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Jornalista fala sobre os limites da profissão na cobertura no front e conta de forma franca detalhes pouco conhecidos do público

Casa Pública
24 de julho de 2017
12:08
Este artigo tem mais de 6 ano

Acreditar que o jornalista “vai impactar o mundo” com seu trabalho é “uma balela”, afirma o jornalista Yan Boechat em entrevista à convidada da Pública, Adriana Carranca, colunista de O Globo. “Eu acho que os jornalistas, em alguns momentos, assumem esse papel por uma questão de vaidade”, avalia Boechat.

Com 20 anos de experiência e passagens pela Gazeta Mercantil, Valor Econômico, IstoÉ e portal IG, Boechat já esteve no Afeganistão, Ucrânia, Congo, Egito, Líbano, Venezuela, Angola e, agora mais recentemente, Iraque e Síria. Segundo ele, em ambiente de guerra, seja ele qual for, o jornalista “é instrumento de propaganda”.

Para ele, seu papel como jornalista serve de registro histórico. “Não tenho a menor expectativa de que fazer uma matéria possa gerar algum impacto na opinião pública, que vai gerar algum impacto em quem tem poder para parar o conflito. Acreditar nisso é falar que todos os outros repórteres antes da gente, que fizeram coberturas maravilhosas, falharam. Então, acho que é uma visão romântica e muito vaidosa da nossa profissão.”

Realizada na Casa Pública, no Rio de Janeiro, a entrevista abriu a exposição de fotos “A Batalha por Mossul”, cidade onde Boechat passou sete meses acompanhando a guerra entre o Estado Islâmico e as forças armadas iraquianas.

Adriana Carranca – Gostaria que você contasse como foi a sua chegada em Mossul. Com quem você estava, quem eram os soldados iraquianos e como a população os recebia? Ela se sentia salva do Estado Islâmico? Ou foi como mais uma fase da vida, que já passou por Saddam, pela invasão americana, pelo governo xiita?

Yan Boechat – A questão do Estado Islâmico passa muito pela questão sectária, que é um ponto fundamental para entender o seu surgimento e crescimento. Eu acreditava que a população ia, de certa forma, demonizar o Estado Islâmico, mas, conversando com as pessoas com mais calma, perguntando como era a vida no Estado Islâmico, quase 100% delas contam que a chegada do Estado Islâmico foi um momento de extrema alegria em Mossul, um momento de libertação. Só retornando um pouco: quando a Al-Qaeda estava muito forte no Iraque depois da guerra civil sectária, o grande ponto de força deles era exatamente Mossul. E em 2009 os americanos e as forças armadas iraquianas invadiram Mossul também para tentar destruir a Al-Qaeda. E houve uma presença militar xiita em Mossul. As forças armadas iraquianas são quase 100% xiitas hoje, com soldados recrutados no sul do Iraque, região predominantemente xiita. Durante os anos entre 2009, 2010 e 2014, com a chegada do Estado Islâmico, a população local de Mossul foi barbarizada. Torturas, assassinatos, extorsões, um período duro. E o sectarismo, que era uma coisa que não tinha tanta importância na época do Saddam, e todo o processo de arabização dos partidos Baath ganharam força. Então, os xiitas que chegavam a Mossul passavam a tratar esses cidadãos de uma forma muito agressiva. Quando o Estado Islâmico chega, no verão de 2014, as pessoas vão para a rua comemorar a libertação delas. “Finalmente alguém veio nos salvar” era o sentimento das pessoas.

Adriana Carranca – É, a gente não tem essa ideia de fora, de que existiu em algum momento apoio ao Estado Islâmico por causa desse sectarismo. Para quem não acompanha, xiitas e sunitas são duas linhas do Islã. Então, no caso do Iraque, são árabes que seguem ou a linha sunita ou a linha xiita do Islã. E você tem os curdos, que são sunitas, mas são outra etnia. Então, eles se separam ali.

Yan Boechat – Não árabes.

Adriana Carranca – Não árabes. Eles não são árabes. Então, também é outro grupo diferente dos árabes sunitas. Você acha que depois dessa retomada não vai haver, como já houve anteriormente, uma nova guerra sectária pela disputa desses territórios que estão sendo liberados?

