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Uma avó não consegue buscar os netos na escola; duas mães que perderam seus filhos – um era trabalhador, outro traficante. Os repórteres Alejandra S. Inzunza e José Luis Pardo acompanharam as agruras dos moradores do complexo carioca, onde acontece um tiroteio a cada 30 horas

Crônica
29 de setembro de 2017
13:23
Este artigo tem mais de 6 ano

Durante os primeiros três meses do ano, no Rio de Janeiro choveu em média um dia a cada três; no Complexo do Alemão, umas das maiores agrupações de favelas da cidade, a média de tiroteios foi de um a cada 30 horas. Todas as manhãs, dona Marta*, em vez de olhar para o céu para ver se ela tem de levar um guarda-chuva, se concentra para ouvir se há tiros lá fora. A porta da sua casa, uma modesta construção de cimento onde vivem dez pessoas – entre filhos, sobrinhos e netos –, é fechada com uma corda porque uma bala arrancou a fechadura. O portão da igreja vizinha está salpicado de impactos de balas de diferentes calibres. Nos últimos meses, dona Marta, uma senhora de 81 anos com grandes olhos escuros e cabelos com poucas mechas brancas, agregou um novo passatempo à sua fixação por telenovelas: recolher cápsulas de balas em uma casca de abóbora como aquelas de Halloween. São restos dos enfrentamentos entre policiais e traficantes.

No Complexo do Alemão a média de tiroteios foi de um a cada 30 horas (Foto: Alan Lima/Agência Pública)

Os habitantes do Alemão usam termos parecidos com os das guerras do Iraque e da Síria para descrever o seu dia a dia, mas o que se vê parece mais uma guerrilha urbana, com pistolas, fuzis e algumas metralhadoras: os policiais avançando pelas ladeiras e os becos e os traficantes respondendo detrás de muros construídos como trincheiras; ou, então, os traficantes disparando contra a base e os policiais respondendo, às vezes dentro das casas dos próprios moradores. Isso ocorre quase todo dia: houve troca de tiros em 71 dos primeiros 90 dias do ano, segundo o Papo Reto, um coletivo que defende os direitos humanos dos habitantes do Alemão.

Para quem não está acostumado a escutar disparos, é difícil distinguir um tiroteio de fogos de artifício. Mas os habitantes do Alemão desenvolveram a habilidade de calcular a que distância se produz o enfrentamento. Isso significa a diferença entre deitar debaixo da cama ou continuar vendo televisão; refugiar-se em um quarto nos fundos da casa ou ir comprar pão; fazer uma pausa na sua vida ou continuar com as responsabilidades cotidianas. Seu maior medo é que uma bala perdida os mate. Ou, então, um tiro à queima-roupa.

Os moradores do Alemão desenvolveram a habilidade de calcular a que distância se produz o enfrentamento (Foto: Alan Lima/Agência Pública)

Os disparos contínuos interrompem a vida de todos. Começam depois das 6 da manhã, quando Rosa* se dirige ao seu trabalho, como caixa de banco, e novamente quando ela volta para casa às 4 da tarde. Às vezes recomeçam na hora de jantar, quando Daiene Mendes, estudante de jornalismo, vai comprar uma pizza com uma amiga; outras, enquanto dona Helena* serve cervejas no bar – e então ela e os seus clientes têm de se esconder na despensa. Os tiroteios voltaram com força no primeiro trimestre do ano, quando nós conversávamos com Marcos Valério Alves – o Marquinho do Pepé –, líder de uma associação de moradores. Ele dizia que os habitantes são “reféns de uma guerra suja que não é sua”, enquanto quatro senhores continuavam sua partida de dominó sem se importar.

Os disparos contínuos interrompem a vida de todosv(Foto: Alan Lima/Agência Pública)

“No Rio de Janeiro não há um só dia sem tiros. Tem dias sem vítimas – poucos, mas tem”, diz Cecília Oliveira, criadora do Fogo Cruzado, uma plataforma digital que monitora os disparos no estado. Em 5 de fevereiro deste ano, o aplicativo registrou um enfrentamento no Alemão que se prolongou por quase cem horas.

