“A gente tem as bancadas da Bíblia, do boi e da bala. 2022 vai ser o ano de compor a primeira bancada de depuTRAVAS do Brasil no Congresso Nacional”, afirma Robeyoncé Lima, pré-candidata à deputada federal pelo PSOL, em Pernambuco. Travesti, negra e nordestina, ela foi a primeira deputada estadual trans eleita no estado por mandato coletivo, em 2018. Agora, a advogada está entre as pré-candidaturas que pretendem acabar com a ausência de pessoas trans e travestis na Câmara dos Deputados.
Muitas dessas pré-candidaturas são de pessoas que tiveram votações expressivas nas disputas estaduais e municipais de 2018 e de 2020. Segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 30 pessoas trans saíram vitoriosas do pleito em 2020, quando o Brasil registrou recorde de LGBTQIAP+ eleitas. Este ano, Robeyoncé Lima, Erica Malunguinho e Erika Hilton — parlamentares trans do PSOL, em exercício de mandato — já anunciaram que estarão na corrida por vagas na Câmara dos Deputados. Outros nomes como Paula Benett, que já foi candidata à deputada distrital pelo PSB e continua no partido, e Ariadna Arantes, influenciadora digital e ex-BBB estreante na política e filiada recentemente ao PSB, também já se lançaram na disputa.
Como as costuras políticas ainda estão sendo consolidadas, outros nomes devem surgir até o prazo de registro no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), em agosto, explica Bruna Benevides, diretora da Antra, que acompanha as candidaturas desde 2014. “O que já podemos afirmar é que a crescente participação de pessoas trans e travestis na política institucional não é um fenômeno, mas a consolidação de um projeto político do movimento trans, que vem sendo desenvolvido há anos.”
Bruna diz que a atuação das vereadoras e deputadas estaduais eleitas nos últimos anos “deixou nítido que pessoas trans e travestis são muito aptas a ocuparem espaços políticos”. “Também que não se limitam a uma pauta de diversidade focada em questões de gênero, como direitos LGBTQIAP+. A educação, a reforma agrária, o enfrentamento do racismo ambiental, os direitos humanos, entre outras pautas que são transversais também vêm sendo colocados na perspectiva dessas pessoas.”
Pré-candidata à deputada federal pelo PSOL, em São Paulo, Erica Malunguinho abriu caminhos para uma maior representatividade transgênero na política brasileira com sua eleição, em 2018. Ela foi a primeira travesti a ocupar assento na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), a maior casa legislativa da América Latina. “Foi um passo já dado para naturalizar corpos trans nos espaços da política institucional”, diz. A chegada desses corpos no território da Câmara dos Deputados, majoritariamente masculino, branco e cisgênero, seria um próximo passo.
“Estamos diante de um momento de redemocratização do país, após um período antidemocrático acirrado com o governo Bolsonaro. É fundamental que pessoas vinculadas ao rompimento de violências e de vulnerabilidades participem desse processo com quem assumir o poder”, argumenta. Erica comenta que as vulnerabilidades são percebidas de modo expandido por mulheres trans, negras e nordestinas, como ela, que também é natural de Pernambuco, assim como sua companheira de partido Robeyoncé Lima. “Temos (ela e outras pré-candidatas trans) uma aproximação muito orgânica que diz respeito à construção das nossas identidades e lutas.”
Travesti, negra e ativista dos Direitos Humanos, Erika Hilton também é pré-candidata à deputada federal pelo PSOL em São Paulo. Em 2020, foi a vereadora mais votada do Brasil. “Embora as pré-candidaturas trans sejam isoladas, é importante que elas dialoguem entre si porque será uma eleição muito dura, violenta e polarizada”, diz. Robeyoncé e Hilton já conversaram por telefone para articular ações, mas a ideia da bancada de depuTRAVAS ainda é algo embrionário. “Nossas pautas são coletivas. Estamos acompanhando os lançamentos das pré-candidaturas para ampliar essa rede, inclusive com outros partidos, formando um bonde de pessoas indo ocupar Brasília”, adianta Robeyoncé.