Yan Boechat – Vai haver uma guerra sectária principalmente do Irã. O Curdistão, que é uma área que engloba uma vasta parte do norte do Iraque, vai fazer um referendo em setembro para declarar independência. E, com certeza, o governo iraquiano não vai aceitar isso, principalmente por causa de Kirkuk, que tem muito óleo. Vai ter uma briga ali, mas não sei se uma guerra sectária. Apesar da derrota militar do Estado Islâmico em Mossul, todo o status quo socioeconômico que permitiu sua criação se mantém. Nos últimos nove meses, novamente, as forças armadas iraquianas, compostas majoritariamente por xiitas, está massacrando a população civil.

“Tenho muito claro que nós, repórteres, em um ambiente de guerra (…), a gente é instrumento de propaganda”, diz Boechat (Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)

Adriana Carranca – Quer dizer, a guerra não acaba. E nem o Estado Islâmico.

Yan Boechat – Não, nem o Estado Islâmico. Claramente, como ele está perdendo vastas áreas, ele deixa de ser um protoestado. Mas a ideia do Estado Islâmico, que eu vejo muito mais como um levante sunita do que como um grande despertar para uma teoria, ou para uma ideologia islamo-fascista, vai continuar forte. E a gente vê isso em Mossul agora. Aqui não sai muita notícia porque é pobre matando pobre. Mas os atentados já começaram em Mossul, os atentados suicidas entre a população civil, as células adormecidas estão despertando. Enfim, vai ser o que era Mossul entre 2009 e 2014, até que algo maior surja e domine.

Adriana Carranca – Essa batalha de Mossul, como você acompanhou? Conte um pouco mais da sua experiência. O que você viu lá?

Yan Boechat – Eu sou um freela, o nome bonito que inventaram para jornalista desempregado. A gente tem que usar a grana que a gente tem para poder trabalhar. A gente ficava baseado em uma cidade que chama Arbil, que é a capital do Curdistão, que fica a mais ou menos 60 km de Mossul.

Para chegar a Mossul e acessar o front, você precisa de uma figura chamada fixer, que é o seu tradutor, também uma espécie de produtor, o cara que vai abrir caminho, que tem contato com os generais, coronéis. É o cara que dá uma grana ali por baixo: quando o cara vai na cidade, ele faz um negocinho e abre esse esquema. Sem esse cara, é muito difícil você conseguir entrar, até por conta da barreira da língua e das conexões que vão sendo criadas também com as forças armadas.

Então, para chegar a Mossul, a gente fazia um pool de repórteres para contratar esse cara, que é caríssimo. Mossul era uma guerra de fácil acesso. As redes internacionais estavam muito interessadas. Então, um fixer estava cobrando em média US$ 500 a diária para os repórteres freelancers, que é algo difícil. Então, você se juntava com dois, três, às vezes quatro jornalistas para conseguir ir.

Adriana Carranca – É muito impressionante como o Estado Islâmico conseguiu controlar uma cidade de quase 1 milhão de habitantes tão perto de Arbil [no Iraque].

Yan Boechat – Quatro milhões de habitantes, mas em outubro do ano passado tinha entre 1 milhão e meio e 2 milhões, estimativa da ONU. Por exemplo, eu sei que a Golden Division, que são as forças especiais, são uma operação para tentar tomar determinado bairro. E se sabe que essa operação vai ser interessante com pauta. Então, procurar um fixer que tenha uma relação boa com a Golden Division é importante, porque quando chegar, tem que ter a garantia de que vai conseguir um Humvees [carro militar] que está na linha de frente.

Adriana Carranca – Essa é outra questão: em uma guerra como Iraque e Síria, a gente tem que entrar com um dos lados sempre. Olhando para a guerra por um dos lados dessa guerra. Como é que você tentava se proteger disso?