Numa tarde de março, nós acompanhávamos dona Marta quando o tiroteio começou. Ela caminhava de mãos dadas com um de seus netos depois de buscá-lo na escola e se sentou a uma das mesas de plástico de um pequeno bar no meio do caminho entre a sua casa e a base policial,  levando a mão trêmula ao rosto. “Sempre que isso acontece, eu não sei o que fazer. Se eu me movo, fico nervosa; se fico parada; é pior”, diz. Os disparos ressoavam entre ela e os outros netos, que a esperavam no colégio. Os clientes do bar se levantaram indignados. Raul Santiago, fundador do coletivo Papo Reto, está entre eles. “Os tiros sempre começam quando as crianças saem da escola!”, reclama.

Os clientes do bar concordam: o tiroteio das 16h é o terceiro que normalmente sofrem em um dia. Sua teoria é que eles sempre ocorrem quando há mais pessoas nas ruas.

Todos permanecem no bar, ninguém sai correndo para se esconder. Um homem que recolhe o lixo mostra um enorme depósito de água vazio. Não se lembra da última vez que o encheram. Está todo esburacado com marcas de balas.

O enfrentamento durou uns 15 minutos. Mal o som dos disparos terminou, dona Marta agarrou o neto pela mão e seguiu seu caminho.

Do feudalismo ao conflito

As casas da rua 7 de Setembro, em Nova Brasília, uma das 13 favelas que compõem o Complexo do Alemão, se diferenciam entre si pelas cores, mas têm em comum os buracos de bala. Um homem fuma um cigarro na janela de um edifício branco adornado com desenhos tricolores do Fluminense. Na casa ao lado, uma placa diz “Vende-se”. Uma senhora aparece pela porta da sua casa, de fachada verde, que tem impactos de até 5 centímetros de diâmetro. Os meninos colocam a mão dentro dos buracos para medir o tamanho. Do outro lado da rua, um grafite na calçada adverte: “Polícia vai morrer”.

As casas da rua 7 de Setembro, em Nova Brasília, uma das 13 favelas que compõem o Complexo do Alemão, se diferenciam entre si pelas cores, mas têm em comum os buracos de bala (Foto: Alan Lima/Agência Pública)

A rua abriga uma das Unidades Pacificadoras da Polícia Militar (UPP) e, na rua ao lado, fica um dos bastiões do Comando Vermelho. O Alemão é considerado pelas autoridades o quartel-general do Comando Vermelho, a maior organização criminosa do Rio. É uma das oito UPPs do Complexo, implantadas em 2010 com ajuda das Forças Armadas. Sete anos depois da implantação, a UPP não trouxe a paz.

Ao longo deste ano, houve diversos protestos dos moradores que vivem no Alemão (Foto: Alan Lima/Agência Pública)

Ao longo deste ano, houve diversos protestos nos quais moradores reclamam porque passaram de vítimas de um sistema feudal a vítimas do que consideram uma guerra. Marquinho do Pepé, da associação de moradores Palmeiras, é um dos líderes. Tem 49 anos e 25 filhos. Usa óculos fundo de garrafa e no pescoço, dois colares grossos. Nos dedos, três anéis. No pulso, uma pulseira. Tudo de prata. Veste bermudas e chinelos. Mora no Alemão “desde o primeiro sopro de vida”, o que significa mais da metade do tempo de existência do Complexo, fundado há menos de um século por Leonard Kacsmarkiewcz, um polonês que comprou um terreno dos agricultores na zona norte do Rio e acabou confundido com um alemão.

Segundo o Censo de 2010, moram hoje cerca de 70 mil pessoas no Alemão – mas as associações dobram essa cifra.

Entre as ladeiras dos morros, há ruas batizadas em homenagem aos seus fundadores, como Santa Teresinha, irmã do polonês fundador. Outras têm nome das ruas do México, como Yucatán, porque foram construídas durante a Copa de 1986. O domínio e a violência do Comando Vermelho também contribuíram para a nomenclatura: Inferno Verde, Zona do Medo…

Segundo o Censo de 2010, moram hoje cerca de 70 mil pessoas no Alemão (Foto: Alan Lima/Agência Pública)

No fim dos anos 1980, quando Bentto Fabio, um fotógrafo do coletivo Papo Reto, tinha apenas 3 meses, seu irmão foi assassinado com outros traficantes. Desde então, o lugar da matança é conhecido como Largo da Morte. “Agora a minha mãe tem outro filho que também está entre os tiroteios, mas na outra trincheira”, diz Bentto. O Largo da Morte é desde 2011 uma das estações do teleférico do Alemão, a inversão mais simbólica da política de pacificação falida. Com apelo turístico, ele não funciona há um ano.