Para Malunguinho, candidaturas de pessoas trans trazem uma novidade para a política que pode motivar eleitores desacreditados. “Vai ser necessária muita articulação para conquistar votos brancos e nulos, mas acho que as pessoas podem encontrar em nós um motivo para votar.”
Se eleita, Erika Hilton pretende federalizar projetos que realiza em São Paulo. Na Câmara de Vereadores, ela criou e preside a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Violência Contra Pessoas Trans e Travestis. Até janeiro, a CPI tinha emitido 57 requerimentos com pedidos de informações para investigar atos de violência contra pessoas trans e travestis na capital paulista.
Desde sua eleição, a vereadora tem sido alvo de uma série de ataques transfóbicos e violência política de gênero. Hoje, ela anda acompanhada por escolta policial. No começo deste mês, Erika recebeu um e-mail de uma mulher que dizia “garanto que você vai morrer, satanás do inferno“. Ela registrou queixa policial sobre a agressão. “Sei que alcançando uma maior visibilidade na disputa por um cargo federal, os ataques também aumentarão. Tenho tomado precauções”, diz.
Segundo Dossiê de violências contra pessoas trans brasileiras da Antra, em 2020, “80% das pessoas trans eleitas afirmaram não se sentirem seguras para o pleno exercício dos seus cargos”. O documento aponta um acirramento de ataques transfóbicos desde a eleição de Bolsonaro. A segurança é uma grande preocupação no pleito deste ano, segundo a Antra. “A gente tem uma lei que fala sobre violência política de gênero, mas deixa uma lacuna para mulheres trans e travestis, como acontece com a lei do feminicídio e a Lei Maria da Penha”, considera Bruna Benevides.
Paula Benett, ativista de direitos humanos, sofreu ataques transfóbicos no Instagram depois de anunciar sua pré-candidatura à deputada federal pelo PSB, em Brasília. “A gente é ser humano. Isso fere”, comenta. Ela também registrou queixa na polícia. “A transfobia hoje é equiparada ao crime de racismo porque não existe uma lei específica. É uma pauta prioritária garantir a criação de uma lei da transfobia, em âmbito nacional, que nos ampare.”
Política trans excludente
A inexistência de representatividade trans no Congresso Nacional é uma das barreiras para o avanço de pautas pró-LGBTQIAP+. Para além da ausência de propostas positivas, Bruna Benevides, da Antra, entidade que também monitora atividades legislativas, explica que “a Câmara dos Deputados tem sido um palco de debates que tentam institucionalizar a transfobia e criminalizar as existências de pessoas trans. Querem impedir de usar banheiro do gênero com o qual as pessoas se identificam, de participar de competições esportivas, negam direitos à saúde. No Brasil, a política anti gênero ganha contornos antitrans ou trans excludentes”, diz.
“Hoje a maioria das legislações que existem e que contemplam a comunidade LGBTQIAP+ são obtidas pelo sistema judiciário, uma vez que não existam mandatos efetivamente que sejam inclusivos ou que de fato representam essa população no país”, considera Ariadna Arantes, pré-candidata à deputada federal por São Paulo pelo PSB.
Mas para acabar com a falta de representatividade no Congresso Nacional não basta lançar candidaturas trans, na opinião de Robeyoncé Lima. “É preciso que os partidos considerem o potencial dessas candidaturas na hora de distribuir recursos, de garantir nossa segurança durante a campanha.”
Em 2018, Paula Benett teve que abdicar de sua candidatura à deputada federal por costura de coligações. Este ano, ela foi demitida sem aviso prévio de um cargo de coordenação de políticas LGBT no Distrito Federal, uma semana antes do Dia Nacional da Visibilidade Trans, em 29 de janeiro. “Estava preparando uma cerimônia para a data. Foi um desrespeito ao meu trabalho, minha trajetória.” Ela vê o lançamento da sua pré-candidatura agora como “uma questão de reparação”. “A gente precisa ocupar cada vez mais espaços exigindo mais direitos para a população trans, LGBTQIAP+, para mulheres, pessoas negras, por toda a população, mas enxergando todos os grupos e identidades. Sendo eleitas ou não, já abrimos o caminho.”