Acuados
Prisões em série, perseguição e conflitos acossam os quilombolas no norte do Espírito Santo. Nossa reportagem percorreu mais de mil quilômetros para conhecer um cenário onde a violência vem junto com o deserto de eucaliptos
No Sapê do Norte, uma região tomada por plantações de eucalipto no extremo norte do Espírito Santo, 32 comunidades quilombolas vivem sob forte clima de tensão. Nos últimos sete anos, dezenas de descendentes de escravizados africanos foram parar na cadeia sob a acusação de formação de quadrilha ou furto de madeira.
O episódio mais emblemático ocorreu em novembro de 2009: foram presas pela Polícia Militar 39 pessoas na comunidade São Domingos, uma das maiores da região, onde vivem 150 famílias, entre elas mulheres e idosos, e até um morador cego.
A maior parte das prisões ocorre em uma área administrada pela empresa Fibria, líder mundial na produção de celulose branqueada de eucalipto, entre os municípios de Conceição da Barra e São Mateus – mas que é reivindicada pelas comunidades como seu território ancestral. Ao todo, mais de 100 mil hectares de eucalipto deixam as residências “ilhadas” em meio ao que os quilombolas chamam de “deserto verde”, por causa da seca causada pela monocultura.
O começo
A monocultura do eucalipto começou a avançar sobre o território do Sapê ainda na década de 1960, com o apoio do regime militar. A implantação do monocultivo inicialmente foi considerada uma política de Estado, servindo para a produção de madeira e carvão e, posteriormente, à celulose e ao papel.
Domingo Firmiano dos Santos, o Chapoca, uma liderança quilombola de 56 anos, afirma que antes de o eucalipto chegar as comunidades plantavam, colhiam e produziam farinha e outros alimentos em conjunto. “As terras não tinham divisão certa nem eram marcadas por cercas. As comunidades eram acostumadas a se unir para fazer tudo. A ausência dos títulos e essa forma de organização facilitaram a grilagem. Quem não vendia seu pedaço de terra a preço de banana era pressionado, ameaçado, sendo forçado a deixar o território.”
Depois de um longo processo de reivindicação e protestos, diversas comunidades quilombolas deram entrada em pedidos de demarcação de suas terras a partir de 2005, com base no direito garantido pela Constituição. Hoje, no estado, apenas três têm as terras reconhecidas: duas no sul capixaba (Retiro, em Santa Leopoldina, e São Pedro, em Ibiraçu) e uma na região de Sapê do Norte, chamada São Cristóvão. Nenhuma tem posse definitiva.
Sem lugar para plantar e com o eucalipto invadindo o quintal das casas, as 32 comunidades quilombolas do Sapê usam o corte de madeira e sua transformação em carvão como forma de resistência e retomada do território. A Justiça e a Fibria, entretanto, entendem essas ações como roubo e formação de quadrilha.
Geralmente os cortes são feitos em mutirão. Depois de retirarem a madeira e vendê-la, os quilombolas costumam plantar alimentos sobre a faixa de terra e declará-la como “retomada”. Em algumas plantações mais densas, onde isso é impossível, os quilombolas cortam árvores para conseguir uma forma de subsistência em meio ao mar de eucaliptos. “Não tem serviço nenhum aqui. Renda ninguém tem. O jeito é fazer o mutirão e cortar para sobreviver. Mas isso não é roubar. Nenhum quilombola se sente ladrão. Estamos numa terra que foi tomada da gente, que pertence ao nosso povo, mas foi tomada por meio de enganação e da força”, argumenta Creusa Mota, 61, liderança da comunidade Roda d’Água.
Dessa forma, os quilombolas travam uma verdadeira guerra com fazendeiros e com a Fibria, que alega prejuízos milionários pelo que considera um grande esquema de furto nas suas terras.
A reação, muitas vezes, é desproporcional. Em 2013, duas ações do Ministério Público Federal (MPF) levou a Justiça a reconhecer que a operação policial realizada em 2009 foi ilegal, sem mandado judicial para as prisões ou flagrante, e o estado do Espírito Santo foi condenado a pagar R$ 100 mil em danos morais coletivos para a comunidade São Domingos. Cada morador preso também teria direito a R$ 10 mil de indenização, mas o estado recorreu. Desde 2013, essas duas ações estão paradas no Tribunal Regional Federal da 2a Região (TRF2). Depois de três anos, finalmente, as ações devem ser julgadas no próximo dia 5 de outubro.
Em uma das ações, o MPF descreve que “a violência causada pela ação policial despropositada remete os membros da comunidade a uma situação de medo, de lembranças de acontecimentos ruins do passado, quando, privados dos legítimos direitos sobre a terra ocupada, viviam perseguidos, humilhados e com constante sensação de impotência”.
Nem todas as famílias resistem ao clima de tensão e medo. Ao longo dos anos, os moradores acabam deixando o Sapê para morar na periferia de cidades. Das 10 mil famílias que ali viviam na década de 1960, apenas 1.200 permanecem no local.
A reportagem da Pública fez duas viagens ao Sapê do Norte. Percorremos mais de mil quilômetros e encontramos um cenário onde a violência não poupa idosos, homens, mulheres ou crianças. Entramos num universo que também é composto de disputa por água, perseguição a lideranças comunitárias, trabalho insalubre em carvoarias clandestinas e danos à saúde de trabalhadores e crianças pelo uso indiscriminado de agrotóxico na monocultura. Ouvimos o que dizem os quilombolas e o que diz a empresa que é mais citada por eles, a Fibria, ex Aracruz Celulose. Acompanhe essa jornada.
Presos num mar de eucalipto
É começo de tarde em São Domingos, uma das comunidades mais populosas do Sapê, localizada às margens da BR-101, que liga o Espírito Santo ao Extremo Sul da Bahia. É também aqui que a articulação em defesa da demarcação das terras ocupadas por descendentes de quilombolas é mais forte. As prisões, por consequência, são mais frequentes.
Por ser sábado, boa parte dos moradores se encontra no campo de futebol, assistindo ao jogo do time local. A movimentação de famílias é intensa: numa mesma área estão localizados o campo de futebol, a igreja e o bar. Próximo dali, a não mais de 300 metros, Ledriando Manoel Maria, de 63 anos, e seu filho conseguem escutar apenas ao apito do juiz. Eles gostam de futebol, mas estão impedidos de sair de casa pois há quase dois anos cumprem prisão domiciliar nos fins de semana como pena por furto de eucalipto.
Ledriando alega que o produto de furto não passava de algumas pontas de galhos, o chamado facho, que viraria lenha no forno para fazer beiju de coco – um doce típico. “Nunca roubei nada de ninguém. Somos agricultores, não ladrões. Depois que a firma chegou, plantando eucalipto, as comunidades passaram a ter que se contentar com os restos. Restos de madeira, restos de água, restos de terra. Como se não bastasse, ainda são presas por tentar sobreviver”, desabafa.
Em São Domingos, metade das 150 famílias têm algum membro que responde a processo ou já foi preso acusado de crimes ligados à madeira, segundo a associação de moradores. As histórias de perseguição policial, violência e medo se repetem.
https://vimeo.com/185089089
“Aqui quem ainda não foi processado é só algumas mulheres ou as crianças que nasceram agora. Os mais novos todos já foram enquadrados como bandidos”, diz o morador Claudenir da Conceição, de 27 anos.
