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Entrevista

Ynaê Lopes dos Santos: “7 de setembro é a data de fundação desse racismo brasileiro”

Historiadora fala sobre o sequestro narrativo da independência: "o bolsonarismo e tudo que ele representa está tentando manter a ideia de que só uma história foi possível"

Entrevista
6 de setembro de 2022
14:00
Este artigo tem mais de 1 ano

A historiadora Ynaê Lopes dos Santos, especialista na História da escravidão e das Relações raciais nas Américas, lançou recentemente o livro Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022). Nele, ela recapitula a história do Brasil a partir da chegada dos portugueses e chama atenção para o protagonismo de movimentos e personagens negros que foram ocultados dos livros de história tradicionais.

Ynaê também é consultora em história do projeto Querino, um podcast idealizado e coordenado pelo jornalista Tiago Rogero, produzido pela Rádio Novelo, que explica o Brasil de hoje e a sua história a partir de um olhar afrocentrado.

Nesta entrevista à Agência Pública, concedida no Rio de Janeiro, Ynaê explica que não houve uma independência, mas várias independências e que o 7 de setembro é a data de fundação desse racismo brasileiro. Segundo ela, “o bolsonarismo, na verdade, representa uma continuidade de uma forma de pensar, organizar e administrar o Brasil, de uma elite que não sai do poder há praticamente 200 anos. Que a história do homem branco, colonizador e do grande herói tem de prevalecer”.

A seguir, a entrevista.

Ynaê Lopes dos Santos, é uma mulher negra com cabelos cacheados e olhos escuros.
Mestre e Doutora em História Social pela USP, Ynaê é professora de História das Américas na UFF

Em uma entrevista sua, por conta do lançamento do seu livro, você diz que “o objetivo do livro é mostrar que é impossível pensar a história do Brasil sem atrelá-la ao racismo. Se tem uma tese no livro, é essa: a história do Brasil é a história do racismo no Brasil. Não há nenhuma dimensão da história brasileira que não seja pautada pelo racismo”. Minha primeira pergunta é como, então, o que sabemos sobre o 7 de setembro e a independência se inserem nesse contexto racista?

Pensando num nível nacional, a gente pode dizer que o 7 de setembro é a data de fundação desse racismo brasileiro mesmo, pois é quando a gente passa a ter um estado nacional soberano e independente. E por várias questões. A primeira delas, pensando no momento daquele 7 de Setembro de 200 anos atrás, diz respeito às escolhas políticas que foram feitas pelas oligarquias brasileiras. E uma das maiores escolhas políticas foi, justamente, apostar na escravidão pro futuro.

No momento em que a escravidão já era uma instituição abertamente combatida, seja pelo movimento mais radical de todos, a revolução do Haiti, seja também pelo crescimento significativo do abolicionismo inglês, que ganhou força na passagem do século 18 pro 19 a ponto de virar política pública. A Inglaterra era uma das principais parceiras econômicas do Brasil e condicionou o reconhecimento dessa independência à abolição do tráfico transatlântico.

A despeito disso e a despeito, inclusive, de um projeto que nem chegou a ser debatido efetivamente, que previa o fim gradual da escravidão, as elites brasileiras se organizam numa constituição bem problemática, que foi outorgada por Dom Pedro I num dos seus autoritarismos — que foram muitos — mas que tem a escravidão, mesmo que silenciada, como estratégia. Então, a gente tem uma constituição abertamente liberal, com a possibilidade dos descendentes de africanos escravizados na condição de libertos poderem ser cidadãos de segunda categoria.

Ao mesmo tempo, você tem toda a organização, toda a legitimidade para manutenção da escravidão. E essa manutenção se dá no caso específico da constituição, no artigo 179, que garante o direito à propriedade privada para o cidadão brasileiro. E o chão comum é ser proprietário de escravizados. Então, a identidade nacional que forja esse país naquele momento foi pensada por essas oligarquias a partir do medo do fim da escravidão.

Você também escreveu num artigo, quando do 7 de setembro de 2021, sobre os “outros gritos da independência do Brasil”. E me chamou atenção o fato de você dizer que é extremamente significativo que tenhamos aprendido tão pouco sobre as Guerras de Independência no nosso próprio país. Como se elas nunca tivessem existido. No bicentenário da independência, como você avalia o Bolsonarismo tentando sequestrar a data para sua narrativa política?

O bolsonarismo, na verdade, representa uma continuidade de uma forma de pensar, organizar e administrar o Brasil, de uma elite que não sai do poder há praticamente 200 anos. Você tem famílias que estão no poder praticamente desde o século 19. As perspectivas mais conservadoras tomam o 7 de setembro como começo e fim da independência. As perspectivas mais progressistas, das quais eu, obviamente, coaduno, pensam o 7 de setembro como uma espécie de convite para pensar esse processo de independência. Por isso, a gente tem que recuar para a chegada da família real e não pode parar só no 7 de setembro.

Porque, para se consolidar essa independência a gente teve uma série de guerras e essas guerras foram em grande medida vividas e experimentadas, protagonizadas pela população brasileira com muitas aspas porque o Brasil ainda estava em gestação. A gente tem, factualmente falando, uma série de Guerras em diferentes localidades do Brasil, talvez as mais conhecidas tenham acontecido em Pernambuco e na Bahia, e foram guerras fundamentais para que se consolidasse a retirada das tropas portuguesas. A história do Brasil precisa se alargar um pouco no tempo para ser entendida, porque é uma história muito dinâmica, muito complexa e muito violenta com intensa participação negra e indígena.

