guaíra ser uma cidade essencialmente indígena, mas que assim trata os Guarani como se “não fossem seres humanos”: “Guaíra era a maior concentração das famílias guarani naquele tempo. A cidade hoje, o centro da cidade, está exatamente em cima da maior aldeia que tinha”. Ela reconta o que lembram os anciãos: o nome da cidade advém do nome de um dos caciques que ali vivia, Guavirá.

E faz questão de manter viva a história do nome escolhido para o complexo hidrelétrico de Itaipu. Trata-se de uma referência a duas palavras em guarani, ita e ipu, o que significa “pedra que faz barulho” ou “pedra que tem som”. “Tiveram a coragem de usar a palavra guarani pra ser o nome da represa deles. Isso eu acho uma violência enorme”.

Essa matéria é resultado do concurso de microbolsas para reportagens investigativas sobre Energia promovido pelo Greenpeace em parceria com a Agência Pública.

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