A mãe dele, Benedita da Conceição, de 61 anos, também já foi intimada várias vezes por suspeita de derrubar mata nativa para fazer carvão. Percorrendo a região onde a família mora, entretanto, a reportagem da Pública constata que as únicas árvores que existem nas redondezas são de eucalipto.
“Quem derrubou as matas nativas aqui foi a Aracruz Celulose. Nessa época (2012) intimaram quase todas as famílias da comunidade. O juiz quis colocar multa de três parcelas de R$ 203 para eu e minha irmã pagarmos. Eu falei com ele: ‘Pagar com quê, se eu não tenho condições? Não adianta colocar essa conta para cima de mim que eu não vou pagar”, argumenta.
O conflito no Sapê envolve, de um lado, os descendentes de africanos que fugiram para a região durante a escravidão e de outro a empresa empresa Fibria, líder mundial na produção de celulose branqueada de eucalipto. Formada a partir da fusão da Aracruz com a Votorantim Celulose e Papel, a empresa exporta celulose para mais de 40 países.
Repetidamente, os quilombolas contam à reportagem que os restos de eucalipto são a única forma de sobrevivência que lhes sobrou. Eles as queimam para fabricar carvão e vender a atravessadores que levam as cargas para o norte do Rio de Janeiro e Extremo Sul da Bahia.
A agente comunitária de saúde Eni Alacrino Maria lamenta que, devido às prisões frequentes, os quilombolas são vistos pela sociedade como criminosos. “Vira e mexe tem oficial de Justiça na porta da casa dos moradores levando intimação para assinar. Chegando no Fórum o problema é só esse, acusação de que somos bandidos formadores de quadrilha. O que eu sinto é que querem sempre ver a gente manchado na mídia, para que não tenhamos direito a nada, nem ao nosso território, e para que o governo federal ache que estamos errados e não tome conta da nossa causa”, desabafa a esposa de Ledriando.
No caso do seu marido, o suposto furto aconteceu em 2005, mas a decisão judicial só saiu no início de 2014, depois de quase 10 anos. Durante a semana, os dois podem sair para trabalhar. No sábado e no domingo, só podem deixar a casa com a bíblia debaixo do braço, para mostrar que estão indo a igreja.
O quilombola lembra que foi abordado pelos policiais logo depois de um vigilante da Fibria avisar que os tinha chamado. “Vigilantes e a polícia trabalham em parceria para prender quilombolas. Quando é a comunidade que aciona as viaturas, ninguém aparece para dar assistência. Aí eu pergunto, a polícia é para defender empresa ou as pessoas?”, questiona.
Além da condenação de dois anos de meio em prisão domiciliar, pai e filho tiveram que pagar três cestas básicas. Sem dinheiro, nem sequer conseguiram recorrer. “Ainda tem uma multa de R$ 800, mas não paguei porque não temos esse recurso”, explica Ledriando.
“Ali eu conheci o inferno”
Somente no último ano, a comunidade de São Domingos contabilizou 10 quilombolas presos e outra dezena de moradores processados. Os presidentes de comunidades e lideranças são os mais visados pela polícia, garantem.
Líder da comunidade de São Domingos, Altiane Blandino, o Pipi, ficou preso 21 dias no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Viana, cidade na Grande Vitória, em agosto do ano passado. “Fui apontado como líder de quadrilha e bandido perigoso, assim como já fizeram com muitas lideranças que estão na defesa do território. Tem mês que toda semana vão presos dois ou três negros. Fui colocado como líder de quadrilha quando, na verdade, só quero nosso território de volta. Aqui no Sapê não tem jeito, ou a gente corta a madeira ou a Fibria planta eucalipto até em cima da casa da gente”, defende-se.
Pipi e três de seus primos foram presos em casa, no dia 14 de agosto de 2015, sob acusação de furto de madeira e formação de quadrilha. Ele relata que, ao ser colocado no meio dos presos comuns, numa cela com 30 pessoas onde só cabiam seis, passou a maior humilhação de sua vida. “Para fazer o procedimento de ficar agachado com as mãos na cabeça foi uma tristeza. Ali me senti um bandido, sem ser. Dormimos 21 dias no chão duro. Na mesma torneira que cagava, bebia água e tomava banho. Ali eu conheci o inferno”.
Depois de 10 dias de preso, o líder quilombola de 46 anos achou que não fosse mais ser solto. “Bateu um desespero, chorava lá dentro. Aqui fora nossos familiares estavam pior do que a gente. A comunidade não conseguiu jogar futebol, nenhuma festinha, nada. Quando dava o domingo, faziam reuniões para combinar o que fazer para tirar a gente lá de dentro”, lembra.
Um primo seu, preso no mesmo dia, Antônio Marcos Blandino, de 38 anos, lembra que os policiais apareceram na sua casa por volta das 4 horas da madrugada. “Arrombaram a porta, colocaram minha esposa com as mãos na parede e reviraram tudo achando que eu tinha arma. Meus filhos choravam sem parar e eu não sabia porque estava sendo preso. Nunca roubei nada de ninguém, como que ia chefiar uma quadrilha? Fazia um ano e meio que eu trabalhava numa cooperativa da própria Fibria”, questiona.
Outro que ficou três semanas preso por suspeita de furtar madeira da Fibria foi Amilton dos Santos, de 37 anos. “Meu marido não é um criminoso não. Levaram ele preso e ele era o único que tinha trabalho aqui em casa. Me deixaram com filha recém-nascida para cuidar, a geladeira ficou sem comida”, lembra sua esposa, Rosilene de Jesus, de 33 anos.
Depois de vários protestos feitos pelas comunidades de São Domingos, Linharinho e Angelim – inclusive com fechamentos da BR 101, que corta o Espírito Santo – Altiane e seus primos foram soltos e agora respondem ao processo em liberdade. Algumas manifestações pela libertação do grupo reuniram mais de 500 pessoas; ao serem soltos, foram recebidos com uma festa que se estendeu até o raiar do dia.
Relatos de ameaças e perseguição
É difícil encontrar alguma liderança do Sapê do Norte que não se diga perseguida por fazendeiros, por vigilantes da Fibria o pela polícia. Atentados também são periódicos.
O episódio mais recente de tentativa de homicídio no Sapê envolveu João do Angelim, uma das lideranças quilombolas que lutam pela defesa do território e da preservação da água nas comunidades. João mora em Angelim I, que pertence ao município de Conceição da Barra, e o atentado aconteceu em 30 de junho deste ano, quando ele caminhava em direção ao terreno de sua família, onde desenvolve um projeto de agroecologia.
Ao sentir-se atingido por um tiro no joelho, ele gritou por socorro e foi levado rapidamente ao hospital pelos colegas quilombolas. Após o crime, o Fórum de Segurança Alimentar e Nutricional do Espírito Santo (FOSAN-ES) divulgou uma nota pública, onde diz estar acompanhando diversas violações dos direitos fundamentais cometidas contra os povos e comunidades tradicionais no solo capixaba. “A omissão dos governantes na regularização dos territórios quilombolas tem estimulado o aumento da violência e do desrespeito aos Direitos Humanos nestas comunidades”,diz um trecho da nota.
Outras entidades que acompanham a situação, como a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), alertaram que “as ameaças a lideranças quilombolas são constantes” e que é grande o risco de morte dos líderes da região do Sapê.
O risco é grande porque, com a expansão do eucalipto sobre o território quilombola nos últimos anos, têm crescido os chamados “mutirões” de derrubada da madeira e, com isso, aumenta o clima de tensão entre quilombolas, de um lado, e fazendeiros e a Fibria, de outro. O eucalipto plantado por fazendeiros, aliás, também é comprado pela empresa de celulose.
