Só se fala disso nos jornais. Uma polarização ideológica, como há tempos não se via, divide os cidadãos. Amigos e familiares rompem laços imemoriais por causa de discussões políticas inflamadas. Caravanas de manifestantes tomam as ruas das principais metrópoles à medida que o debate se torna cada vez mais histérico. Em sinal de protesto, pessoas vestidas com camisas amarelas da seleção de futebol se dirigem às urnas para votar e marcar posição. Ao fim e ao cabo, triunfam os valores de centro-direita que supostamente se propõem a defender os interesses nacionais.
Não estou em São Paulo, Brasil. Estou em Medellín, Colômbia. Aqui, não são os escândalos de corrupção e a derrocada de um governo de centro-esquerda que acirram os ânimos e testam os alicerces da frágil democracia de um país sul-americano. O que está em jogo é o plebiscito que pode colocar fim a uma guerra de mais de cinco décadas entre o governo colombiano e os guerrilheiros das Farc. Um doloroso conflito armado que legou centenas de milhares de mortos, além de famílias destroçadas por sequestros e remoções forçadas de camponeses provocadas não só pelos guerrilheiros, mas também pelos grupos paramilitares criados para combatê-los.
Apesar das evidentes peculiaridades da conjuntura colombiana, é impossível não se surpreender com as semelhanças entre o clima do plebiscito pela paz e a atmosfera política do Brasil. Mesmo com a hipertrofia de informações (e desinformações) sobre o acordo entre as Farc e o governo do presidente Juan Manuel Santos, enxurrada que gerou a tal onda de ódio e polarização sem precedentes nas redes sociais e nos meios de comunicação, a verdade é que a maior parte da população – sobretudo a mais pobre – não se animou a participar de uma decisão tão importante para o futuro do seu próprio país.
Em outras palavras, assim como no Brasil, a temperatura das discussões políticas na Colômbia é particularmente mais explosiva entre as classes média e alta. Tanto é assim que somente 37,43% dos eleitores colombianos compareceram às urnas – diferente do Brasil, aqui o voto não é obrigatório.
Uma conversa despretensiosa com José, vigilante terceirizado de um parque turístico de Medellín, fornece algumas pistas sobre os motivos dessa apatia política. Ele trabalha 48 horas por semana para ganhar um salário mínimo, o equivalente a R$ 740 (a título de comparação, no Brasil, a jornada é de 44 horas para uma remuneração de R$ 880). Como estava de serviço no dia do plebiscito, não teve tempo para comparecer à zona eleitoral.
Pergunto a José se ele é a favor ou contrário ao acordo de paz. Deixando o constrangimento inicial de lado, ele afirma que não aprova os termos da proposta submetida à população e se mostra especialmente incomodado com a remuneração temporária que seria paga aos guerrilheiros, caso o “Sim” ao acordo de paz saísse vitorioso no plebiscito. Lanço o argumento de que o custo dessas “bolsas” seria bem inferior ao da continuidade da guerra e que, uma vez encerrado o conflito, os recursos públicos consumidos no combate às Farc poderiam ser enfim destinados a saúde, educação e habitação. Mas José não se convence e, como boa parte dos trabalhadores precarizados da Colômbia ou do Brasil, destila uma desesperança de cortar o coração.
Outro ponto relevante e controverso do plebiscito diz respeito à punição aos crimes de guerra. A instalação de uma espécie de “Comissão da Verdade”, em que seriam confessados assassinatos e sequestros, foi a solução acordada entre governo e Farc. Aqueles que admitissem os delitos não seriam automaticamente anistiados, mas condenados a penas alternativas. Os familiares das vítimas se dividiram: de um lado, os defensores de penas duras e exemplares contra os guerrilheiros. De outro, os adeptos do “perdão” em nome do fim do conflito. O presidente Juan Manuel Santos batia na tecla de que o acordo não era o perfeito, mas o possível.
O triunfo do “Não” no plebiscito pegou os colombianos de surpresa. As pesquisas de intenção de voto apontavam uma vitória relativamente tranquila do “Sim” e havia até quem insinuasse que o presidente jamais arriscaria gratuitamente seu capital político e que faria “o que fosse necessário” para garantir a aprovação do acordo de paz proposto por seu governo.
Hoje, no dia seguinte da inesperada vitória do “Não” por uma apertadíssima margem de 60 mil votos, os jornais colombianos já colocam em xeque a capacidade do presidente colombiano de conduzir o país até o fim do mandato e de aprovar pautas consideradas urgentes, como a reforma tributária. Nesse sentido, o grande vitorioso do plebiscito é Álvaro Uribe, ex-presidente colombiano e uma das principais lideranças de centro-direita do país, com base eleitoral em Medellín.
À primeira vista, o fato de a maioria dos colombianos haver recusado o acordo entre governo e Farc não significa que o processo de paz tenha sido sumariamente abortado. Lideranças dos guerrilheiros, além do próprio presidente da República, já vieram a público para dizer que continuam dispostos a negociar o fim do conflito. Mas, diante do recado das urnas, os termos de uma eventual novo acordo serão muito mais draconianos para os guerrilheiros, o que tende a dificultar um novo acordo.
Na minha visão, o plebiscito colombiano aponta para um contexto inexorável na América Latina: já não se trata mais de uma mera ascensão, mas de consolidação das forças de centro-direita, após conflituosos e traumáticos processos de disputa política e ideológica. A população pobre e precarizada, ainda que não envolvida visceralmente nos debates, parece pouco sensível a valores que pregam igualdade, tolerância, perdão – pelo menos, não na forma como as esquerdas tradicionais têm defendido. Os próximos anos serão instigantes, para dizer o mínimo.