Yan Boechat – Tenho muito claro que nós, repórteres, em um ambiente de guerra, seja ela qual for, cobrindo conflito no Rio, no Iraque, na Ucrânia, a gente é instrumento de propaganda. Achar que “eu vou lá e vou fazer uma reportagem!”, você vai descobrir que eles querem, de qualquer lado, que você veja só o que eles quiserem. Eu sei que estou sendo usado, eles querem me usar e vou tentar escapar. Por isso, prefiro não fazer matérias de teor político ou tentar dizer quem está ganhando ou perdendo porque não me sinto capaz de identificar o que está acontecendo. O que dá para ver e fazer é contar as histórias. Por exemplo, dá para perceber que os caras estão massacrando na sua cara. Isso dá uma matéria. Ou fazer uma matéria sobre como os snipers atuam. Prefiro uma visão de quem está na ponta, acho que é menos perigoso.

Adriana Carranca – Como você vê seu papel no conflito? Mossul, por exemplo, é a maior batalha em área urbana desde a Segunda Guerra.

Yan Boechat – Acho que a gente não muda nada. Acreditar que o jornalista é um cara que vai lá, dá voz aos sem voz, vai impactar o mundo, acho uma balela. Acho que os jornalistas, em alguns momentos, assumem esse papel por uma questão de vaidade também, entendeu? Acho que a gente é muito vaidoso e assume esse papel de que “não, porque eu vou lá…”. Não vai, e a gente sabe que não vai.

Adriana Carranca – Como é que você se vê lá?

Yan Boechat – Eu me vejo registrando a história. É um registro histórico, mas não tenho a menor expectativa de que fazer uma matéria como essa possa gerar algum impacto na opinião pública, algum impacto em quem tem poder para parar o conflito. Afinal, acreditar nisso é falar que todos os outros repórteres antes da gente, que fizeram coberturas maravilhosas, falharam. Acho que é uma visão romântica e muito vaidosa da nossa profissão. Na prática, o que vai mudar mesmo, o que vai impedir que isso aconteça, é quem está lá no poder e são os interesses econômicos.

Adriana Carranca – Como é sua seleção do que vai contar na história?

Yan Boechat – Como é que eu penso, né? Esse é um assunto extremamente complexo para o Brasil, para o brasileiro médio, e a culpa não é do brasileiro médio. As pessoas tendem a acreditar que o Oriente Médio é uma área homogênea, que as pessoas estão se matando entre elas e é assim mesmo. E é difícil entrar nessa complexidade em matérias para o Jornal da Band, por exemplo, ou para a Folha de S.Paulo. O que tento fazer é pegar temas que são universais e conseguir criar uma conexão com o leitor. A questão dos civis é uma questão universal. Fazer uma matéria sobre uma mulher yazidi que foi escrava sexual é um tema universal. Ou a história de um menino que morava com a família em três casas, 25 pessoas, só que os americanos bombardearam, morreu todo mundo, e ele teve que enterrar a família no quintal de casa. A minha maior intenção é tentar fugir desse discurso maniqueísta de que o Ocidente está lutando contra o Estado Islâmico em Mossul, o Estado Islâmico é o grande demônio e vamos fazer tudo para acabar com ele. E, ao mesmo tempo, se você pegar Alepo, o mundo se chocou com Alepo, com o que as forças sírias e russas fizeram lá. Mas o inimigo lá também era o Estado Islâmico e Al-Qaeda. E a atuação de Alepo e Mossul é a mesma: foram ataques aéreos maciços em áreas densamente povoadas. Acho que tentar quebrar essa narrativa, que é hegemônica, é um dos objetivos.

“O que tento fazer é pegar temas que são universais e conseguir criar uma conexão com o leitor”, explica o jornalista sobre a maneira como constrói suas reportagens (Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)

Adriana Carranca – É uma tentativa de impactar com a informação. Você não está só registrando…

Yan Boechat – Claro. Impactar, sim, mas eu não acredito na capacidade de mudança dessa maneira, entendeu?

Adriana Carranca – Você muda o entendimento…

Yan Boechat – Certo. Vou dar um exemplo: o menino Aylan [criança Síria que morreu afogada na Turquia ao fugir do conflito com a família].

Adriana Carranca – O Aylan, que morreu em 2 de setembro de 2015.

Yan Boechat – E o mundo ficou chocado com ele: “Tem que parar a guerra, que coisa horrível!”. Meses depois a União Europeia fechou um acordo com a Turquia para ninguém atravessar mais e está todo mundo morrendo lá. Cenas daquele menino morto ali são… Lá em Mossul a gente viu cenas dez vezes piores e que ninguém quer publicar. Porque é feio, é bem feio. Então, acho que o nosso papel como jornalista nesse jogo todo é fazer um registro histórico. E é isso que me move.