De acordo com Altiane Brandino, líder de São Domingos, os moradores que se dispõem a liderar a retomada do território passam a ser perseguidos quando não se aliam às aos plantadores de eucalipto . “Muitas vezes as ameaças são veladas, mas quase sempre a prisão é o caminho mais fácil que eles encontram para um quilombola, quando ele começa a assumir a luta pelas terras que eram de nossos pais e avós. Aí a polícia vem aos montes aqui”, argumenta.
https://vimeo.com/185089082
Polícia X Quilombolas
Nos últimos 5 anos, mais de 300 pessoas foram indiciadas na região por furto de madeira, segundo a Secretaria de Estado da Segurança Pública do Espírito Santo. Toda vez que há decisão da Justiça para prender quilombolas, as polícias militar e civil montam operações descritas como “de guerra” pelos moradores, com armamento pesado e cães farejadores. Não raro, são usados helicópteros, como na operação realizada em 12 de agosto do ano passado, que dão voos rasantes sobre as casas simples dos quilombolas. De acordo com relato dos moradores, para prender quatro afrodescentes o Estado colocou em ação cerca de 30 policiais do Núcleo de Repressão às Organizações Criminosas e a Corrupção (Nuroc) do Espírito Santo, que vasculharam diversas casas dos moradores de São Domingos. Parte do efetivo usava capuz, e os quilombolas presos foram transportados em um comboio de oito viaturas.
No ano de 2003, após imensa reivindicação dos quilombolas, a Fibria – quando ainda era Aracruz Celulose – chegou a firmar um contrato que liberava as famílias para catar o chamado facho (pontas de galho de eucalipto com menos de 3 centímetros de diâmetro). Porém, depois de cerca de seis anos, a empresa de celulose voltou a proibir a coleta pelo efeito nefasto da intensificação do trabalho precário nas carvoarias. “No início a Fibria deixava a gente catar as pontas de galho como meio de sobrevivência, até que fosse feita a regularização. Depois que proibiu, e os galhos passaram a dar cadeia”, diz Ledriano.
Em todo o Sapê, há registros de conflito – apesar de algumas famílias terem uma relação mais amistosa com a Fibria, que também emprega trabalhadores locais. Os quilombolas alegam que a perseguição se intensificou depois que diversas comunidades deram entrada no processo de reconhecimento da terra junto ao Incra. “Quando a comunidade precisa de alguma ajuda, a polícia não vem. Só aparece quando a vigilância das empresas chama”, reclama Eni Alacrino.
A maior parte do carvão sai das comunidades quilombolas por meio de atravessadores clandestinos, segundo disse o secretário de segurança do Espírito Santo, André Garcia, em uma entrevista ao Gazeta Online. À reportagem da Pública, a PM não se manifestou e nem confirmou os números.
Caçadas na madrugada
Seguimos por 30 quilômetros em uma estrada de terra que vai dar em uma comunidade quilombola isolada pelo eucalipto, chamada Roda D’Água. É fácil se perder no caminho, pois são poucas as referências, como pontes, árvores nativas ou porteiras. Tudo é planície e eucalipto.
Os moradores denunciam que, apesar do difícil acesso, o camburão da polícia costuma “caçar” quilombolas nos eucaliptais durante a madrugada.
A última perseguição acontecera uma semana antes da reportagem da Pública chegar ali, em junho. Os moradores ainda estavam tão assustados que nem acreditaram que se tratava de uma equipe de jornalistas. Pensaram que éramos policiais disfarçados.
Morador local, Valdecir dos Santos Alves já perdeu as contas de quantas vezes precisou escapar da polícia. Em duas ações, chegou a ser preso. “Era para a empresa plantar eucalipto a 300 metros da comunidade, mas eles não respeitam. Se deixar, plantam eucalipto até dentro da nossa casa. Aí a gente vai cortar e acaba sendo preso. Por isso nossa estratégia é correr, fugir e depois voltar”.
A líder da comunidade, Creusa Mota, de 61 anos, explica que os “ataques” têm sido frequentes. “Tem sempre dois camburões da polícia rondando nossas casas junto com os seguranças da Fibria. Geralmente vêm à noite ou de madrugada e fazem a emboscada. Depois que prendem um ou dois quilombolas, vão nas rádios da cidade e dizem que prenderam meliantes, que somos quadrilha que rouba madeira”, lamenta ela, durante a entrevista. Chora sem parar.
A operação que mais assustou os moradores foi em 14 de novembro de 2007, quando policiais entraram nos limites territoriais da comunidade, “em abordagem não muito explicada, efetuaram disparos de arma de fogo em momento em que havia intenso movimento de crianças, pelo fato de haver no local uma escola comunitária, o que gerou a instauração de um procedimento administrativo”, segundo o MPF. O processo foi arquivado por falta de provas para a responsabilização individual dos policiais envolvidos.
Na visão de Creusa, não existe outra alternativa para as famílias, hoje, que não seja o corte de madeira. “Não tem serviço nenhum aqui. Renda ninguém tem. Com três, quatro filhos para sustentar, o que fazer? O jeito é fazer o mutirão e cortar para sobreviver. Mas não é roubar. Estamos numa terra que foi tomada, que pertence ao nosso povo”.
Outro lado
A Polícia Militar do Espírito Santo foi demandada pela reportagem da Pública sobre todas as questões expostas. A corporação foi questionada sobre as prisões efetuadas com base na acusação de furto de madeira, sobre operações constantes e cerco à região, sobre a operação de 2009 que prendeu 39 moradores das comunidades e sobre relatos dos quilombolas de que a PM faz rondas junto com vigilantes da Fibria.
Para todas as questões, a resposta da PM foi: “Boa tarde. A Polícia Militar não comentará o assunto.”
Questionado sobre os mesmos pontos, o secretário de Direitos Humanos Júlio Pompeu disse que não existe parceria ou convênio entre PM e Fibria para realização de operações. “O que pode ter acontecido é que em ações na cidade, você diz o endereço e a polícia acha. Mas no campo não há endereço. Então alguém tem que levar o policial até o local da ocorrência, senão a polícia não encontra. É diferente de dizer que os dois estão trabalhando juntos. Isso não há”, destacou.
Pompeu também ressaltou que o governo tem um programa de proteção a defensores de direitos humanos que acompanha de forma direta esses casos pontuais de ameaças a lideranças. “Mas no último um ano e meio que eu estou à frente da política de Direitos Humanos do governo do Estado, não tivemos nenhum acionamento com relação à questão do conflito de terra no norte. Há muitas pessoas que têm medo de denunciar e de represália, então a pessoa faz a denúncia e nós encaminhamos. Pode ser feito através ou do Disque Denúncia 181, ou no site da Rede Capixaba de Direitos Humanos (rcdh.es.gov.br). A denúncia pode ser anônima”.
A empresa Fibria foi procurada pela Pública através de sua assessoria de comunicação. A empresa informou, logo depois que a demanda foi feita, que não iria se posicionar sobre o assunto. Não iria, sequer, responder formalmente o e-mail enviado. Num segundo momento, a assessoria de imprensa nos informou que a empresa decidiu se pronunciar.
A Fibria informou por nota que detém a titularidade de todas as suas terras e que, assim como outros proprietários de terra na região, vem recorrendo de ações de comunidades quilombolas que reclamam a posse das terras ocupadas. A companhia destacou que, inclusive, já obteve sucesso em algumas dessas ações.
