Uma portaria do Ministério da Cidadania publicada no final de março determinou que as comunidades terapêuticas são serviços essenciais, o que permite que continuem a funcionar e receber novos internos durante a pandemia de coronavírus. Locais para acolhimento de usuários de drogas, as comunidades terapêuticas são na maioria das vezes ligadas a entidades religiosas e normalmente têm como parte do processo terapêutico orações e atividades laborais. Grande parte dessas organizações não possui médicos, enfermeiros ou psicólogos em suas equipes e frequentemente são denunciadas por violações de direitos humanos, como violação à liberdade religiosa, trabalhos forçados e sem remuneração e conduções à força para a internação. O texto da portaria publicada em março determina que “acolhimentos já iniciados não devem ser interrompidos”, algo reforçado na nota em que a assessoria de imprensa do Ministério da Cidadania divulga as medidas a serem adotadas, e recomenda evitar ao máximo saídas temporárias dos assistidos e as visitas a eles. Uma resolução de 2015 do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas estabelece que a permanência dos acolhidos pelas comunidades terapêuticas deve ser voluntária, mas há muitas denúncias de instituições que realizam internações forçadas. Esses elementos somados – a falta de visitas, a determinação para não interromper os tratamentos e, ainda, o fato de que, durante a pandemia, a fiscalização das comunidades está sendo feita por meio de sistema eletrônico preenchido por elas mesmas e ligações telefônicas, conforme apurou a reportagem – têm preocupado especialistas, que temem pelas condições de saúde física e mental dos internos. A Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila) soltou uma nota demonstrando preocupação com o ponto da portaria que prevê que “acolhimentos já iniciados não devem ser interrompidos”, pois poderia levar à internação involuntária, uma preocupação frequente das entidades críticas às comunidades terapêuticas.
“O MC [Ministério da Cidadania] ignora que a maioria dos alojamentos das comunidades terapêuticas não passa de um amontoado de camas, ocupadas por pessoas aglomeradas que mal conseguem se locomover num espaço exíguo?”, diz a nota.
No dia 11 de maio, um grupo de 20 deputados federais liderados por Erika Kokay (PT-DF) apresentou um projeto de decreto legislativo que pretende sustar a portaria 340. A principal justificativa é o temor de que as normas deem espaço para que usuários de drogas sejam retidos contra sua vontade. O projeto segue em tramitação.
A política de drogas brasileira prevê que o acolhimento de usuários de drogas em comunidades terapêuticas deve ser sempre voluntário. Mas a inspeção nacional realizada em 2017 pelo Ministério Público Federal, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Conselho Federal de Psicologia e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, em 28 comunidades terapêuticas, de 12 unidades da federação, encontrou casos em que acolhidos tiveram seus documentos retidos como forma de impedir que deixassem as comunidades.
Outro ponto da portaria 340 estabelece que pessoas com suspeita ou confirmação de infecção pelo coronavírus devem voltar às suas vagas nas comunidades assim que deixarem as instituições de saúde. Mas, assim como em asilos, presídios ou hospitais psiquiátricos, que têm grande concentração de pessoas, a propagação de doenças respiratórias, como a Covid-19, tende a ser facilitada nas comunidades terapêuticas.
Mais de 50 contaminados
Foi o que ocorreu no município de Jaci, no interior de São Paulo. Com pouco mais de 7 mil habitantes, Jaci teve, até o final de maio, 77 casos confirmados de coronavírus, o que significa uma taxa de contaminação praticamente dez vezes maior do que a média do estado. De todos os casos, 36 foram entre pessoas acolhidas em uma comunidade terapêutica católica, mantida pela Associação e Fraternidade São Francisco de Assis na Providência de Deus. Outros 29 assistidos testaram negativo. E cerca de 20 freis franciscanos, que conduzem a comunidade, também testaram positivo para a doença, segundo a assessoria de imprensa da instituição.
Os testes em massa ocorreram em abril, após o vírus ter sido detectado em um dos freis, e contabilizados pela Secretaria de Saúde em meados de maio. Segundo a assessoria de imprensa da Associação Largo São Francisco, tanto os líderes religiosos quanto os acolhidos foram isolados até se recuperarem. Mas o frei Paulo Fernando de Campos Meneses não se recuperou, tornando-se a primeira vítima a morrer da Covid-19 em Jaci, no dia 9 de maio, aos 36 anos.
