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Se as urnas levarem à derrota de Bolsonaro, Alto Comando do Exército terá que rever papel da instituição na vida pública

Reportagem
28 de setembro de 2022
17:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Comandante, senhores, este é o relato.

Assim começa a apresentação dos coronéis candidatos à promoção de generais na reunião do Alto Comando do Exército (ACE). Acontece no quarto andar do Quartel General do Exército (QGEx) em Brasília, na sala de 10 por 7 metros de paredes alvas, parte delas revestidas com os retratos de todos os ministros e comandantes do Exército desde o reinado de Dom João VI. É um dos momentos mais solenes vividos por esses militares. Os escolhidos serão a elite da Força e, um deles, ao seu tempo, poderá chegar a Comandante. “A promoção de um coronel não é uma foto, é um filme inteiro”, explica à Agência Pública o general Sergio Etchegoyen, ex-chefe do Estado Maior e ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da presidência da República.

Até a chegada à presidência de Jair Bolsonaro – cuja origem militar ele sempre fez questão de alardear – temas como as discussões no Alto Comando do Exército (ACE) despertavam pouco interesse na imprensa. Considerava-se que, após 21 anos no poder durante a ditadura, os militares haviam reencontrado seu lugar e suas legítimas funções em um Estado democrático. Não foi bem assim. Interesses de ambos os lados, tanto de Bolsonaro como de militares, estreitaram as diferenças entre uma instituição de Estado e o governo. Se as urnas levarem à derrota de Bolsonaro, o Alto Comando do Exército terá que rever o papel da Instituição na vida pública. Continuará como as demais instituições de Estado, e o que possivelmente acontecerá, segundo a avaliação de acadêmicos e estudiosos do tema, é que deixará de ter a exposição pública outorgada por Bolsonaro.

Entretanto, esses militares, em especial os da reserva, têm visões bem diferentes sobre a política nos quartéis, embora tenham os valores e as práticas que aprenderam ao longo da carreira. E muitos outros passaram a temer – como de certa forma está acontecendo – que o fracasso do governo Bolsonaro acabe no colo das Forças Armadas. Eles garantem, porém, que não haverá nenhum tanque na rua, seja qual for o resultado das eleições.

Nesta entrevista com o general Etchegoyen, perguntei se a ideologia dos coronéis era avaliada nas promoções: “Nunca, e olhe que nunca é uma palavra pesada e definitiva, nunca vi em uma reunião do Alto Comando alguém perguntar sobre a posição ideológica de um coronel que estava na lista para ser promovido. Muito menos, alguma vez, ouvi alguém dizer: peraí que esse cara é de esquerda, ou esse cara é golpista….”

O general Etchegoyen, na reserva, é ainda um dos mais influentes oficiais entre a cúpula do Exército. Com didática de professor, ele explica como acontecem as promoções e quais critérios nas escolhas ditarão os rumos do Exército Brasileiro. “O que é que eu fazia? Ele tem méritos? É estudioso, construiu uma carreira de alto desempenho. Ele pode ser um farsante? Pode. Eu vou ficar triste porque votei num farsante, mas votei com honestidade diante dos dados que eu tinha e em cima de todo o processo que eu relatei que não é um processo superficial”.

Sergio Etchegoyen, ex-chefe do Estado Maior, é um homem branco calvo com olhos claros. Sergio Etchegoyen usa óculos e veste farda do exército brasileiro.
Sergio Etchegoyen, ex-chefe do Estado Maior

Cada vez mais longe da ditadura

Para a população em geral, no entanto, as questões têm sido outras. Haveria algum comunista entre eles? Seriam eles bolsonaristas? E quantos seriam? E se fossem bolsonaristas teriam mais chances de serem promovidos? Estariam eles preparando um golpe, caso Bolsonaro não seja reeleito? Quais riscos corremos de que aconteça algo como em 1964?.

No livro “Forças Armadas e Política no Brasil”, o professor e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), José Murilo de Carvalho, responde a essas questões e também à pergunta crucial sobre qual diferença dos membros deste ACE em relação aos seus antecessores que abraçaram a candidatura e o governo Bolsonaro, relembrando que os oficiais-generais de hoje ingressaram na carreira antes da redemocratização, mas os oficiais que estavam em escalões mais baixos já tiveram experiência distinta.

Na prática e de acordo com a relação dos membros do ACE desde 2017 obtida via Lei de Acesso de Informação (LAI) pela Pública, essa renovação já vem acontecendo. Sem falar nos mais antigos das turmas de 69 (como o general Augusto Heleno, ministro chefe do GSI), também ficaram para trás os colegas de Bolsonaro na Aman de 1977.