A empresa acrescentou que também desenvolve projetos que buscam inserir as comunidades em sua cadeia produtiva e apoiar iniciativas locais de geração de renda. Segundo a Fibria, atualmente, 375 famílias de comunidades do Sapê do Norte participam do Programa de Desenvolvimento Rural Territorial (PDRT), iniciativa da Fibria que inclui a cessão de áreas para cultivos diversos (milho, urucum, mandioca, abóbora, melancia, feijão e outros), além de orientação técnica e de comercialização da produção.
Além disso, a empresa diz que na busca de um bom relacionamento com a comunidade, apoiou e orientou a constituição da Cooperativa dos Trabalhadores Rurais e Agricultores da Comunidade Quilombola do Córrego de São Domingos, em Conceição da Barra. Nesse projeto, os 26 cooperados prestam à Fibria serviços como roçada manual ou mecanizada, desbrota dos plantios, controle de formiga e restauração de áreas nativas. O contrato de prestação de serviços com a companhia teve início em maio de 2014.
A parceria, diz a empresa, “vem rendendo bons resultados: propicia a melhoria da qualidade de vida das famílias envolvidas; as atividades são realizadas dentro dos padrões de saúde e segurança do trabalho exigidos pela Fibria; os cooperados têm acesso a programas de fomento ao desenvolvimento e à geração de renda”, informou a nota. Um exemplo, segundo ela, foi a captação de recursos junto ao Instituto Votorantim e ao BNDES, que resultou na compra de um micro-ônibus para a cooperativa.
Além disso, a empresa completou que até o final deste ano deve ser efetivada a construção do Centro de Formação da Mulher Quilombola.
Em relação às prisões, a empresa informou que o assunto cabe às autoridades competentes.
https://vimeo.com/185089090
A polícia capixaba no banco dos réus
Madrugada de 11 de novembro de 2009. Pelo menos cem policiais militares montam acampamento no campo de futebol da comunidade quilombola São Domingos, em Conceição da Barra, onde vivem 150 famílias. Com metralhadoras, fuzis, cães farejadores e cavalaria montada, arrombam portas das casas, que são reviradas em seguida.
De uma só vez, 39 moradores são presos sob suspeita de furto de madeira em área da empresa Fibria, líder mundial na produção de celulose branqueada de eucalipto.
A operação foi considerada ilegal pela Justiça em 2013. Entre várias irregularidades cometidas, a polícia não tinha mandado judicial para prender, nem realizou flagrantes.
As prisões começaram às 8h e terminaram só às 18h.
Entre os presos está Sabino Florentino, de 48 anos, que é cego. “Quebraram a porta da minha casa e vasculharam tudo procurando arma. Me algemaram e me colocaram no camburão sem nem falar por que eu estava sendo preso. Todo lugar que passavam buzinavam para mostrar que tinha quilombola na viatura e, ao chegar na delegacia, viram que eu não posso enxergar e muito menos roubar madeira”, narra Sabino.
Já na delegacia, Sabino diz ter ficado em uma cela com outros 40 presos, entre eles parte dos membros da sua comunidade que também haviam acabado de ser detidos. “Achava que não ia ser solto. Os outros presos comuns ficaram bravos com os policiais e disseram: ‘Vocês não têm vergonha, não, de pegar um cego e trazer para cá’?”. Ele resume o que sente: “A questão aqui é o território. Tomaram o que é nosso, mas nós é que somos presos”.
Além de Sabino, foram presos três irmãos e o pai dele, Berto Florentino, hoje com 67 anos. “Algemaram meus filhos todos. Minha esposa, que tem problema de pressão, desmaiou vendo aquilo tudo. Os policiais, em vez de ajudar, disseram que ela podia morrer, pois não iam fazer nada”, lembra.
Depois de muita discussão, os moradores conseguiram acionar uma ambulância. “Só fui acordar no hospital”, lembra a esposa, Joana Cardoso Florentino, de 66 anos. “Esse foi o dia mais horrível da minha vida.”
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“Já chegaram prendendo a gente, morador por morador. Fomos presos sem saber de nada. Reviraram minha casa, quebraram meu guarda-roupa. Como não tinha arma nem nada, levaram meu facão de trabalhar”, alega Berto, que teve um filho menor detido, embora a família tenha alertado que ele só tinha 16 anos.
Outro senhor da comunidade, Ledriando Manoel Maria, de 63 anos, também foi preso. Ele já havia sito encarcerado três anos antes.
Ledriando lembra que nesse dia levantou cedo, como é de costume, e foi para a roça amarrar a “besta”, seu burro de carga. “Do nada fui surpreendido pela polícia. Não deram nem um bom-dia. Só falaram ‘aê, peão, aê, peão’. Eu disse para eles darem bom-dia”, conta. Irritado, virou as costas para os policiais. “Nesse momento engatilharam a arma. Achei que fossem me matar”, diz. Na delegacia, a polícia quis apontar o quilombola como líder de quadrilha de furto de madeira. “E foi assim que saiu no jornal da cidade. Isso foi feito apesar de eu ter deixado bem claro para a polícia que meu problema não era a madeira. O problema da comunidade é a retomada do território, que é nosso por direito.”
Segundo Berto, na delegacia escreveram o nome de cada morador em um papel e colaram no peito de cada um, “com letras bem grandes, como se todos fossem marginais. Depois fotografaram e filmaram a gente e foi todo mundo levado para cela, aquela turma de gente algemada”.
Na ação apresentada à Justiça Federal, o Ministério Público Federal (MPF) denuncia que a identificação fotográfica nem sequer consta nos autos e “nem se sabe qual a finalidade de ter sido realizada”.
Os quilombolas foram mantidos durante horas sem contato com famílias ou advogados, algemados e, posteriormente, presos em uma cela.
Na decisão que condena o Estado a pagar por danos morais individuais e coletivos, a Justiça, em primeira instância, conclui que há repetição desses excessos praticados pelos policiais estaduais nas comunidades quilombolas de Sapê do Norte.
“A situação de abusos contra comunidades quilombolas praticados por policias, principalmente pela Polícia Militar, não é situação isolada no passado recente daquelas populações”, diz um trecho do processo. Além das ações da polícia, “são recorrentes os litígios fundiários entre pessoas físicas e jurídicas exploradoras de atividades agrícolas, em particular plantadoras de eucalipto, e comunidades quilombolas no Norte do Espírito Santo”, continua o texto.
Duas ações foram encaminhadas pelo MPF à Justiça Federal. Em uma delas, o governo do Espírito Santo foi condenado a pagar R$ 10 mil para cada quilombola preso ilegalmente em 2009. A sentença foi dada em primeira instância, no dia 17 de dezembro de 2013, mas houve recurso. A outra ação, também em fase de recurso, teve como resultado em primeira instância a condenação para que o Estado pague R$ 100 mil à comunidade São Domingos.
As duas ações estão paradas nas mãos da desembargadora Vera Lúcia Lima desde 2014. Mas nos próximos dias os processos vão ganhar andamento: ambos estão incluídos na pauta de julgamentos da 8ª Turma Especializada no dia 5 de outubro. A sessão terá início às 13h, na sede do TRF2, no Rio de Janeiro.
Megaoperação
Percorrendo as comunidades, percebe-se que aquela operação está fresca na memória dos moradores, que lembram detalhes das prisões. “Meu filho era adolescente e disse ‘mamãe, vão atirar em mim’. O policial já estava na cozinha. Aí eu agarrei ele pelo braço, abracei e disse que ele teria que atirar em mim também. Aí botou a arma em cima de mim, só não atirou”, lembra Joana sobre aquele dia de novembro de 2009.
