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Justificativa de sigilo comercial beneficia multinacionais Bayer, Syngenta e Basf

Reportagem
26 de novembro de 2020
10:00
Este artigo tem mais de 3 ano

Você gostaria de saber quais agrotóxicos estão na sua comida? Pode esperar sentado. A falta de transparência do setor é tão grande que o governo não divulga nem mesmo o volume vendido da maior parte dos agrotóxicos autorizados no país. Mesmo considerando que estes mesmos químicos estão presentes em 3 de cada 10 alimentos testados pela Anvisa. 

O Ibama recebe as informações de vendas em detalhes e poderia divulgar até qual fazenda comprou qual agrotóxico, permitindo que a informação chegasse ao consumidor e às organizações de controle. Mas o órgão prioriza o sigilo comercial das fabricantes, deixando de publicar dados sobre os produtos que pertencem a apenas uma ou duas empresas. 

É alto o número de agrotóxicos cujas informações são mantidas em sigilo: 232, ou 72% do total autorizado no país em 2018. A relevância para o consumidor também é alta, já que agrotóxicos deste grupo foram detectados em 28% dos alimentos vendidos em mercados e feiras de todo o Brasil.

Os dados são exclusivos e foram obtidos pela Repórter Brasil e Agência Pública por meio da Lei de Acesso à Informação. A equipe obteve os nomes dos químicos que não têm informações divulgadas e buscou esses ingredientes na base de dados do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, da Anvisa, que agrega testes em vegetais e frutas de todo o país entre 2017 e 2018. Leia aqui a lista completa com o nome de todos os agrotóxicos que não tiveram informações de venda divulgadas em 2018.

Os produtos que não têm dados divulgados correspondem a 46% de todos os agrotóxicos detectados na comida do brasileiro. Para Rafael Rioja, especialista em alimentação saudável do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), isso demonstra que eles têm relevância no mercado nacional. “Especificamente no Brasil, que faz o uso massivo e crescente de agrotóxicos, o mínimo que deveríamos ter é transparência. É fundamental que a sociedade tenha acesso a informações sobre os agrotóxicos para que possam ser feitas as cobranças para monitoramento e análise”.

Bayer, Syngenta e Basf

São 56 os agrotóxicos cujos dados não são divulgados e que foram encontrados nos alimentos testados pela Anvisa. A reportagem levantou quais são as empresas detentoras dos registros que autorizam a fabricação destes produtos, descobrindo que estão concentrados nas mãos de três multinacionais.

A Bayer foi a campeã de registros, tendo em sua carteira 11 substâncias do grupo. Dividindo o segundo lugar, ficaram a Syngenta e a Basf, sendo que esta é a única titular da Piraclostrobina, agrotóxico desta categoria que mais apareceu nos testes em alimentos. As três multinacionais são donas de 52% dos registros do grupo de 56 agrotóxicos cujas informações não foram publicadas e que estão nos alimentos.

O mercado de agrotóxicos é concentrado como um todo, afirma a advogada da organização Terra de Direitos Naiara Bittencourt. Segundo ela, a aprovação de novos agrotóxicos no Brasil pode envolver, inclusive, disputas judiciais entre as empresas, mas em geral o mercado é concentrado em poucas companhias. “O Estado deveria intervir quando há monopólio ou concorrência desleal, mas é justamente nesse momento que os dados são restringidos”, afirma Bittencourt. 

O Ibama argumenta que o volume de agrotóxicos cujos dados não são divulgados representa “apenas 10%” do volume total vendido. Segundo o órgão, a decisão de não divulgar as informações é amparada pelas Leis nº 9.279/96 e 10.603/2002. Essas informações, interpretadas como objeto de segredo industrial e comercial, poderiam ser utilizadas por suas concorrentes para conquistar clientela, ou seja, prejudicando a indústria que forneceu as informações. “Esse foi o motivo principal para utilizarmos a metodologia de divulgação dos ingredientes ativos que tenham no mínimo três empresas registrantes” (leia as respostas do Ibama na íntegra).

