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Construção do Centro de Lançamento foi planejada pela ditadura e envolveu remoção de mais de 300 famílias; governo Bolsonaro quer que EUA utilizem base

Reportagem
11 de janeiro de 2022
12:00
Este artigo tem mais de 2 ano

O Brasil será julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) por possíveis violações de direitos humanos contra as comunidades quilombolas de Alcântara, no Maranhão. O caso está relacionado à instalação do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), projeto iniciado pelo governo militar brasileiro, ainda na década de 1970. A construção da base de lançamentos de foguetes da Força Aérea Brasileira (FAB) envolveu a remoção compulsória de mais de 300 famílias ao longo da década de 1980. Mais recentemente, o governo Bolsonaro chegou a assinar acordo para ceder a utilização da base aos Estados Unidos, o que também é questionado pelos quilombolas. Além disso, o processo de titulação do território não avança há mais de 13 anos.

As organizações que peticionaram a denúncia foram comunicadas do envio do caso à Corte IDH na primeira semana de janeiro de 2022, após mais de 20 anos de tramitação no Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, ligado à Organização dos Estados Americanos (OEA). Entre os mecanismos do Sistema está a análise de violações de direitos humanos cometidas por Estados-membros da OEA. Em geral, os casos surgem a partir de denúncias feitas por pessoas ou entidades não governamentais. 

A petição foi apresentada em agosto de 2001 perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por representantes das comunidades afetadas e entidades como a Justiça Global, a Global Exchange e a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA), entre outras. O texto apontava “desestruturação sociocultural e violação ao direito de propriedade e ao direito à terra” dos quilombolas de Alcântara.

A denúncia foi considerada admissível – ou seja, entendeu-se que ela atendia aos requisitos básicos para ser analisada – pela CIDH em 2006. Depois disso, foram realizadas duas audiências públicas, em 2008 e em 2019, até que a Comissão emitiu um relatório de mérito, em junho de 2020. 

No documento, que atualmente não é público, o órgão considerou que o Estado brasileiro violou direitos das comunidades quilombolas de Alcântara e apresentou uma série de recomendações. Entre elas estão a titulação do território, a consulta prévia em relação ao acordo firmado junto aos Estados Unidos, a reparação financeira dos removidos compulsoriamente e um pedido de desculpas público, segundo as fontes consultadas pela Agência Pública. Por considerar que o Brasil não atendeu às recomendações, a Comissão resolveu encaminhar o caso para a Corte. 

Para Danilo Serejo, quilombola e assessor jurídico do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe), a expectativa é que o Brasil seja condenado pela Corte e “seja compelido a reparar as comunidades de Alcântara”. “A subida do caso para a Corte atesta e comprova que há de fato uma ação deliberada do Estado brasileiro de continuar violando os direitos das nossas comunidades, que há uma perpetuação de violações aos direitos humanos”, afirma. O Mabe, que não estava entre os peticionários iniciais da denúncia, foi posteriormente aceito como uma das partes durante o trâmite na Comissão Interamericana.

De acordo com o advogado Eduardo Baker, da Justiça Global, além da possível reparação aos afetados, a chegada do caso à Corte IDH também tem valor simbólico. “A Corte Interamericana tratou muito pouco sobre comunidades tradicionais no Brasil. Você tem só um caso sobre comunidades indígenas, que é o caso Xucuru, e não tem nenhum caso ainda sobre quilombolas. Há uma importância do ponto de vista de avanço do direito”, aponta.

Remoção e falta de titulação estão entre violações analisadas

Principal violação denunciada pelas organizações sociais e representantes locais ao Sistema Interamericano, a remoção de 312 famílias quilombolas para a construção da base de Alcântara ocorreu a partir de 1986, já durante o governo Sarney. Uma das estratégias utilizadas para efetivar a retirada dos moradores foi o treinamento de 30 jovens locais pelas Forças Armadas. Eles foram enviados para São Paulo em 1983 e, posteriormente, voltaram a Alcântara para participar das remoções, segundo uma reportagem da National Geographic.

Os quilombolas removidos foram deslocados para agrovilas planejadas pelos militares, em áreas distantes do litoral e sem que fossem respeitadas as particularidades de cada comunidade. Além disso, a instalação do CLA também vem afetando a subsistência e o modo de vida tradicional das milhares de famílias quilombolas da região. Alcântara, localizada na região metropolitana de São Luís, concentra a maior população quilombola do país, com mais de 17 mil pessoas, distribuídas em quase 200 comunidades.