A agente comunitária Eni Alacrino, esposa de Ledriando, diz que eram pelo menos 130 o número de policiais que desembarcaram na comunidade naquela manhã, com cachorros, viaturas e cavalos. Em documentos do MPF, consta que foram remanejados para a operação policiais do Batalhão de Missões Especiais (BME), da 3a Companhia do Batalhão Militar do Meio Ambiente (BPMA) e três grupos da 5a Companhia Independente.
“O policial meteu a arma em cima de mim e foi engatilhando, mandou eu deitar e tentou me derrubar. Já foi colocando a algema. Falaram que a gente estava com arma pesada, e que a gente era sequestrador”, diz Claudenir da Conceição, morador da comunidade também preso na operação.
O quilombola conta que os jovens se sentem vigiados na comunidade. “Os vigilantes [da Fibria] querem colocar terror na gente. Quando não são eles, é a polícia. Por isso, além estarmos cercados de eucalipto, fica essa pressão para cima da gente. Ninguém quer dar emprego para nós, porque acham que quilombola é vagabundo”, desabafa.
À Justiça Federal, o Estado do Espírito Santo justificou o aparato tendo em vista “a notícia de que alguns dos quilombolas teriam furtado madeira da empresa Aracruz Celulose S/A”. Acrescentou ainda que tal aparato foi organizado em razão da “postura hostil e rude dos quilombolas, que inclusive teriam montado barricada na tentativa anterior de cumprimento do mandado de busca e apreensão”.
Três meses antes da operação de 11 de novembro de 2009, outra ação da Polícia Militar foi realizada, na mesma comunidade. A PM mandou equipes para fornecer “suporte” aos funcionários da Fibria, uma proteção pessoal enquanto eles vasculhariam as comunidades atrás de madeira supostamente furtada. “Militares estaduais da 5ª Cia já estiveram na citada região dando proteção aos funcionários da mencionada empresa, entre os dias 4 e 8 do corrente mês e ano. Entretanto, naquela ocasião, os militares se depararam com uma grande resistência de moradores locais, cerca de 100 pessoas, sendo 60 homens e o restante constituído de mulheres e crianças, sendo esses dois últimos grupos estrategicamente utilizados como barreira humana”, diz um ofício assinado pelo Major Assis Batista, do batalhão do Norte do Estado, encaminhado ao comando da PM na Capital. As informações estão em documentos encaminhados à Justiça pelos advogados da PMES.
Os moradores contam que, no dia da megaoperação, a polícia acampou no campo de futebol e cercou a comunidade sem sequer explicar o motivo. “Ninguém usava identificação na farda. Levaram uma quantidade tão grande de moradores presos que a prefeitura precisou fretar um ônibus para trazer de volta”, lembra Eni. Desesperada com o fato de que o marido e os parentes tinham sido presos, a agente de saúde pegou uma carona e seguiu para a delegacia de São Mateus, a 30 quilômetros de distância. “Cheguei lá e o delegado disse: ‘Você sabe quem é que mandou fazer isso? Foi a Fibria. Seu bando de ladrões, ficam roubando eucalipto que não é de vocês’, enquanto rodava a algema no dedo para me amedrontar.”
Depois de passarem o dia em uma cela no DPJ de São Mateus, os 39 quilombolas foram soltos. Apenas quatro deles precisaram assinar um termo circunstanciado (assumindo o compromisso de, posteriormente, comparecer perante o juiz) antes de serem liberados.
https://vimeo.com/185089086
Apoio da Fibria
Em declaração ao MPF, quilombolas contaram que, a caminho da delegacia, logo após as prisões, tiveram de esperar, algemados no camburão, enquanto policiais pegaram lanches e almoço no centro de operações da Fibria.
Documentos obtidos pela Pública junto à Justiça Federal comprovam: a empresa de celulose ofereceu toda comida necessária para alimentar a tropa da Polícia Militar. Clique aqui para baixar o documento na íntegra.
Ao decretar a pena ao Estado em primeira instância, o juiz federal Nivaldo Luiz Dias declarou que a prisão sem lavratura de flagrante ou mandado de prisão é ilegal, e “é inconteste que as prisões realizadas não seguiram o procedimento previsto na legislação pátria”. Tal fato, diz a decisão judicial, gera dano moral individual aos cidadãos que sofreram a prisão ilegal. A decisão conclui também ter havido “abuso na utilização desnecessária de algemas”.
Segundo o juiz, apesar do tamanho da operação, nenhum aparato foi utilizado para oferecer condições mínimas de dignidade, entre elas o tratamento não degradante.
O fato de os presos terem passado um dia inteiro sem receber alimentação e liberados à noite, a mais de 30 quilômetros das suas casas, constitui “evidente violação à dignidade da pessoa humana”. O veredicto diz ainda que a “arbitrariedade e o desrespeito à lei” ganham especial relevo tendo em conta que os cidadãos compõem uma minoria étnica historicamente vítima de restrições de direitos.
“Tais comunidades enfrentam, na atualidade, dificuldades na implementação do direito previsto no artigo 68 do ADCT da Constituição da República, e, assim, constantes disputas com empresas que exploram as terras que essa comunidade luta por ver reconhecidas como remanescentes das comunidades de quilombos”, conclui o documento.
Para Sabino e sua comunidade, a condenação do Estado em segunda instância – o que pode ocorrer já neste dia 5 de outubro – é uma “questão de honra”.
“Fomos muito humilhados naquele dia e continuamos sendo atualmente, pois as prisões não pararam. Mas aquele dia mais violento, principalmente esse, não saiu da nossa memória nem vai sair da memória da sociedade, que acha que todo mundo que é quilombola é criminoso. O Estado tem que pagar”, desabafa.
Entrevista
“Eles vivem bastante acuados”, assegura o procurador do Ministério Público Federal em São Mateus, Guilherme Garcia Virgílio, em entrevista por telefone à Pública, em 20 de setembro. “Eles têm se organizado e conseguido brigar por seus direitos de uma forma socialmente correta, mas vivem acuados. Há movimentos políticos locais e de produtores agrícolas que ainda tentam denegrir a luta dos quilombolas. O fantasma das prisões existe. E, além disso, eles sofrem ameaças feitas por não policiais, que estão ali por questões relacionadas à posse da terra”, pontua o procurador. São pessoas em busca de terra, diz Virgílio, que ocupam informalmente áreas da Fibria ou da Suzano ou acabam adquirindo pequenas áreas de quilombolas. “Os casos que conseguimos analisar foram de pessoas do Movimento Sem Terra [MST]. Mas sabemos que há quilombolas do sul da Bahia e do norte de Minas que não teriam direito a áreas em São Mateus”, detalha.
Para o procurador, o eucalipto é elemento de isolamento físico. Outro problema é que o acesso aos serviços públicos é precário, embora existam políticas públicas específicas para os quilombolas, pois nenhum dos municípios capixabas conseguiu implementá-las por completo. “Algumas comunidades têm escolas, mas com estrutura bem precária. Temos tentado estimular professores da comunidade, parcerias com empresas, manutenção de um cardápio com produtos e tradições deles… Mas isso avança a passos de tartaruga. Já na questão da saúde, o acesso é bem difícil, pois não existe nada próximo às comunidades”, destaca Virgílio.