Marquinho do Pepé estava indignado com o ex-comandante da UPP Nova Brasília, major Leonardo Gomes Zuma. “Não sei onde está o juramento dos policiais de servir e proteger, porque eles fazem todo o contrário. As pessoas têm medo de falar para não sofrer represálias. Eu já superei o medo: sou negro, pobre e favelado”, disse. A primeira vez que nos vimos, ele se lembrava de que, durante oito meses depois da ocupação militar que implantou as UPPs, não houve um só disparo no Alemão. Até 2013, as coisas estavam relativamente bem.

Porém, no meio da entrevista, começou um tiroteio. Dava para ver uma coluna de fumaça perto da sede da UPP. Estávamos a 500 metros, distância suficiente para que nas ruas sob a ladeira a vida continuasse. “Os primeiros comandantes diziam: ‘Sabemos fazer a guerra muito bem, mas estamos aqui para trazer a paz’. E cumpriram. Mas logo mudou o comando, porque para eles interessa essa guerra. É preciso perguntar por quê. Quem ganha com isso? Não é o morador. Tínhamos um projeto social com mais de mil jovens e crianças. Agora já não sobrou nada. Deste projeto, 99% dos meninos hoje se dedicam ao tráfico”, concluiu Marquinho.

Otelo na favela

 Em uma manhã, o professor de teatro Veríssimo Junior da Lage explicou Otelo aos seus alunos da Vila Cruzeiro, uma favela vizinha ao Complexo do Alemão, espécie de satélite que sofre os mesmos problemas.

Para que os adolescentes entendessem a obra de William Shakespeare, tentou uma parábola futebolística. Veríssimo disse que Otelo era técnico de uma equipe e que Iago e Cássio lutavam para ser o capitão. No meio da explicação, uma aluna o interrompeu: “Professor, a história de Shakespeare é muito boa, mas seu exemplo é muito ruim. Posso dar outro exemplo?”.

Nos paralelismos da aluna, Otelo era o dono do morro e Iago e Cássio disputavam para ser o número dois na estrutura do crime. Otelo formava uma quadrilha para a guerra em Chipre contra os turcos – ou um conflito com uma facção rival. Os turcos naufragavam (os inimigos da outra facção morriam). E se celebrava uma festa em Chipre em homenagem a Otelo: um baile funk em uma favela.

 Veríssimo chama seus alunos de “Hércules” pelas provas que têm de superar para chegar à escola. Muitos dias a sala fica meio vazia porque os meninos ficam em casa devido a enfrentamentos. Em outros, o tanque blindado da polícia, o caveirão, estaciona na porta do colégio. Veríssimo diz que também já viu policiais armados entrando na escola para buscar um aluno que, segundo eles, estava metido com o narcotráfico. Às vezes, os disparos começam no meio da aula, e as mães vêm correndo buscar os filhos.

 Em 2016, segundo a Secretaria de Educação do Rio de Janeiro, em somente 43 dias nenhuma escola foi fechada por causa da violência.

 “Eu creio que esses meninos e meninas não merecem nossa caridade, mas nossa solidariedade e, sobretudo, nossa admiração. No contexto de urgência em que vivem, desenvolvem um pensamento muito complexo, com o qual deveríamos aprender”, diz na sua casa, sentado sobre uma almofada no chão e rodeado de uma dezena de estátuas de orixás. “Os que estão na frente de guerra têm direito a improvisar.”

 Sem jamais ter pisado no morro, a professora Daniela Azini começou a trabalhar há cinco anos em uma escola pública de Vila Cruzeiro. Tudo que sabia vinha da imprensa e da televisão. Seus familiares e amigos de Botafogo, na zona sul, temiam pela sua segurança.