Adriana Carranca – Como é que você tenta não fazer parte dessa manipulação, dessa propaganda? O Estado Islâmico tem uma máquina de propaganda que disseminava imagens sempre colocando-os com muito poder, mas imagens de atrocidades, também, que serviam à imprensa. Como é que você tenta fugir desses estereótipos? Não ajudar a demonizar o Estado Islâmico ou não ajudar a potencializar a propaganda de um outro lado?

Yan Boechat – Acho que a melhor maneira de tentar reduzir o maniqueísmo e tentar reduzir esses estereótipos é contextualizar historicamente todos esses movimentos. Tento explicar que o Estado Islâmico é resultado não só de uma loucura religiosa, é resultado de uma questão socioeconômica, geopolítica, sectária. Às vezes é difícil você fugir de ser instrumento de propaganda porque as pessoas raramente contam, mas o nível de controle e de censura em um ambiente de guerra é imenso. Teve o caso do fotógrafo iraquiano na Der Spiegel que publicou as fotos de tortura dos soldados iraquianos contra civis sunitas em Mossul. A gente viu um monte de gente apanhar. E quem é que tem coragem de fotografar? Porque vão tomar sua câmera, vão destruir a sua câmera. Você viu pouquíssimas imagens de soldados feridos na guerra porque havia uma lei que dizia claramente que iriam atirar na câmera de quem fotografasse um soldado. E ninguém teve coragem de fazer uma matéria sobre isso, porque, se fizesse uma matéria sobre isso, você iria ser banido do front.

No dia a dia, as pessoas têm um controle absurdo de tudo. Um exemplo: em novembro, eles perderam muitos homens porque tentaram fazer um avanço rua a rua sem utilizar a artilharia. Eles não queriam fazer como em Alepo e tiveram uma taxa de mortos e feridos entre as forças especiais que passou de 35%, uma maluquice. Força especial tem 2%, 3%, 4% de taxa de causalidade. O que eles fizeram? Eles fecharam Mossul para a imprensa inteira. Nem a rede CNN entrou em Mossul em dezembro. E desceram bordoada na população. Eu voltei para o sul no final de dezembro…

Adriana Carranca – Mas você conta isso nas suas reportagens, que às vezes você não tem imagem, mas você contextualiza…

Yan Boechat – Eu conto isso, mas não tem a mesma força sem imagem. E, por exemplo, por que é que as grandes redes não fizeram grandes reportagens sobre isso? Essa é uma discussão que a gente tinha lá.

Adriana Carranca – E por quê?

Yan Boechat – Porque não faz parte da agenda, não faz parte do jogo. O jogo não é esse. Aí os freelancers: “Ah, eu vou fazer, eu vou fazer”. Então o cara fez lá – acho que na Foreign Powers – e foi banido. Não entrava mais no front. Todo mundo ficou com medo: “Eu vou fazer também?”. E aí acabou a história. É complicado.

Otília Quadros – Você colocou em algum momento que o papel do jornalista é um papel mais histórico. Acho um pouco ingênua essa colocação, porque acho que cria, sim, impacto no público médio, nos traz uma realidade que nós não vivenciamos e causa na gente um desejo de buscar conhecimento.

Yan Boechat – Concordo plenamente com você. Acho que gera impacto e pode gerar uma onda de ações para uma série de coisas. O ponto é que digo que não acredito que vá gerar impacto suficiente para acabar ou minimizar essas situações.

Se a gente voltar para o Vietnã e as coberturas que foram feitas pelo Seymour Hersh, mostrando os assassinatos de civis que as forças armadas americanas promoveram no Vietnã, as coberturas que foram feitas na Guerra da Bósnia, as coberturas que foram feitas na primeira invasão americana… Nada disso foi capaz de gerar um impacto que reduzisse os danos no futuro. Esse é o meu ponto, entende? Nada disso minimizou o sofrimento da população civil mais fraca em nenhuma outra guerra que veio.