A Bayer afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que “é uma multinacional com ações negociadas na Bolsa de Frankfurt e, por questões estratégicas, não divulga informações ou dados específicos dos países em que atua” (leia resposta da Bayer na íntegra).

A Syngenta e a Basf não responderam aos questionamentos enviados pela reportagem. Em nome delas, a CropLife (associação que representa a maiores fabricantes de agrotóxicos do mundo) enviou nota em defesa do princípio de sigilo comercial. A associação argumenta que as produtoras de agrotóxicos têm o direito legal de proteger seus sigilos industriais, seus dados e mercados (leia nota da CropLife na íntegra).

As informações sobre volumes de vendas por estado são divulgadas pelo Ibama por meio dos relatórios de comercialização de agrotóxicos, que começaram a ser publicados em 2009. Desde o início, já valia a regra de não divulgar informações sobre agrotóxicos fabricados por uma ou duas empresas. Ou seja, o princípio do sigilo comercial é adotado desde o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Esses relatórios são produzidos com base em dados sobre produção, importação, exportação e vendas enviados semestralmente pelas fabricantes.

Sigilo comercial versus interesse público

“Não é só porque está baseado em uma lei que não pode ser questionado, inclusive, judicialmente”, afirma a advogada Naiara Bittencourt. Ela defende que há outros princípios legais que podem colocar em xeque os argumentos utilizados pelas empresas e Ibama. “Você tem de um lado o princípio do sigilo comercial e da concorrência desleal e do outro lado o acesso à informação. Cabe ao judiciário decidir. De fato, na nossa ordem constitucional o que deveria prevalecer é o direito à vida, o direito ao meio ambiente, à saúde do consumidor”.

O acesso à quantidade de agrotóxicos comercializados por estado de forma individualizada ajudaria no monitoramento de retirada de produtos do mercado brasileiro, além de possibilitar que a sociedade saiba quais são as substâncias mais utilizadas e que consequências que esse uso traz à saúde e ao meio ambiente. 

“Não ter isso tem um impacto gravíssimo”, afirma a médica sanitária Telma Nery. “A gente pode estar com casos de problemas de saúde que têm relação [com essas substâncias], e a gente não consegue estimar, porque não se sabe qual é essa quantidade e as culturas que estão utilizando”.

Especulação financeira com aprovações de agrotóxicos

Por fim, a falta de informação sobre vendas também ajuda a criar uma especulação financeira que só beneficia as fabricantes. Segundo Luiz Cláudio Meirelles, ex-gerente geral de toxicologia da Anvisa e pesquisador da Fiocruz, grande parte desses produtos aprovados não são produzidos, mas as empresas usam essa “reserva” para lucrar mesmo assim, pois eles aumentam a sua carteira de registros. 

A suspeita sobre especulação tem ressonância com os dados, considerando que os agrotóxicos em questão correspondem a 72% do total de ingredientes autorizados, mas de fato produzem apenas 10% do volume total comercializado no país.

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Meirelles explica que, quanto mais registros para fabricação de um agrotóxico uma empresa detém, mais ela é valorizada no mercado. “Quando ela se colocar à venda, vai valer mais porque o portfólio dela custa muito mais do que a parte de estrutura, instalação, toda a parte patrimonial”, afirma. “A finalidade do [processo de concessão de] registro deveria ser oferecer um produto, não garantir para a empresa que ela tenha um ativo financeiro porque ela quer ter um bom portfólio”.

As informações sobre volumes de vendas de todos os agrotóxicos por estado são ainda uma pequena parte de um conjunto de dados fundamentais para entender o impacto desses produtos na saúde de milhares de brasileiros e no meio ambiente. A falta de transparência aumenta o fosso de desconhecimento sobre a relação dos agrotóxicos e problemas de saúde e ambientais, limitando o trabalho da imprensa, de pesquisadores e de órgãos de controle.

Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto.

Atualização (26/11/2020 às 12h27):  O texto foi alterado para corrigir a fala da advogada Naiara Bittencourt que afirmou que a concentração do mercado dos agrotóxicos em si é o problema, e não o tempo e custo para se registar agrotóxicos no país.

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