Mas, durante os dois primeiros anos e meio, Daniela não escutou nenhum disparo. Os alunos avisaram que, quando chegasse a Copa do Mundo de 2014, o panorama ia mudar. Ela não acreditava. Havia ido todas as manhãs à escola sem preocupações e via os agentes da UPP caminharem tranquilamente pelas ruas. Até que um dia, às vésperas do começo da Copa do Mundo, um dos alunos lhe trouxe uma cápsula de bala. Na noite anterior havia ocorrido um tiroteio. Assim o horror foi entrando em sua vida.  “Agora, quando falo de pacificação, faço isso entre aspas, porque a minha opinião mudou muito”, diz.

Pouco depois da Copa do Mundo, o dono do morro, Elias Maluco, fechou a escola por um dia em sinal de luto porque um traficante tinha morrido. Nesse mesmo ano, Daniela se uniu à página de Facebook que uma moradora da Vila Cruzeiro criou para avisar onde e quando havia tiros. Ela se uniu também a grupos de WhatsApp nos quais moradores trocam informações e se organizam para garantir sua segurança. Em 2015, voltava com os seus alunos de uma visita a um museu quando ocorreu um intenso tiroteio. No ano passado, voltou chorando, com um ataque de nervos, porque os disparos haviam soado muito perto. “Me sinto muito unida à comunidade. O único momento em que eu tenho medo de dar aulas na favela é quando começam os tiros”, diz. Quando os disparos se iniciam, Daniela desce do terceiro piso, onde dá aula, até um quarto no térreo. É o melhor lugar para se proteger, por causa da espessura da parede. Ela tenta tranquilizar os alunos. Mas, se os tiros chegam perto, são os alunos que tentam acalmá-la.

Desde crianças, os estudantes lidam com as balas, com homens armados na rua, operações policiais e pessoas feridas pelos tiroteios. Há poucos lugares para escapar dessa tensão. Desde o começo do ano, a estudante de jornalismo Daiene Mendes lamenta no seu blog que o centro cultural, social e esportivo da favela La Grota, construído antes dos Jogos Olímpicos, está fechado por falta de dinheiro para manutenção; que a Biblioteca-Parque, que funcionava em uma das estações do teleférico, também está fechada e ocupada pela polícia; que uma clínica de família, que operava em uma das partes mais altas do Complexo, fechou por motivos de segurança. “É o legado do abandono”, escreveu ela.

A terapeuta da comunidade

Em todo o Complexo não existe um centro de atenção psicológica para os moradores. Mônica Cirne é o que mais se aproxima disso – embora a fisioterapeuta cuide apenas do corpo dos moradores.

Nas salas do Instituto Movimento e Vida, uma clínica de fisioterapia para ajudar os moradores do Alemão, se veem brinquedos pelo chão. “Para mim chegam as consequências dos acontecimentos”, diz. São os pacientes da violência: crianças com paralisia facial, jovens de 14 anos com diagnósticos de derrame cerebral, hipertensos, diabéticos, infartados, entre outros… “Eu tenho uma pirâmide dos casos que trato e, na parte mais larga, estão as doenças neurológicas motivadas pelo estresse”, diz a terapeuta, de olhos aumentados pelos óculos. Ela também auxilia moradores com fraturas ou com sequelas de tiros.

É a única pessoa que atende gratuitamente, há uns dez anos, os habitantes do Complexo. Mônica tem uma fila de espera e atende 18 pessoas por dia, duas vezes por semana. “Todo mundo que tem qualquer problema e necessita de reabilitação física me procura, seja porque recebeu um tiro ou se caiu de um telhado. Todos vêm ver a Mônica, mas Mônica está velha e cansada”, diz. Se alguém tem uma doença, ela lida com as sequelas. Entre os seus pacientes há pessoas com câncer, crianças com hidrocefalia, filhos de viciados de crack. Quando está em casa e escuta um tiroteio, ela sabe que no dia seguinte terá muito mais trabalho.

 No começo do ano, a polícia tomou as casas

Rosa não pôde entrar na sua casa numa tarde de março. Rosa – costas largas, nariz alargado e olhos grandes e caídos – vivia em uma zona ocupada pela polícia. Sua casa na Praça do Samba, na favela Nova Brasília, estava no meio do fogo cruzado. Os membros da UPP ocuparam as lajes de algumas casas, entre elas a sua, e dali enfrentam os traficantes. “Faz dois ou três meses que não vivemos. Em qualquer momento pode haver um tiroteio e alguém pode ficar baleado”, disse à reportagem.