A instituição recebe verbas do governo do estado de São Paulo por meio do programa Recomeço, voltado a usuários de drogas. Mas, ao contrário da maioria das comunidades terapêuticas, que não contam com corpo médico, faz parte de um complexo hospitalar que têm profissionais de saúde, o que facilitou a detecção e o tratamento dos contaminados.
Falta regulamentação e fiscalização das comunidades terapêuticas
Desde a década de 1990, com a implementação de políticas de desativação de hospitais psiquiátricos, as comunidades terapêuticas vêm crescendo como uma alternativa relevante no âmbito da política de drogas brasileira, mas o governo federal começou a investir só em 2011. Em 2019, o governo de Jair Bolsonaro triplicou os aportes de recursos, que chegaram a R$ 148,8 milhões. O fortalecimento dessas organizações sob Bolsonaro se deve também à influência política de grupos cristãos, já que grande parte dessas organizações é ligada a igrejas católicas ou evangélicas.
Há hoje 536 comunidades terapêuticas cadastradas no governo federal. Mas o número de organizações que chamam a si mesmas de comunidades terapêuticas, seguindo padrões de atendimento muito diversos entre si, é muito maior. Um censo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2017 contabilizou quase 2 mil. Isso ocorre porque a regulamentação sobre esses espaços ainda tem muitos pontos em aberto, e há uma disputa para estabelecer o que deve ou não deve ser considerado uma comunidade terapêutica.
Uma das principais referências é uma resolução de 2011 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que determina que comunidades terapêuticas precisam estabelecer horários para despertar, oferecer atividades físicas, ações que promovam o “desenvolvimento interior” e participação na rotina de limpeza e organização, por exemplo. Mas não estabelece um modelo de quadro técnico que essas instituições devem possuir. Há comunidades com profissionais como enfermeiros, médicos e psicólogos e outras sem nenhum quadro da área de saúde.
A resolução diz também que é necessário que haja um responsável técnico com ensino superior, mas não especifica em quais cursos esse técnico pode ser formado. Há comunidades terapêuticas geridas por médicos, outras, por pastores formados em teologia, por exemplo.
Em entrevista, o presidente da Federação Brasileira das Comunidades Terapêuticas (Febract), Pablo Kurlander, afirmou que há pressão política para que não se estabeleça um modelo de equipe com profissionais de saúde, porque isso aumenta os custos.
Na pandemia, fiscalização de comunidades com verbas federais é por autodeclaração
A maior parte das comunidades que não recebem recursos públicos funciona sujeita a pouca ou nenhuma fiscalização. E a fiscalização existente foi reduzida durante o período da pandemia, mesmo entre aquelas que recebem dinheiro do governo.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão questionou o Ministério da Cidadania sobre a fiscalização das comunidades terapêuticas, em especial daquelas que recebem verbas do governo federal. A Agência Pública teve acesso à resposta do ministério, que reforçou que as próprias comunidades deverão informar, por meio do Sistema Eletrônico de Gestão das Comunidades Terapêuticas, mantido pela Secretaria Nacional de Cuidados e de Prevenção às Drogas (Senapred), se estão cumprindo a portaria que orienta sobre as precauções a serem adotadas durante o período da Covid-19, e se estão cumprindo determinações do Ministério da Saúde sobre o assunto.
Questionado se haveria alguma equipe destacada para vistoriar presencialmente as comunidades, o governo reafirmou que a fiscalização é por meio do sistema eletrônico, além de ligações telefônicas – o que significa que a fiscalização do Ministério da Cidadania na pandemia é por autodeclaração, nunca presencialmente. Por um lado, a medida aumenta o isolamento das pessoas nesses locais; por outro, deixa nas mãos das próprias comunidades terapêuticas afirmar se há ou não problemas.
A fiscalização eletrônica das entidades conveniadas foi inicialmente estabelecida pelo Ministério da Cidadania em 2019 e reforçada durante a pandemia por meio de uma portaria circular do dia 15 de abril, quando o ministério ressaltou que a notificação de casos de Covid é compulsória e que as comunidades que deixassem de notificar perderiam acesso aos recursos federais.
Questionado pela Pública sobre a existência de casos da doença nas comunidades terapêuticas, o ministério afirmou que nenhum caso havia sido reportado por aquelas que recebem recursos federais.