Quilombolas manifestando em frente ao STF; eles seguram uma bandeira nas cores vermelha, amarela, verde e preta com os dizeres "Quilombolas do Maranhão"
Denúncia aponta violação ao direito de propriedade e ao direito à terra dos quilombolas de Alcântara

Entre as possíveis violações a serem analisadas pela Corte IDH também está a falta de titulação do território, habitado há mais de três séculos por essa população, que não tem o direito à terra garantido até hoje. O processo está parado desde 2008, quando o Incra publicou Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), apontando que mais de 78 mil hectares deveriam ser titulados em favor dos quilombolas.

Para o quilombola Danilo Serejo, do Mabe, a não finalização do processo de titulação é “o principal modo de gestão de conflitos do Estado brasileiro” no caso de Alcântara. “É justamente a ausência desse título que fragiliza as comunidades em negociações, porque ninguém tem autonomia jurídica, social e política para negociar ou planejar sua vida e seu futuro”, aponta. Para ele, há uma postura “bastante racista do ponto de vista estrutural e institucional” na não titulação.

Assessor jurídico da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SDMH), Luis Antonio Pedrosa considera que os interesses comerciais do Brasil estão no centro da histórica negação ao direito de propriedade dos quilombolas locais. “Dos anos 2000 para cá, o Estado brasileiro foi abandonando aos poucos a sua própria política aeroespacial e passando a defender a cessão da Base Espacial para lançamentos privados, dentro do competitivo mercado mundial de lançamento de satélites. Dentro dessa lógica, as limitações ao exercício da posse do território sempre ocorreram, sem falar nos deslocamentos, cujos impactos sobre os quilombolas foram profundos e de difícil reparação”, afirma o advogado, que acompanha o caso desde o início da década de 90. A SDMH é uma das peticionárias do caso no Sistema Interamericano.

Justiça barrou nova remoção de famílias relacionada a acordo com os EUA

A “cessão da Base Espacial para lançamentos privados”, que Pedrosa menciona, avançou especialmente com a assinatura de um Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) com os Estados Unidos, celebrado entre Jair Bolsonaro (PP) e o então presidente norte-americano Donald Trump, em março de 2019, na primeira visita do mandatário brasileiro aos EUA. A tratativa entre os dois países se iniciou ainda no governo de Michel Temer (MDB), em 2017. Segundo estimativas do governo na época da assinatura, o aluguel da base poderia gerar até 10 bilhões de dólares anuais para o Brasil.

A proposta aventada por Temer e concretizada por Bolsonaro reciclou ideia apresentada no início dos anos 2000, ainda no mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), mas que acabou rejeitada pelo Congresso Nacional por acusações de que feriria a soberania nacional. À época, um plebiscito popular, que reuniu mais de 10 milhões de votos, deu indicativo contrário à proposta, contribuindo para a negativa do parlamento.

O acordo entre Brasil e Estados Unidos, celebrado pelo atual governo, não envolveu consulta prévia às comunidades afetadas, conforme é previsto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada em 2002 pelo Brasil. Por conta disso, os movimentos sociais ligados à Alcântara apresenteram uma reclamação perante a organização em abril de 2019, logo após a assinatura. A iniciativa foi admitida pela OIT meses depois e está em análise pelo órgão.

Ainda em 2019, o acordo assinado entre Bolsonaro e Trump foi aprovado pela Câmara, em outubro, e pelo Senado, em novembro. Em fevereiro do ano seguinte, ele foi promulgado pelo governo federal. Para justificar o voto favorável ao projeto, parlamentares maranhenses, como Márcio Jerry (PCdoB), afirmaram que não havia previsão de remoção de famílias para a ampliação da base. Na época, o governo brasileiro também vinha negando sistematicamente que haveria deslocamento de famílias para a reativação da base e seu aluguel para utilização por outros países.

Imagem aérea da base de lançamento de foguetes da Força Aérea Brasileira, um complexo em meio à uma vasta área verde
Construção do Centro de Lançamento foi planejada pela ditadura e envolveu remoção de mais de 300 famílias

Uma reportagem da Folha de S. Paulo, porém, revelou em 11 de outubro de 2019 documentos que demonstravam a existência de um plano avançado para a remoção de pelo menos 350 famílias da região. Discutido por representantes de 11 ministérios em um grupo de trabalho, o plano incluía até mesmo uma campanha de marketing para convencer moradores sobre a remoção. Na época, antes da aprovação do acordo pelo Senado, o assessor jurídico Danilo Serejo conversou com a Pública, alertando que o AST poderia causar “tragédia sem precedente”.