O atual Comandante, general Marco Antônio Freire Gomes, o último remanescente da turma de 80, passará o cargo ao escolhido pelo próximo presidente da República no começo de 2023.

Os demais membros do Alto Comando se formaram a partir da primeira década de 80. Naquela época o presidente Ernesto Geisel já havia enquadrado a linha dura e iniciava a abertura “lenta, gradual e segura”. Seu sucessor, o general João Baptista Figueiredo, ameaçava “prender e arrebentar” quem se opusesse à abertura. Esses oficiais viveram nos quartéis os últimos dias de um regime exaurido, impopular e à voltas com uma situação econômica que espremia os salários e gerava protestos Brasil afora. Isso ajuda a explicar a veemência com que costumam rechaçar – sempre em off – as ideias de golpes ou quaisquer medidas que fujam das regras estabelecidas pela Constituição. As novas gerações têm consciência do custo que o regime militar impôs às Forças Armadas.

Etchegoyen, que é sete turmas mais sênior que a atual formação do Alto Comando, lembra que há pouco tempo fez uma palestra e comentou que não se recordava de outro país que tivesse passado por todos os “estresses” que o Brasil passou nos últimos anos “sem nenhum solavanco institucional”.

“Só isso é um atestado de resistência, de consolidação, do valor que damos à democracia”, afirma, lamentando as conclusões que aparecem sem nenhum fundamento, em sua opinião: “Com a maior sem cerimônia do mundo, dizem que o ACE vai fazer isso ou aquilo. Mas isso não existe”.

“Você não faz ideia do quanto isso me dói profundamente”, completa Etchegoyen.

Aproximadamente de dois em dois meses, os 16 generais do Alto Comando do Exército (ACE) ocupam seus lugares à mesa em formato de U, montada na sala do Comandante. Na cabeceira, o Comandante. À sua direita o Chefe do Estado Maior e à esquerda o mais antigo dos generais. De uma ponta à outra da mesa será essa ordem, a da antiguidade, que indicará o assento de cada um. Portanto, o mais novo general de quatro estrelas estará na cadeira de um dos extremos, a mais distante do Comandante.

Reunião do Alto Comando do Exército.
Reunião do Alto Comando do Exército

Em média, a cada ano ele avançará quatro cadeiras, passando de lugar em lugar até chegar ao lado do Comandante, “a cadeira ejetora”, como é chamada em tom de brincadeira e, nessa hora, existirão dois caminhos à sua frente: o poder do comando ou a aposentadoria. Seja qual for o rumo, culminará aí uma carreira de aproximadamente 35 anos, iniciada na juventude na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), um curso de quatro anos em regime de internato. De cada turma formada na Academia, cerca de 6% dos cadetes chegarão a general de Brigada (duas estrelas), entre 2 e 3% chegarão a general de Divisão (três estrelas) e apenas quatro – o equivalente a mais ou menos um por cento – conseguirão estar no ACE na posição de generais de Exército (com quatro estrelas).

Nas reuniões de promoção do ACE, o trabalho meticuloso apresentado nos relatos sobre cada um dos candidatos deixa pouco tempo para que outros temas sejam tratados oficialmente e registrados na ata. Nas demais reuniões, há espaço para mais temas. São usuais as avaliações de conjuntura política e econômica – que, ultimamente, os generais costumam dizer que não acontecem.

Na prática, não é que não aconteçam. Mas é que para que elas ocorram nem sempre é necessária a formalidade da reunião. Os diversos meios de comunicação que existem hoje permitem que sejam feitas em grupos de WhatsApp, e videoconferências etc.

Ao final dos encontros, o Centro de Comunicação Social do Exército (CCOMSEX), publica um texto padrão na página do site do Exército. Informa o número da reunião e diz: “Nesta reunião foram discutidos interesses da Força”.

E como é que o Alto Comando trabalha? O general Sérgio Etchegoyen explica que o ACE é “um conselho às avessas”. O Comandante, assinala ele, não responde ao Alto Comando, mas o ouve obrigatoriamente nas questões de economia e finanças e, ao seu critério, nos temas que ele achar convenientes.

Isso muda completamente, quando são tratadas as promoções: “Aí, o comandante é um par. Ele é um voto”, acrescenta o General. Exceto, é claro, se houver um empate, pois o voto do comandante é um “voto qualificado”.

Criada em 1972, a Comissão de Promoção de Oficiais está completando 50 anos. É presidida pelo Chefe do Estado Maior do Exército e o secretário é o Diretor de Avaliação e Promoções do Departamento Geral de Pessoal. O Comandante do Exército nomeia entre os generais de Divisão e de Brigada que estão em Brasília, um ou mais relatores em função dos efetivos, para cada Arma (Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia, Comunicações, Material Bélico e Intendência – esta última só chega a general de Divisão).