Os membros da UPP ocuparam as lajes de algumas casas do Alemão (Foto: Alan Lima/Agência Pública)

Desde o começo do ano, a UPP começou a construir uma base a somente uns metros da casa de Rosa. É comum que subam nas casas dos vizinhos, de onde agem como franco-atiradores. “Um dia minha mãe ligou dizendo que a polícia estava em cima da minha laje e não queria ir embora. Eles disseram que iam ficar ali porque era muito perigoso para eles ficar na rua.” O telhado de Rosa permaneceu invadido durante dois meses.

Guilherme Pimentel, criador do Defezap, um aplicativo que ajuda os cidadãos a denunciar a violência do Estado, ajudou Rosa a apresentar uma denúncia ao Ministério Público Estadual baseada em vídeos das ocupações. A polícia saiu da casa de Rosa… mas entrou em outras. “Os moradores do Complexo utilizam o aplicativo para denunciar repressões nas manifestações, agressões dos policiais a moradores e execuções. Denunciaram que já viram a polícia carregando corpos”, explica. Segundo moradores, as invasões continuam acontecendo, apesar de notoriedade que o caso ganhou.

No dia 23 de abril houve uma audiência pública na Assembleia Legislativa sobre as invasões. Nela, o major Leonardo Gomes Zuma, ex-comandante da UPP Nova Brasília, disse que somente uma casa estava ocupada e defendeu que as invasões eram parte de uma “estratégia para ocupar território” e proteger os policiais, vítimas de tiros e granadas. Pedimos uma entrevista com Zuma, que foi negada. “Ele não é muito de falar”, respondeu o porta-voz Ivan Blaz.

“A escala do absurdo foi aumentando. Começou com a presença permanente da polícia em 2010 e hoje, em 2017, se vê essa mesma polícia invadindo casas, expulsando os moradores”, denuncia Raul Santiago.

Zuma foi denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, junto com o comandante da Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP), coronel André Luiz Belloni Gomes, pelas invasões. Os PMs alegavam que as casas estavam abandonadas, mas as investigações demostraram que houve invasão de pelo menos cinco casas, contra a vontade dos moradores. Säo acusados pelos crimes de constrangimento ilegal e invasão de domicílio. Zuma deixou o comando da UPP Nova Brasília.  

Moradores protestam contra a violência no Alemão (Foto: Alan Lima/Agência Pública)

Rosa tem pavor de balas perdidas. Há vários anos, seu irmão recebeu um tiro em um baile funk durante um fogo cruzado. Ficou paralítico durante dez anos e faleceu faz pouco tempo. Ela agora teme que a história se repita com mais alguém da sua família. Na sua rua, todos os edifícios têm algum sinal de conflito. Rosa brincava na rua quando era pequena. Sua filha, de 15 anos, também. Seus sobrinhos, que vêm à sua casa depois da escola, são proibidos de fazer o mesmo. Há dias em que Rosa compra comida demais para não ter de sair. Põe a novela na TV e tenta seguir a sua rotina, porque na sua casa não chegam os tiros que ela pode escutar, mas mesmo assim a sua filha e sua mãe se escondem no quarto de trás.

Uma noite ela chegou tarde em casa. Não havia luz. A polícia disparava, e a única coisa que passou pela cabeça foi gritar desesperada que era moradora, para que não a confundissem com um criminoso. No primeiro semestre deste ano, Depois de uma invasão do Bope, ela decidiu deixar a casa em que viveu 40 dos seus 44 anos. “Vamos embora daqui. Essa não é nossa guerra”, nos escreveu por WhatsApp.

Paz a 500 metros

Em uma pequena loja de empréstimos baratos, que parece mais um salão de beleza porque sempre há mulheres se arrumando, há duas mães. A primeira é conhecida no Complexo do Alemão porque seu filho era um mototaxista muito popular que foi morto por um policial. A outra é mãe de um traficante, e por isso poucas vezes fala do assassinato do seu filho.

Na rua Guadalajara, na favela de Nova Brasília, a parte baixa do Complexo, o silêncio é uma anomalia. Denize Moraes, orgulhosamente “nascida e criada” no Alemão há 51 anos, rompe-o com uma gargalhada. “Hoje não escutei tiros, é estranho”.