Adriana Carranca – Mas talvez essa seja a discussão: como impactar? Eu acredito nesse impacto da imprensa. Acho que a gente talvez mude um pouquinho e, às vezes, não muda. O Vietnã é um grande exemplo. Os repórteres que cobriram tinham uma intenção de acabar com a guerra. Então, talvez a diferença é que hoje a gente tem tanto acesso, tem tantos jornalistas lá…

Yan Boechat – Mas não acho que é questão de volume de informação, porque, se você olhar o que aconteceu no Vietnã e mesmo os protestos antiguerra de 1968, por exemplo, a guerra só foi acabar em 1974 porque houve uma derrota militar.

Não foi um movimento político interno que acabou com a Guerra do Vietnã. Foi porque o Vietnã do Norte conseguiu invadir Saigon e os americanos tiveram que fugir. Então, é claro que eu gostaria de acreditar que a gente é capaz de ter a força de mobilizar o bastante… Simplesmente não acredito nisso olhando os registros históricos, entendeu? Porque as guerras que vieram e que estão acontecendo agora são ainda mais brutais. Os caras estão lançando B-52 em Mossul. B-52!

Adriana Carranca – A gente teve talvez um entendimento a partir da Segunda Guerra com a criação de leis internacionais, toda a legislação, das leis humanitárias…

Yan Boechat – Mas não são respeitadas por ninguém.

Adriana Carranca – Como a gente consegue mudar se, como você está dizendo, a gente não tenha essa capacidade?

Yan Boechat – Acho que os níveis de luta para a mudança são outros. Uma tentativa de criminalizar o Tony Blair e o George Bush por crimes de guerra. Essas são ações mais efetivas.

Adriana Carranca – Você está falando muito dessa questão da vaidade, que existe muito no trabalho, no jornalismo, que é uma coisa difícil de lidar. E a gente tem uma guerra acontecendo na Síria e no Iraque, com muitas mortes. E você tem a América Latina, com 400 mortos por dia; você tem o Sudão do Sul, com 1 milhão e meio de refugiados, agora em Uganda. Por que é que também a cobertura não é equilibrada?

Yan Boechat – Acho que, primeiramente, é uma questão de discutir o que é notícia. É triste dizer isso. Claro, a vida humana tem o mesmo valor em todos os lugares. Mas, se você for pensar, a guerra do Oriente Médio é uma guerra que impacta o mundo de uma forma muito mais global do que a crise no Sudão do Sul.

Adriana Carranca – Mas é uma tragédia…

Yan Boechat – Eu não estou discutindo o tamanho da tragédia, estou discutindo o que é notícia e como a gente determina o que é notícia. É claro que é uma tragédia, imensa, terrível. Essa não é a discussão. Esse é um ponto. Acho que a guerra no Oriente Médio é uma guerra que tem questões mais universais para o mundo ocidental. O terrorismo que sai do Oriente Médio impacta os grandes centros do mundo, e o número de pessoas influenciadas pelo que acontece no Oriente Médio é muito maior do que acontece no Sudão do Sul. Não que o Sudão do Sul não seja uma tragédia tão grande ou maior.

Adriana Carranca – E deveria ser notícia também.

Yan Boechat – Acho que são duas discussões diferentes. Estou falando, olhando pragmaticamente, o que é notícia. Esse é um ponto importante. O segundo ponto é o seguinte: pelo fato de não atrair tanta atenção do mundo, a grande imprensa também não tem tanta atenção. Um repórter freelancer que vai para o Sudão do Sul vai fazer uma, duas, três matérias, porque aquela não é uma história para a agenda. Então, essas são questões muito práticas da vida que acabam reduzindo a cobertura. A outra é que o acesso ao Sudão do Sul é muito mais difícil que o acesso ao Oriente Médio. Então, no final das contas, economicamente falando, é mais fácil cobrir o Oriente Médio. Se a gente for entrar na questão do tamanho da tragédia, outras histórias que não são cobertas também precisam entrar.

Boechat sobre a função da imprensa ao reportar guerras: “Acho que nosso papel como jornalista nesse jogo todo é fazer um registro histórico. É isso que me move” (Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)

Adriana Carranca – Como é a questão da segurança? Como é que você se protege ou tenta minimizar os riscos de estar em uma cobertura de guerra?