Esses relatores estudam a vida de cada um dos candidatos, entre os que cumprem os requisitos para a promoção. São eles também que classificam e fazem um ranking entre os escolhidos, em geral de um a quatro. “Quando o relatório for apresentado, o general que o fez terá que dizer por que está propondo esta ou aquela ordem”, diz Etchegoyen.

Dessa última apreciação, sairá a lista, na prática uma ata, que será entregue ao Comandante do Exército. Ele pode alterar novamente as colocações para que o ACE decida, ou deixar a relação como está. “Quando o comandante assina essa relação, está formalizada o que a gente chama de a lista de acesso por escolha. É a matéria prima do Alto Comando. É com ela que o ACE trabalha”, aponta Etchegoyen.

E, no final, como funciona? Na reunião do ACE, o general mais antigo de cada Arma apresenta os coronéis que estão concorrendo. Ele ainda pode pedir mais dados sobre cada um dos postulantes, novas informações e até, mais uma vez, inverter a ordem em que eles foram colocados. “É um processo demorado, cansativo e, para mim, muito desagradável. Eu não gostava. Sempre se perde. Promover alguém é perder alguém”, define Etchegoyen.

O futuro comandante

O próximo presidente da república, a ser eleito em outubro, poderá escolher entre os generais de Exército o comandante da Força na ativa ou na reserva. A escolha, nos últimos governos, tem sido sobre um dos integrantes do ACE. Se for seguida a tradição de optar pelos oficiais mais antigos do ACE, três generais poderiam assumir o cargo.

O general Valério Stumpf Trindade, que foi promovido a general de Exército em julho de 2019. É o atual Chefe do Estado-Maior do Exército, cargo que assumiu no dia 5 de maio de 2022, após deixar o Comando Militar do Sul. Nasceu em 26 de fevereiro de 1960, em São Gabriel, no Rio Grande do Sul, filho de um Coronel do Exército. Foi incorporado ao Exército em 1975, na Escola Preparatória de Cadetes. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, serviu no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que controla a Abin. Também foi o número dois do atual ministro do GSI, Augusto Heleno, cargo que também exercera quando Etchegoyen estava à frente do Gabonete. É considerado um profissional muito centrado. Não usa redes sociais, é bastante reservado, tem prestígio na Força. Priorizaria as atividades profissionais da Força, defendendo o Exército afastado da política.

Outro nome sobre a mesa será o do General Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, promovido a general de Exército em 31 de julho de 2019. É, hoje, o Comandante Militar do Sudeste. Nascido em 29 de setembro de 1960, em São Paulo (SP), incorporou-se ao Exército em 1975, na Escola Preparatória de Cadetes. Foi Ajudante de Ordens dos presidentes Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Participou tanto da Missão de Paz no Haiti – onde foi Subcomandante do Batalhão de Infantaria – quanto da ocupação do Alemão, a Operação Arcanjo VI, em 2012. Foi chefe de gabinete do ex-Comandante do Exército que mudou o perfil da Força, o general Eduardo Villas Bôas, conhecido pelo Tweet sobre a votação do STF para manter Luís Inácio Lula da Silva na prisão, em 2017.

Antes de assumir o Comando Militar do Sudeste, chefiou o Departamento de Educação e Cultura do Exército. Muito respeitado no Exército e conhecido da imprensa, é considerado brilhante intelectualmente. Tem um perfil moderado, afável e terá jogo de cintura se for preciso enfrentar momentos mais críticos ou na reeleição de Bolsonaro ou na transição para um governo petista. Defende o Exército afastado da política.

O terceiro nome é do general Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, que foi promovido a general de Exército em 25 de novembro de 2019. Lidera o Comando de Operações Terrestres (COTER). Nascido em 25 de abril de 1961, na cidade de Fortaleza, no Ceará, é o mais jovem. Foi incorporado às fileiras do exército em março de 1979 – cinco meses antes da Lei da Anistia – na Academia Militar das Agulhas Negras. Ele descende de uma família de militares que está no Exército desde o Império, todos generais. Atualmente, além dele, são mais cinco irmãos generais.

Um deles, Guilherme Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, ex-Comandante Militar da Amazônia, concorreu ao governo do Ceará na eleição de 2018 pelo PSDB, apoiado por Tasso Jereissati. Entre os três, ele é o que tem mais familiaridade com a mídia. É considerado um moderado, mas a proximidade de sua família com o PSDB do Ceará certamente atrapalharia sua indicação tanto em um governo Bolsonaro, como em um governo Lula.

Wilson Dias/Agência Brasil
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