Ele afirma que a maior parte do trabalho da procuradoria federal em São Mateus é voltado para a questão quilombola. “E o principal problema deles é regularização fundiária, o reconhecimento, a demarcação e a titulação das terras. Confrontos entre os quilombolas e a Fibria são os casos mais graves. O ponto de atrito é uma disputa por terra e invasões recíprocas. A Fibria entra em áreas que diz serem dela e os quilombolas, em áreas que dizem serem deles”, observa.
Veneno, carvão e seca
A realidade dos quilombolas que decidiram ficar e lutar
Tatiana Cardoso Nascimento tinha 20 anos quando morreu, depois de passar dois meses internada em um hospital. Era uma tarde de meio de semana, quando, depois de passar numa região onde tinham aplicado veneno nas plantações de eucalipto, ela chegou em casa passando muito mal, vomitando e com dor de cabeça. Vivia na comunidade de Manoel Cardoso, também na mesma região do Norte do Estado.
A intoxicação foi tão forte que a quilombola passou uma semana tremendo sem parar. “Depois ela não podia sentir o cheiro do agrotóxico que ficava muito ruinzinha. Em pouco tempo foi perdendo a visão. Certo dia, levamos ela para o hospital porque a saúde piorou, e de lá para o cemitério”, conta a mãe, Luzia Gonçalves Cardoso, de 56 anos, que hoje cuida da neta, Ritiele Brandino, de 5, que na época da tragédia era recém-nascida.
Trata-se de um problema constante mencionado pelos moradores do Sapê: o excesso de agrotóxico utilizado nas plantações de cana e eucalipto, que prejudica a saúde da população por meio da água e do ar. Alguns casos de morte já foram denunciados pelas lideranças quilombolas, mas há pouco esforço das autoridades para tomar providências. Casos de cegueira também são comuns, segundo relatos ouvidos pela reportagem da Pública, e câncer também é registrado em quase todas as famílias.
No Córrego do Sapato, uma comunidade de 200 habitantes, o descarte de agrotóxico numa represa que abastecia a comunidade deixou várias famílias intoxicadas em 2013. “Ficamos dez dias com dor de barriga e dor de cabeça, vomitando até sangue. Só não passou mal quem não bebeu da água”, lembra o quilombola Claudenir Silva, de 39 anos.
Jovens e crianças também são vítimas. Em São Jorge, três irmãos morreram de uma só vez, em 2003, depois de terem comido frutas contaminadas com agrotóxico usado na monocultura: Wendson Valentim, de 13 anos, Jery Valentim, de 18, e Wando Valentim, também de 13. “Apesar dos diversos protestos feitos pelas famílias, a Justiça não tomou qualquer providência até hoje”, reclama José Carlos Valentim, de 57 anos, líder quilombola e tio das vítimas.
A Comissão Quilombola do Sapê do Norte estima que, das 12 mil famílias que habitavam o Sapê, apenas 1.200 resistiram aos conflitos por água e terra, às doenças e à pressão policial. Nada menos de 90% da população migrou para as periferias urbanas do norte do Espírito Santo e mesmo para a região metropolitana de Vitória. “O número que a gente chegou é que de cada dez quilombolas, nove foram expulsos para as periferias. A vida comunitária, as tradições, o plantio de alimentação, tudo isso está sendo perdido. Eles vivem sob agressões da polícia, dos vigilantes da Fibria, e sem direito ao acesso à água”, aponta Beto Loureiro, um dos técnicos da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), organização não governamental que atua na área socioambiental. A reportagem da Pública detectou três ameaças constantes à sobrevivência das comunidades tradicionais no Sapê. Em resumo, veneno, carvão e seca.
A guerra pela água
Boa parte sai à procura do líquido em lombo de burros ou precisa recorrer a caminhões-pipa, como nas comunidades quilombolas dos córregos do Sapato e do Angelim. De córrego mesmo ficou só o nome das comunidades, pois o curso de água secou há mais de uma década, depois que barragens foram construídas para irrigar a monocultura de eucalipto.Nas duas viagens feitas ao Sapê do Norte, nossa equipe passou sete dias circulando em meio às imensas florestas de eucalipto da Fibria. Nessa mancha de eucalipto, ou “deserto verde”, são poucas as famílias que têm água potável em casa.
“A monocultura rapidamente se espalhou por todas as comunidades, deixando o povo isolado no meio desse deserto verde. Desde então tudo o que era nativo sumiu. Até as estradas mudam sempre de lugar, para atender aos interesses da empresa. O morador passa num caminho hoje e, amanhã, já plantaram eucalipto em cima. Até os mais antigos ficam perdidos no meio da plantação”, explica Renan de Oliveira, de 72 anos.
Outro córrego que ficou só no nome é o Teco-Teco. “Hoje pode dormir no meio do leito que não tem problema. Desde que intensificaram o uso de água no eucalipto, a água secou. Isso faz mais de 15 anos. Para fazer farinha é uma dificuldade, tem que contar com a chuva para a mandioca nascer e crescer”, lamenta Renan.
Segundo a Fase, só no norte do Espírito Santo mais de 130 córregos já secaram depois que o eucalipto foi introduzido na região. Atualmente, a monocultura ocupa cerca de 85% das terras de São Mateus e Conceição da Barra, municípios onde está localizado o Sapê do Norte.
“Nos anos 1950, havia uma enorme quantidade de lagoas e córregos na região. Havia locais com 3 metros de profundidade de água, e agora acabou tudo. Se você andar no meio do eucaliptal, é possível ver baixadas onde havia lagoas e os veios secos dos rios. Está lá, visualmente. Se só a plantação de eucalipto já exercia pressão sobre o sistema de água e essa conta caía sobre as comunidades quilombolas, de uns dois anos para cá, as empresas começaram a sugar, com caminhões-bomba, águas dos córregos para molhar os plantios. Isso foi alvo de denúncia ao MPF e houve até audiência no Conselho Estadual de Meio Ambiente”, ressalta Beto Loureiro. Até o momento, entretanto, a Fase ressalta que nenhuma providência foi tomada.
Trabalho precário nas carvoarias
É difícil encontrar uma casa no Sapê do Norte que não tenha um forno de carvão no quintal. É a única fonte de renda de boa parte das famílias. O trabalho é precário, insalubre, envolve mulheres e crianças numa tentativa desesperada de sobrevivência.
Os acidentes são diários. Nos dias em que a reportagem passou nos quilombos, foram relatados vários casos de queimadura e intoxicação e incidentes por jornadas exaustivas nos fornos de carvão.
Moradora da comunidade São Domingos, dona Benedita da Conceição falou com a nossa reportagem com o pé enfaixado, pois tinha acabado de se queimar ao manejar o carvão dentro de um forno. “Isso aqui não é nada não, meu filho”, minimizou a sorridente quilombola de 61 anos.
Na maioria das casas, o papel de cozinhar a madeira até virar carvão costuma ficar com as mulheres, enquanto os homens se viram em busca de lenha. As prisões, no entanto, também atingem quem atua nessa parte da cadeia de produção. Até quem não produz carvão não escapa das batidas da polícia. “Vieram bater aqui na minha casa, trazer uma intimação e dizer que eu estava cortando eucalipto para fazer carvão. Mas eu não consigo nem segurar uma motosserra. Como vou roubar madeira? Nós somos quilombolas, não somos criminosos”, questiona Dolores Maria da Conceição, de 62 anos, que vive na comunidade.
Na casa dela moram seis pessoas, mas nenhuma trabalha com carteira assinada. Dolores não chegou a terminar nem o primário, assim como a maioria das vizinhas, devido a dificuldades como a longa distância até a escola. “Somos quilombolas, temos nossos costumes e tradições passadas por nossos ancestrais, mas estamos tendo que abrir mão de tudo e fazer carvão porque perdemos nossos direitos”, lamenta.
