O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) registrou um escritório de advocacia em sua mansão, em Brasília, que teria apenas dois clientes: um deles uma igreja, segundo depoimento exclusivo da administradora da firma, Letícia Caetano dos Reis, para a Agência Pública. Apesar de estar registrada na Receita Federal como administradora da “Flávio Bolsonaro Sociedade Individual de Advocacia”, ela afirmou à reportagem que não tem acesso aos nomes dos clientes.
Flávio não é impedido de trabalhar como advogado por ocupar o cargo de senador. Contudo, de acordo com o Estatuto da Advocacia, parlamentares não podem exercer a profissão contra ou a favor de pessoas, empresas e organizações ligadas à administração pública.
Segundo Letícia Reis, as informações sobre os contratos só são repassadas pela contabilidade com autorização do senador. Ela disse ainda só ter contato com o primogênito de Jair Bolsonaro (PL) pelo WhatsApp. “Meu contato com ele é só via WhatsApp mesmo, não tenho esse contato físico diretamente com ele não”, reforçou.
A administradora afirmou à reportagem que a movimentação da empresa, aberta em abril do ano passado, é pequena, mas “os contratos que são feitos têm um valor considerável”. De acordo com ela, esses contratos estão suprindo os custos do escritório “e tem o capital da empresa também”. O capital social registrado na Receita Federal é de R$ 10 mil. Ela observou ainda fazer uma retirada mensal de pró labore e disse não ter participação nos lucros do escritório.
Segundo Letícia, que não é advogada, a firma não tem funcionários. “Não tá tendo muita movimentação e também não tem funcionário registrado”, destacou.
A reportagem enviou uma série de perguntas ao senador questionando os nomes dos clientes, os serviços prestados por seu escritório, o papel de Letícia Reis na empresa, os honorários recebidos, o motivo de ele ter registrado sua firma na própria residência, mas não obteve retorno de nenhum dos questionamentos. A assessoria de imprensa informou por meio de nota que “em função do sigilo profissional, o senador e advogado Flávio Bolsonaro fica impedido de comentar os dados da reportagem”.
Recentemente, Flávio Bolsonaro informou à Justiça que usa a renda de seu trabalho como advogado para pagar o financiamento da mansão de R$ 5,97 milhões, adquirida em março de 2021, conforme mostrou a Folha de São Paulo. Quando a compra foi revelada pelo site Antagonista, ele não citou os ganhos na área. A defesa do senador incluiu a atuação dele como advogado para justificar a renda após ação movida pela deputada federal Erika Kokay (PT-DF) no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ-DFT). A parlamentar questionou a capacidade do político em obter financiamento de R$ 3,1 milhões no Banco de Brasília (BRB) para a compra do imóvel.
A residência fica localizada no Setor de Mansões Dom Bosco, no Lago Sul, bairro nobre da capital federal e possui 1.100 m² de área construída, em um terreno de 2.500 m². O escritório do senador foi registrado na Receita Federal no mesmo endereço.
Além do escritório de advocacia, a defesa de Flávio também mencionou a renda do senador como “empresário e empreendedor”. Ele foi sócio de uma loja da franquia de chocolates Kopenhagen na Barra da Tijuca, no Rio. A loja foi alvo de investigação do Ministério Público Estadual por suspeita de lavagem de dinheiro no processo das rachadinhas na Assembleia do Rio.
Nome do senador não aparece em processos que tramitam na Justiça
Apesar do escritório de advocacia ter sido registrado há mais de um ano, a reportagem não localizou processos tramitando na Justiça com o parlamentar listado como advogado. Além da atuação em processos judiciais, um advogado pode atuar em consultorias, em casos na esfera administrativa ou fornecendo pareceres.
O senador anunciou em 21 de abril de 2021 sua inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB-DF), cinco dias após cadastrar sua empresa na Receita Federal, em 16 de abril, no mesmo endereço de sua mansão. Antes, ele já tinha o registro no Rio de Janeiro, onde foi eleito senador.
De acordo com o estatuto da profissão, o advogado tem direito à inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia.
O advogado da família Bolsonaro, Frederico Wassef, por exemplo, escondeu Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio na Assembleia do Rio, em uma casa registrada como seu escritório de advocacia, em Atibaia (SP). Queiroz foi preso no local em junho de 2020. Um inquérito foi instaurado para apurar se o escritório seria de fachada, mas foi arquivado em agosto do ano passado por não terem sido identificados indícios de crime.
Administradora de escritório teria sido indicada por advogado amigo de Flávio Bolsonaro
Letícia Reis contou ter entrado no escritório de Flávio Bolsonaro por indicação do advogado Willer Tomaz, amigo do senador e conhecido em Brasília por atuar para vários políticos, como por exemplo, Arthur Lira (PP-AL). Seu escritório, também localizado no Lago Sul, atua nas áreas cível, criminal, eleitoral, administrativa, empresarial e tributário.
“Eu fui convidada por um conhecido [do Flávio Bolsonaro] que também me conhecia. Eles me ofereceram para entrar em sociedade para administrar a empresa dele e aí eu aceitei para fazer essa administração”, disse à reportagem.
Willer afirmou à reportagem, no entanto, desconhecer Letícia Reis. Já Flávio Bolsonaro não respondeu aos questionamentos sobre a relação de sua parceria na firma e seu amigo advogado.
O jornalista Guilherme Amado detalha em seu livro Sem Máscara a relação do senador com Willer. Segundo ele, Willer, Frederico Wassef, e Flávio Bolsonaro, “haviam se tornado um trio tão próximo em Brasília que ganharam o apelido de ‘WWF’”. Procurado, Willer afirmou: “Flávio é um colega querido. Fred Wassef não conheço”.
Amado narra ainda que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou a atuação do governo na pandemia recebera a informação de que os três teriam atuado de maneira ilegal na compra da vacina Covaxin. O então relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), teria solicitado à Receita Federal a lista de empresas e relações societárias de uma série de alvos da comissão, entre eles, Wassef e Tomaz, o que teria irritado Flávio.
“O Fred é meu amigo. O Willer é meu amigo. Daí a fazer negócio e operar por trás, esquece. Não tem nada”, afirmou o senador quando Renan Calheiros perguntou ao deputado Luiz Miranda (Republicanos-DF) se ele conhecia os dois advogados.
Em 2017, Willer Tomaz foi alvo da operação Patmos, que é um desdobramento da Lava Jato. Ele ficou três meses preso, acusado de intermediar propinas a um procurador da República apontado como infiltrado no Ministério Público Federal para repassar informações aos donos da JBS, os irmãos Joesley e Wesley Batista. Segundo o MPF, isso teria gerado prejuízo ao andamento das investigações das operações Lava Jato e Greenfield. Em junho de 2021, a Corte Especial do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1) rejeitou a denúncia contra ele e os outros investigados. “Esse inquérito Patmos foi arquivado pelo TRF1. Os próprios delatores se retrataram”, afirmou Willer Tomaz à Pública.