Denize Moraes arruma as unhas enquanto atende alguns clientes. Sua loja está decorada com 33 fotos em que aparece o seu filho Caio. Ela posa com um look diferente em cada uma delas. Nas conversas, se fala dos tiros como da chuva. “Ainda me lembro do meu primeiro tiroteio. Creio que foi nos anos 1990, meu filho ainda não tinha nascido. Foi um dia macabro. Parecia o Iraque. Na manhã seguinte, quando fui à padaria, estava cheio de cápsulas de balas e, quando voltei, começaram de novo os tiros”, conta. Desde aquele dia as balas viraram parte do seu cotidiano, até tirarem a vida do seu filho Caio, aos 20 anos.

Foi em 27 de maio de 2014. Caio ligou para Denize às 18h52. Disse que havia deixado de trabalhar porque os vizinhos estavam protestando pela prisão de um morador acusado de tráfico de drogas. “Por um momento tive um dor nas costas. Mas nunca imaginei que era porque meu filho havia recebido um tiro nas costas.” A polícia atirou gás pimenta contra a manifestação. Todos correram. Um policial disparou no seu filho desde uma padaria. Ela estava em casa quando alguns rapazes chegaram para dar a notícia. Denize não conseguiu encontrar os sapatos, nem a sua bolsa, nem os documentos. Quando chegou, Caio já estava morto. A justificativa do policial foi que errara o tiro, que estava mirando em um criminoso. “Isso é mentira. Era muito perto. A bala entrou por trás e ficou na clavícula. Assim pudemos saber quem havia disparado”, diz a mãe.

A comunidade se solidarizou com o caso porque Caio trabalhava quase desde criança. Tinha dois filhos e havia construído a própria casa. Com ele, diz Denize, se foram 70% da sua felicidade. “Ele sempre disse que não trabalharia em nada mau porque nunca aguentaria um tiro. E não aguentou.”

No Alemão existem dezenas de mães de traficantes que não contam suas histórias. Ninguém se solidariza com elas. São marginalizadas. “Eu acho muito feio como são tratadas. Uma mãe é uma mãe”, diz Denize.

Ao seu escritório chega dona Paula*, uma mulher de cabelos crespos presos em um rabo de cavalo. Dona Paula tem o rosto sem maquiagem, a voz apagada, quebrada. Tem medo. É desconfiada. Não demora nem dois minutos para chorar, quando se lembra daquele dia. “Meu filho aí sozinho …”. Interrompe o relato. Denize oferece um copo de água. Custa-lhe explicar o que aconteceu.

Seu filho morreu há seis meses, aos 24 anos. Fazia pouco mais de um ano que era traficante. Ela nunca o viu armado. Havia ido embora de casa. Dona Paula não sabia onde vivia. Soube por outras pessoas que ele estava no crime. “Não sei o que passou na sua cabeça”, lamenta. Levou um tiro na cabeça em um troteio com a polícia. “Não me deixaram chegar perto dele. O policial atirou em mim com uma bala de borracha e me disse para ir embora. Eu disse que não, que ele acabava de matar o meu filho. Se ele quisesse poderia disparar em mim.” Ela chorava e os policiais a insultavam. Sua nora estava grávida de um mês quando o marido morreu. “Quando o bebê nasceu, eu fiquei feliz porque ele tem a cara do meu filho” – diz, mostrando a foto num celular.

Naquela tarde, Denize nos levou a um muro que fica detrás de uma barraquinha de churrasco. Ali está escrito: “Caio eterno”.

O filho de Denize Moraes foi morto por um policial militar (Foto: Alan Lima/Agência Pública)

As paredes do Alemão recordam os seus mortos. As ameaças à polícia. As façanhas dos traficantes. Contam uma história de violência e de uma paz prometida que se converteu em um enfrentamento diário. Em uma das ruas próximas do asfalto, há um grafite na parede com uma flecha que indica o caminho de saída do Complexo do Alemão: “Paz a 500 metros”.

* Os nomes foram trocados para preservar a segurança dos entrevistados.

Essa reportagem faz parte do projeto En Malos Pasos, uma cobertura especial sobre violência na América Latina. http://dromomanos.com/enmalospasos/

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