Quando as mulheres eram abordadas pela reportagem daPública, era difícil encontrar uma mulher quilombola que não quisesse dar entrevista. Era a oportunidade de colocar para fora o sentimento de revolta que estava guardado. “Já enfrentei muita polícia aqui, meu filho. Enfrentei e enfrento de novo se for preciso, não corro não. Depois que o eucalipto chegou, a violência não para contra os quilombolas”, diz Benedita.Quando não é o carvão que dá o sustento, é alguma planta que precisa de pouca água, como o urucum. “As nascentes foram todas cercadas para molhar eucalipto. Secou tudo. A gente planta milho, feijão, mandioca, mas não dá nada. Morrem até os animais. A única coisa que sobrou para a comunidade é o carvão, mas estão nos tirando isso também. Querem que a gente morra de fome?”, questiona Conceição.
Chama atenção o fato de boa parte das lideranças quilombolas serem mulheres, algo incomum nas regiões rurais do estado. “Aqui as mulheres aprendem desde cedo a assumirem a luta. Não queremos que nossos filhos passem a vida toda cercados de eucalipto”, afirma a líder comunitária do Córrego do Sapato, Maria Teodora Farias, a Bibica, de 43 anos.
Até meados dos anos 1960, as posses de cada família e o território da comunidade nunca foram formalmente repartidas nem mercantilizadas. Por isso também, não eram regularizados, do ponto de vista da lei. “A gente é resistente igual dendê. Pode jogar veneno em cima. Ele seca, fica doente, mas não morre”, diz Altiane Brandino.
Juntamento e Giro
“Fazer o juntamento” ou “fazer o giro” são frases conhecidas de quem mora no Sapê do Norte. Juntamento significa juntar a comunidade para plantar ou colher, assim como para construir ou reformar a casa de um morador. Como as terras estão todas tomadas por eucalipto, o giro significa sair em busca de espaço vazio para plantar alguns pés de milho ou mandioca.
Moradora do Córrego Joerana, Madalena Cardoso sai de cavalo logo cedo e chega a andar mais de quatro horas para encontrar algum espaço para plantar mandioca. Descendente de escravizados trazidos de Angola, ela tem dez filhos e vários netos.
“O eucalipto foi chegando e a gente foi ficando sem lugar para plantar. Hoje o que restou para a minha família é menor que um campo de futebol. Por isso, preciso fazer o giro para encontrar lugar para plantar e depois comer”, conta Madalena, que tem 73 anos.
Na visão de Ledriando, a riqueza tradicional das comunidades era agricultura, principalmente a lavoura branca: mandioca, milho, feijão, amendoim, coco, dendê. “Mas, com a invasão da monocultura, acabou tudo. Como vai ter agricultura sem água? Tiraram toda nossa liberdade. Antes, tinha campeonato de natação na comunidade, pois tinha muita água. Hoje dá para andar de moto onde antes tinha rio. Eu não troco essa migalha de madeira pela riqueza que a gente tinha no passado”, destaca.
A família de Ledriando traz na sua história uma venda que consideram “enganação” – justamente da área que hoje pertence à Fibria. “A terra era da minha mãe, 56 alqueires. Mas importunaram ela até ela entregar a terra a troco de banana. Então só ficamos com 3 alqueires”, afirma o quilombola.
Avanço sobre a comunidade
Ao adentrar as imensas florestas de eucalipto, é impossível não observar o quanto a monocultura vai invadindo os quintais das casas, as poucas áreas comuns como campinhos de futebol e até o pátio das escolas.Uma placa com os dizeres “não plante eucalipto aqui”, na entrada de Angelim, em Conceição da Barra, mostra que estamos em um foco de tensão. Fincado há menos de um ano, o aviso não foi suficiente para impedir que fazendeiros avançassem com a monocultura sobre uma área da comunidade.
Em 2006, como forma de protesto e reocupação, os moradores derrubaram o eucalipto e fincaram uma cruz no local. Depois de vinte dias de ocupação de área reconhecida como sua, mas ocupada à época pela Aracruz Celulose, os quilombolas da comunidade foram forçados a sair.
O dia foi 9 de agosto de 2006. O batalhão da Polícia Militar destruiu o acampamento montado no local. O Incra havia reconhecido oficialmente que a comunidade tinha direito a 9.542,47 hectares, dos quais ocupa apenas pouco mais de 100, segundo a Fase.
“Roubaram nossas terras. Roubaram nossas matas e nossas águas. Nós tirávamos nossos remédios da mata. Agora o Estado coloca polícia e cachorro na nossa porta, processa as comunidades sem motivo, somente por permanecermos e resistirmos no lugar que é nosso. Só pensam na ‘ganança’ e no dinheiro”, desabafa a líder quilombola Elda Maria dos Santos, a dona Miúda, de 56 anos, que também responde a processo por organizar ocupações. “Dinheiro para nós não vale nada. O que nós queremos é a nossa mãe terra. É a demarcação e titulação do território. Não é para comprar nem para vender. É para passar de geração para geração, deixar para os nossos filhos.”
“Roubaram nossas terras. Roubaram nossas matas e nossas águas. Nós tirávamos nossos remédios da mata. Agora o Estado coloca polícia e cachorro na nossa porta, processa as comunidades sem motivo, somente por permanecermos e resistirmos no lugar que é nosso. Só pensam na ‘ganança’ e no dinheiro”, desabafa a líder quilombola Elda Maria dos Santos, a dona Miúda, de 56 anos, que também responde a processo por organizar ocupações. “Dinheiro para nós não vale nada. O que nós queremos é a nossa mãe terra. É a demarcação e titulação do território. Não é para comprar nem para vender. É para passar de geração para geração, deixar para os nossos filhos.”
Na comunidade Quilombola Manoel Pinheiro, as famílias reclamam que não podem plantar nem abóbora no quintal, que hoje – assim como nas outras localidades – está tomado por eucalipto. “Aos poucos a comunidade foi ficando isolada, o eucalipto foi chegando e tomando tudo. Os jovens, se coletam algum galho para sobreviver, já são considerados suspeitos. É a velha política do capitão do mato”, denuncia Valmir Cardoso Nascimento, de 37 anos.
É uma empresa brasileira líder mundial na produção de celulose branqueada de eucalipto, com capacidade produtiva de 5,3 milhões de toneladas anuais de celulose. Com R$ 10,1 bilhões de receita líquida registrados em 2015, as operações da empresa reúnem 17 mil trabalhadores próprios e terceiros .
A companhia tem quatro fábricas, situadas em Três Lagoas (MS), Aracruz (ES), Jacareí (SP) e Eunápolis (BA). Depois de transformar a madeira em celulose, o produto é exportado para para 37 países para virar papel.
Controle acionário da empresa:
41,44% Mercado de Capitais (Free Float)
29,42% Votorantim S.A
29,08% BNDESPar
0,06% Tesouraria
Território da Fibria
Além de plantações próprias, a companhia tem 1.980 contratos com fornecedores de madeira – que podem ser fazendeiros, pequenos e médios produtores – , o que equivale a 78 mil hectares de eucalipto. Os plantios estão concentrados no Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro.