Yan Boechat – Depois de 2011, das mortes dos vários freelas na Líbia, se iniciou um processo para que os freelancers começassem a se preparar mais para encarar a guerra. Uma série de protocolos e cursos de treinamento foi criada. Por outro lado, o fato de você ser freelancer e não ter grana faz você correr mais riscos. “Pô, a gente sabe que vai ter um ataque aéreo. Eu já gastei US$ 300 aqui. Eu vou voltar para casa sem esse ataque aéreo?”. Estava fazendo uma matéria, paradinho ali e tal, botando o meu capacetinho, veio um morteiro e “zum”, caiu a cinco metros da gente. Mas a sorte é que caiu dentro do motor de um carro, e aí jogou todo mundo no chão, aquele negócio e tal. E eu estava em uma área teoricamente segura.

Em outro caso, eu precisava fazer uma matéria sobre o ataque à Universidade de Mossul. Pegamos o fixer, chegamos lá no ponto de partida dos Humvees, não tinha mais lugar para mim. Aí o fixer: “Pô, tentei, não deu, mas tenho uma solução. Vai junto com a TV iraquiana”. E a TV iraquiana tinha uma van sem janela, botaram um plástico. E disse: “Mas e aí? E se o sniper começar a atirar?”. O fixer: “Nada, não atira, não. Eu estou fazendo isso há não sei quanto tempo, é tranquilo”. E dentro da van tinha ainda um galão de gasolina para poder ligar o gerador. O cara vai ou não vai? Reza e vai.

Adriana Carranca – Conte um pouco das histórias que você teve com esse personagem tão importante, que é o fixer. Basicamente a quem a pessoa confia a vida, porque eles é que conhecem a realidade local, eles é que dizem “aqui pode ir, aqui não pode”.

Yan Boechat – O fixer tem de tudo, né? Tem milhões de histórias. É sempre o elo mais fraco da cadeia porque você pode ir embora e ele não vai. No caso do Afeganistão, muitos fixers tiveram muitos problemas.

Adriana Carranca – Muitos foram mortos.

Yan Boechat – Muito foram mortos, outros tiveram filhos sequestrados, enfim. No Iraque é mais fácil porque os fixers em geral são curdos, estão longe do pessoal do Estado Islâmico. É mais seguro para eles em algumas regiões, em outras, não. Agora, fixer tem que tomar cuidado, exatamente, porque ele está querendo fazer dinheiro, né? Acho que esses conflitos éticos são medidos caso a caso. Às vezes, sinto que algumas pessoas têm uma tendência a olhar essas situações com valores éticos que não conseguem ser aplicados em um campo de guerra, entendeu? Parece ser um pouco duro isso que estou querendo dizer, mas é que ali não é um jogo para criança. Cada um tem que tomar conta do seu nariz também. E, às vezes, o jornalista força muito a barra, e em alguns casos o fixer força muito a barra.
Antes não tinha fixer, né? Não existia esse mundo do fixer. Ele é um mundo relativamente novo se você for pensar. Tinha o tradutor e tal. E também o acesso. Por que é que tem muito freelancer hoje? Não é só a precarização dos meios de trabalho. É porque ficou barato ir para a guerra, ficou fácil cobrir guerra.

David Haus – Quais são os limites que você vê sendo impostos sobre jornalistas na cobertura de guerra. E isso tem mudado ao longo da sua carreira?

Yan Boechat – Eu acho que o papel da imprensa e o papel das redes sociais fizeram com que as forças armadas e os grupos militares ficassem muito mais atentos ao controle do que vai sair do lado deles. O soldadinho ali sabe que fazer uma foto de um soldado iraquiano estraçalhado é ruim. Por um lado, você começa a ver casos em que os jornalistas e os soldados começam a ficar muito próximos também, e vão perdendo o limite disso. Tenho uma foto de um soldado sendo carregado morto. Essa foi a única foto que fiz, foi o único dia em que consegui fotografar soldado. Acho que isso aconteceu porque ficamos presos numa área em que os snipers não podiam sair. Chegou um monte de gente ferida. Nós, jornalistas, ajudamos as pessoas, pegamos compressas tentando parar de sangrar os feridos. E, meio que de repente, eles nos viram como parte daquela unidade, entendeu? O controle é total. Se você fugir da narrativa, é complicado.