As circunstâncias do acordo foram o assunto central da última audência pública relacionada à denúncia que tramita no Sistema Interamericano, ocorrida no mesmo dia em que o Senado ratificou o AST, em novembro de 2019. Segundo Serejo, a falta de consulta prévia e as possíveis violações decorrentes do acordo ajudaram a acelerar o trâmite do caso na Comissão Interamericana. 

Após meses negando que haveriam novas remoções visando a ampliação do Centro de Lançamento, o governo brasileiro publicou a Resolução nº 11, de 26 de março de 2020, que ia de encontro ao discurso até então sustentado. O texto, assinado pelo chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, trazia deliberações do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro em reunião realizada dias antes. Apesar de aprovar “diretrizes destinadas a orientar a elaboração do Plano de Consulta às comunidades quilombolas de Alcântara”, a resolução também incluía um plano de remoção de famílias que “habitam a área de interesse do Estado na consolidação do Centro Espacial de Alcântara”, atribuindo responsabilidades a diferentes pastas do governo.

O deslocamento compulsório de novos quilombolas em Alcântara em meio à pandemia foi questionado em ação judicial pelo deputado federal pelo Maranhão Bira do Pindaré (PSB), presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Quilombolas. Em 12 de maio de 2020, uma decisão liminar da Justiça Federal suspendeu a remoção, determinando que ela não fosse efetivada até a consulta livre, prévia e informada dos afetados. 

Em outubro do ano passado, os quilombolas de Alcântara obtiveram nova vitória, dessa vez no Congresso americano. Preocupados com “os relatos de que o governo do Brasil planeja forçar a realocação de centenas de famílias quilombolas para expandir o Centro de Lançamento de Alcântara”, os membros da comissão do Senado dos EUA que é responsável pela alocação de verbas decidiu que os recursos destinados a ações no Brasil não deveriam ser utilizados na remoção das comunidades.

Pouco depois do revés, em dezembro, o Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro revogou a Resolução nº 11, que previa a nova rodada de remoções de quilombolas de Alcântara. A decisão foi publicada no Diário Oficial em 16 de dezembro de 2021, tendo entrado em vigor no último dia 3 de janeiro.

Brasil já foi condenado dez vezes pela Corte Interamericana

A denúncia dos quilombolas de Alcântara é o 17º caso brasileiro a chegar à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para ser analisado pela Corte IDH, um caso deve ter sido apresentado perante a Comissão Interamericana, que fará análise de admissibilidade e de mérito da denúncia, remetendo o caso à Corte caso não tenha sido alcançada solução consensual.

Até hoje, o órgão julgou o Estado brasileiro em 11 oportunidades, sendo que o Brasil foi condenado em dez ocasiões. Há outros cinco casos com análise pendentes. As violações de direitos humanos cometidas pelo Estado no extermínio da Guerrilha do Araguaia e no assassinato do jornalista Vladimir Herzog estão entre os casos analisados pela Corte IDH. O órgão também já condenou o Brasil por violações em duas chacinas ocorridas em favelas do Rio de Janeiro, em um caso de trabalho escravo e em casos de violência contra trabalhadores rurais

Além dos 17 casos julgados ou em julgamento, a Corte também já determinou que o Brasil atuasse para evitar violações por meio das chamadas “medidas provisionais”. As mais famosas são relacionadas ao caso do Presídio de Urso Branco, em Porto Velho, Rondônia, palco de uma série de chacinas e motins.

Em seus primeiros anos de funcionamento, a Corte Interamericana costumava condenar os Estados a indenizar as vítimas apenas financeiramente. A partir dos anos 1990, o escopo das reparações se ampliou. “Publicação da sentença, construção de monumentos, cursos de direitos humanos, o dever de investigar processo e punir violações, em suma,  políticas públicas para diminuir ou erradicar a violência e o preconceito”, explica o professor de direito constitucional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Siddharta Legale, especialista em Sistema Interamericano.

*Colaborou: Beatriz Carneiro

José Cruz/EBC
Warley de Andrade/TV Brasil

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