A base florestal própria que supre o complexo industrial da Fibria no Espírito Santo tem 197 mil hectares de plantios de eucalipto, a maior parte em território de origem indígena e quilombola no Norte e Extremo Norte do Espírito Santo
O eucalipto
É uma planta originária principalmente da Austrália e do continente da Oceania. Seu plantio vem se expandindo devido à grande rentabilidade que é capaz de gerar, sendo hoje utilizada como principal fonte de alimentação da indústria da celulose no Brasil. Uma das grandes apostas no eucalipto é o fato de a planta ser capaz de se adaptar aos mais diversos tipos de climas. No Brasil, a indústria de celulose já conseguiu desenvolver clones da planta que crescem até cinco vezes mais rápido do que os plantios nos demais países, com isso consumindo muito mais água e ampliando os danos ambientais.
Danos ambientais
No Norte do Espírito Santo, a monocultura acabou com rios e nascentes, devastando o solo de comunidades inteiras. Mais de 130 córregos secaram depois que o eucalipto foi introduzido na região. Vários municípios capixabas já criaram ou estão em fase de criação de leis próprias para impedir o avanço do eucalipto. Quando o solo está seco, as raízes das árvores vão buscar águas cada vez mais profundas, afetando os lençóis freáticos, que são como lagoas debaixo da terra. Além disso, são usados agrotóxicos e herbicidas no cultivo, que impedem o desenvolvimento de qualquer outra forma de vida na região, como plantas, insetos e animais.
Como anda a demarcação
A região do Sapê do Norte foi historicamente habitada por negros libertos e fugidos durante o regime de escravidão, formando núcleos de resistência que eram considerados “quilombos” pelas autoridades locais. Mesmo depois da abolição, em 1888, tais núcleos permaneceram.
Por ali, muito se escuta “ali onde era o córrego” ou “lá na antiga farinheira”, “aqui tinha uma roda d’água”. Registros de outra temporalidade, quando a terra ocupada pelas comunidades chegava a 250 mil, 300 mil hectares, conforme estimativa dos técnicos do Incra – hoje as 1.200 pessoas habitam menos de 10 mil hectares.
As jovens lideranças quilombolas não perderam a relação com os heróis negros que permeiam a memória coletiva das comunidades. Esse passado está expresso em narrativas sobre personagens heroicos, como o líder quilombola Benedito Meia Légua, ou nos cantos rituais de manifestações como o Ticumbi e o Reis de Boi. No plano religioso, ainda que a Cabula e a Mesa de Santa Maria – cultos afro-brasileiros especificamente ligados ao passado escravo daquela região – tenham sofrido forte oposição da Igreja Católica, o culto a São Benedito, santo negro, mantém-se central no calendário festivo oficial.
Hoje, no Espírito Santo, 17 comunidades quilombolas têm processos em andamento no Incra para reconhecimento de suas terras. Destas, 14 estão entre São Mateus e Conceição da Barra. A maior parte delas encontra-se na fase de estudo pelo Incra.
Segundo o superintendente regional substituto do Incra no Espírito Santo, Laércio André Nochang, em Sapê do Norte nenhum processo foi finalizado. “Primeiro a comunidade faz o pedido, depois vem o estudo da Fundação Palmares. O Incra faz o estudo antropológico, a delimitação de áreas, lista o que tem dentro da área, quem são os ocupantes. Aí tem que identificar e notificar todos os ocupantes. Depois disso, vem a fase da Justiça. Quando vamos notificar a empresa ou o ocupante, ele já pode entrar com medida paralisando o processo. Se o juiz entender que é para paralisar o processo, a gente recorre. A Justiça pode também deixar o processo transcorrer normalmente.”
O superintendente afirma que a morosidade do processo decorre dessas diversas fases pelas quais ele precisa passar para que as comunidades sejam reconhecidas.
“Dentro do Incra, a morosidade ocorre pela pouca mão de obra que temos. Outra fonte de morosidade são as questões judiciais que ocorrem no decorrer do processo. Há diversos interesses ali, e o Incra e os outros órgãos medeiam isso”, salienta Nochang.
Hoje, existem três comunidades prontas para ser tituladas no estado: Retiro, em Santa Leopoldina, na região Serrana; São Pedro, em Ibiraçu, na região norte; e São Cristóvão, na região de Sapê do Norte. Naquela que tem o pedido mais antigo, Retiro, os moradores esperam desde 2004 pela posse da terra, e o processo está na fase de desapropriação dos imóveis.
A comunidade de São Pedro também está em fase de desapropriação e o território já se encontra parcialmente na posse dela. Foi celebrado Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU), que, segundo o Incra, tem a finalidade de garantir a posse aos quilombolas até a sentença definitiva, que permitirá à comunidade ter a titulação.
Únicas comunidades da região do Sapê do Norte com processo mais adiantado, Serraria e São Cristóvão, ambas em São Mateus, entraram com o pedido também em 2005. As terras estavam em fase de desapropriação, mas o processo foi suspenso pela Justiça. “Hoje, nós temos áreas que os quilombolas pleiteiam em posse da Fibria, onde ela tem plantios de eucaliptos, mas há também fazendeiros e outros pequenos ocupantes”, explica o superintendente do Incra.
A Pública também questionou o Incra sobre o motivo da suspensão dos processos de Serraria e São Cristóvão. O órgão não deu retorno.
Novos invasores
Além das dificuldades históricas, novos desafios estão surgindo para as comunidades quilombolas. De acordo com o procurador do MPF em São Mateus, Guilherme Garcia Virgílio, é possível perceber um movimento de pessoas que nem sempre são herdeiras de escravos para os territórios pleiteados pelos quilombolas. Segundo ele, há suspeitas de que estejam atuando no furto do eucalipto sem ser responsabilizadas por isso. “São pessoas em busca de terra. Isso tem aumentado, eles ocupam informalmente áreas das empresas ou acabam adquirindo pequenas áreas de quilombolas. Há também outros quilombolas vindos do sul da Bahia e do norte de Minas, mas que não têm direito a áreas no norte do estado”, avalia Virgílio.
É outro ponto de pressão em uma região já marcada pelos conflitos pela terra, diz o secretário de Estado de Direitos Humanos, Júlio Pompeu. “O furto de eucalipto tem aumentado. Mas nem sempre esse furto é praticado como mensagem política, de resistência das comunidades. Há outras pessoas disputando terras que não são quilombolas. É mais um problema para o movimento.”
Segundo ele, a situação mais complicada é em Linharinho, comunidade quilombola de Conceição da Barra cujo processo de reconhecimento, aberto em 2012, está em andamento, na fase análise de recursos administrativos. “Eles têm sofrido uma pressão grande de pessoas se agregando ao território, e nem todos são quilombolas. A lógica do conflito mudou, tem ficado mais plural. A violência na região tem aumentado pontualmente em torno da criminalidade comum, roubo, furto, ameaças, principalmente com pessoas que não são ligadas à causa. E ainda tem a questão da crise hídrica, que é outro ponto de tensão”, pontua Pompeu.
Sobre a atuação do governo na região, o secretário afirma que atua tanto na crise hídrica quanto na mediação de conflitos entre comunidades e empresas. “Nessas regiões, o projeto Reflorestar, de recuperação de nascentes, atua. A maior parte das ações do Reflorestar é na região norte, onde a crise hídrica é pior, e não só em território quilombola. Também temos discutido com a Fibria formas de consolidar a demarcação das terras. A empresa está disposta a fazer isso mesmo que eles tenham terras expropriadas. Mas elas também são indenizadas. Há territórios particulares cujos donos são arredios à negociação, e esse é outro desafio. Tem uma série de fatores complicadores, mas temos investido nisso, temos tentado”, garante Pompeu.
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