Adriana Carranca – Você teve a experiência de cobrir o lado da Síria pelo lado do governo. Sob que ótica o governo lhe permitiu olhar essa guerra?

Yan Boechat – Isso é interessante. Se você for para a Síria hoje, para área controlada pelo Assad, tem que seguir uma série de protocolos que são complicadíssimos e absolutamente terríveis. O primeiro deles é: você pede visto. E aí espera até o fim da vida para conseguir o visto; esperei três anos. Você tem que se registrar no Ministério da Informação e, quando você entra, o Ministério da Informação aloca uma pessoa, um tradutor. Esse tradutor, obviamente, é um minder, um agente do governo que vai te censurar em várias coisas e guiar você dentro do país. Você fica com ele 24 horas por dia. O único lugar em que ele não dorme ao seu lado é em Damasco, em que você pode pegar um hotel e ficar na parte do governo. Dá para sair para tomar uma cerveja sem o cara encher o saco, basicamente. Mas ele quer saber onde é que você vai e liga o tempo todo. Você sai de Damasco, esse cara gruda em você. Você tem que ficar no hotel deles. Você não pode atravessar a rua sem ele, não pode fazer nada sem ele. A minha experiência foi boa por uma razão: eu já sabia de tudo isso. E falei: “Eu não vou tentar fazer uma matéria dizendo que o Assad é um terrorista canalha que vai matar todo mundo, porque essa matéria não vai existir. Não vou conseguir fazer essa matéria dentro da Síria”. Você ganha dez dias, no máximo, e não consegue fazer nada. E é uma situação assim: se você os desagrada em qualquer coisa, “tchau, vai embora”. O controle é total, talvez seja pior do que na Coreia do Norte.

Adriana Carranca – E o que você conseguiu ver nessa sua ida?

Yan Boechat – Eu fui interessado em tentar entender como é que aquele país vivia o dia a dia. Como é que é ir no supermercado? Como é que é ir na boate? Captagon é um remédio que os soldados do Estado Islâmico tomam para ficar pilhado. E na noite de Damasco é o que existe. Cheio de inferninho, de música eletrônica e a molecada mandando Captagon.

Adriana Carranca entrevista Yan Boechat na Casa Pública (Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)

Adriana Carranca – E você sente um apoio ao Assad? Eles conseguem ler o que se fala sobre o Assad fora?

Yan Boechat – Sim, tudo. E criticam o Assad internamente também ou sabem o que se fala do Assad. Veem tudo, tudo liberado. A única coisa que você não consegue é fazer transação bancária. Você não consegue comprar nada com o cartão de crédito em alguns lugares. O resto é liberado. Tem essa coisa do secularismo, que eles defendem muito: “Nós somos seculares”. E eles entendem que o país sofre uma intervenção internacional, que essa não é uma guerra síria, é uma guerra internacional. Isso é muito claro para eles. E eles entendem que não há alternativa ao Assad hoje na Síria, que ele é necessário. Mas, ao mesmo tempo, as pessoas sabem que o Assad já não manda nada na Síria. Quem determina o futuro da Síria é o Irã e a Rússia. Ele é um puppet lá.

Leda Balbino – Você comentou aquela situação em que vocês ficaram presos etc., você fazendo compressa nos soldados feridos que você ajudou naquele momento. Como você se protegeu emocionalmente?

Yan Boechat – Eu sou meio estranho. Eu não me abalo muito. Eu consigo lidar bem com essas situações de gente morrendo, gente gritando, criança morta. Eu sei que é horrível e tal, mas eu consigo manter uma relação, não sei se distante ou… Eu não tenho problema com isso. Eu não sonho, não penso, não mexe comigo…

Adriana Carranca – Essa decisão das fotos. Qual é esse limite de que imagem…

Yan Boechat – É que não quiseram publicar. Para mim, não há limites. Acho que deveria mostrar tudo. Algumas fotos têm umas paradas meio feias e tal. Tem um cara chamado Gilles Peress, que é um fotógrafo francês que cobriu o genocídio de Ruanda e fez um livro só com as fotos que não quiseram publicar. É um negócio horrível mesmo, assim. E eu acho que na guerra a gente tem uma estética… E a gente não mostra muito o feio.

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