Comunidades continuam recebendo acolhidos
A Pública ligou para sete comunidades terapêuticas do estado de São Paulo, localizadas nas cidades de Araçoiaba da Serra, Jaguariúna, Jarinu, Jaú, Mairiporã, Piraju e Santo André, e questionou sobre acolhimentos e visitas. Nenhuma das comunidades fazia parte dos programas do governo estadual ou do governo federal, o que significa que elas não estão entre aquelas com níveis maiores de fiscalização.
Três afirmaram que não estavam aceitando novos internos. Outras três aceitavam novos internos, entre as quais apenas uma afirmou estabelecer um período de isolamento, que era de uma semana, e não de duas, como estabelecido na portaria 340.
Outra comunidade terapêutica, na cidade de São Paulo, afirmou que aceita novos acolhidos, mas disse que só daria presencialmente detalhes sobre seus procedimentos.
Em todas as comunidades terapêuticas, as saídas dos internos foram proibidas e substituídas por ligações ou videochamadas, em linha com o que é exigido pela portaria 340. Uma das comunidades terapêuticas continuava permitindo visitas, e não informou nenhuma restrição.
Algumas comunidades terapêuticas têm utilizado a pandemia para ampliar muito seus atendimentos. Em um vídeo promocional publicado no dia 30 de maio no Facebook, a Fazenda da Esperança, uma entidade católica fundada em 1983 em Guaratinguetá, em São Paulo, e que hoje coordena 140 unidades em 23 países, afirma que acolheu mais mil pessoas desde o início da pandemia, uma adição significativa aos cerca de 3 mil residentes que possuía anteriormente, em todas as suas unidades somadas, segundo a entidade.
Cada interno deve ficar cerca de um ano no local e custa cerca de R$ 500 por mês, diz o vídeo promocional, que pede doações. “Dentro de mim, eu penso: ‘Como vai ser? Eles não vão embora amanhã e precisam ser alimentados”, diz no vídeo o frei Hans Stapel, fundador da Fazenda Nova Esperança. Essa é uma das principais instituições que recebem verbas do governo federal, por meio da Senapred, sob o Ministério da Cidadania. A entidade afirma que os acolhidos têm passado por isolamento.
Segundo dados do Portal da Transparência, do governo federal, a Fazenda da Esperança em Guaratinguetá, que é apenas uma das unidades da entidade, recebeu, desde 2014, R$ 3.971.221,35 em recursos públicos.
Ministério nega que portaria dê suporte a internações forçadas
O Ministério Público questionou o Ministério da Cidadania sobre se a recomendação para que comunidades terapêuticas interrompam atendimentos durante a pandemia poderia levar a internações involuntárias.
A reportagem teve acesso à resposta, em que o ministério afirma que a permanência deve continuar sendo voluntária e que a norma busca apenas ressaltar que acolhimentos em curso “não deverão ser interrompidos exclusivamente em decorrência da decretação da emergência em saúde pública de importância nacional” pela Covid-19. E ressalta que “neste período, nenhum paciente [sic] deve receber alta”. Questionado pela reportagem, o Ministério da Cidadania voltou a afirmar que pessoas não podem ser internadas contra a própria vontade nas comunidades terapêuticas.
Em entrevista à Pública, Lucio Costa, perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e de Combate à Tortura, afirma que muitas comunidades terapêuticas poderão ter dificuldades em aplicar regras de isolamento pensadas para os serviços de saúde. “Várias das comunidades que visitamos não têm condições para isolar indivíduos uns dos outros, o que induz a uma lógica de confinamento desse sujeito dentro de uma comunidade terapêutica”, afirmou.
A socióloga Maria Paula Gomes, do Ipea, organizou um extenso estudo que incluiu mais de 2 mil comunidades terapêuticas em 2017.
Em entrevista à Pública, ela avalia que a realidade entre as comunidades terapêuticas é muito diversa e pondera que, apesar do teor religioso do tratamento em muitas delas, aquelas com melhores condições são espaçosas e podem favorecer o distanciamento social entre assistidos cuja única opção seria voltar a morar nas ruas.
Mas ressalta que “não há no Brasil um sistema de fiscalização minimamente eficiente” que poderia servir para manter a segurança dos acolhidos durante a crise da Covid-19.