Ou seja, nunca fomos pacíficos como se tentou emplacar nos livros.

Esse é um dos mitos da fundação brasileira, achar que a gente é um povo pacífico. Que a gente não entrava em guerra. O que a gente tem no nosso 7 de Setembro é a construção de uma elite que a partir de 1940, sobretudo, organizou uma história do Brasil na qual as disputas políticas perdem espaço junto com boa parte dos sujeitos que travaram as disputas políticas, que são os negros e indígenas que estavam pensando outros brasis.

De certa maneira, o bolsonarismo e tudo que ele representa está tentando manter a ideia de que só uma história foi possível. Que a história do homem branco, colonizador e do grande herói tem de prevalecer. Para isso, tem que trazer o coração no formol, do homem do grito do Ipiranga, nosso primeiro monarca, que abandona o filho e que prefere ser um rei português do que ser um monarca brasileiro, né? Fora todas as outras questões do patriarcado, a forma como ele tratava a esposa, os acordos econômicos que fez com muitos traficantes de escravos.

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia oficial de chegada ao país do coração de Dom Pedro I
“O bolsonarismo representa uma continuidade de uma elite que não sai do poder há praticamente 200 anos”, afirma Ynaê Lopes

Recuperar esse homem [Dom Pedro I] é justamente tentar silenciar outras histórias — não é só de hoje que a população brasileira vem tentando construir outros Brasil, né? Ao trazer o coração de Dom Pedro I, ele [Bolsonaro] está abafando essas disputas históricas. Ele está trazendo o coração do imperador, o que é muito simbólico e muito poderoso no silenciamento das outras histórias. Você silencia, inclusive, a complexidade desse monarca, que era um homem bem complicado, pra dizer o mínimo, e que organiza um Estado abertamente escravagista e racista, porque nesse momento as duas coisas caminhavam bem juntas.

Sobre a figura do Dom Pedro I, o que nos é ensinado é que é um monarca, herói, libertador. Você acha que o Bolsonaro, então, tenta colar a ideia de ser uma espécie de libertador quando traz o coração para cá?

Sem dúvida. Ele está reverenciando. É como se ele tivesse uma conexão direta com a essência. Pelo coração. Pra mim, um dos ensaios mais brilhantes que a gente tem é o Raízes do Brasil, do Sérgio Buarque de Holanda, que fala do homem cordial. A sacada do Sérgio Buarque é entender a forma como o brasileiro constrói essas relações, sobretudo as relações políticas, por meio dessa mistura do público e do privado. E a forma como a gente acessa o outro é pelo coração.

Obra “Independência ou Morte”, conhecida também como “O Grito do Ipiranga”
Obra “Independência ou Morte”, conhecida também como “O Grito do Ipiranga”

Também muito se fala sobre o famoso quadro da independência do Pedro Américo (Independência ou morte, 1888), que está de volta na reinauguração do Museu do Ipiranga. Queria saber de você quais as inverdades presentes na tela? O que o quadro não revela?

Primeiro, pensando no quadro como documento histórico, é pensar nas condições em que foi feito, e por quem ele foi feito. Ele é feito num momento em que a monarquia estava numa decadência muito evidente. Ele foi encomendado pela monarquia. O que tem de verdade é o Dom Pedro I e o córrego do Ipiranga, que nem é um rio. Então, ele coloca os cavalos, né? Mas essa viagem foi feita em mulas porque os cavalos não aguentariam. O relevo é plano, Pedro Américo eleva o relevo para dar uma uma suntuosidade e cria um cenário heróico para que esse herói maior, que é Dom Pedro I, pudesse estar. Américo pega a referência de vários quadros franceses, de Napoleão Bonaparte, é quase um ‘control c + control v’ que ele faz. Mas tem uma verdade ali também. É a ausência do negro, ausência de indígenas. Para quem que foi essa independência que o Pedro Américo está representando? Você não tem a heterogeneidade brasileira, você não tem a complexidade racial colocada. É uma repactuação, digamos, que o Pedro Américo faz de algo que já vinha sendo organizado por essa elite brasileira que é um silenciamento tácito no que diz respeito à questão racial mantendo essa desigualdade como algo estruturante da sociedade brasileira.

E o papel de Maria Leopoldina na história da independência?

Primeiro, ela tem um papel fundamental porque ela é a regente enquanto Dom Pedro I está fora numa viagem demorada. Nesse momento, quem está no poder de comando do estado é Leopoldina com ajuda de José Bonifácio. Ao que tudo indica, ela aponta para a separação de Portugal. Isso no dia 2 de setembro, se eu não me engano. Ela envia uma carta e o Bonifácio envia outra, mas neste momento em que essa carta é enviada, a separação já é algo, digamos, reconhecida por essa elite brasileira. E a Leopoldina tem uma história incrível, que foge de uma série de estereótipos desse universo feminino aristocrático.

Você que estuda a história e compreende o significado deste momento, como é que vê o Bolsonaro nesse contexto do 7 de setembro?

Acho que ele vai partir para um tipo de identificação que é muito forte no Brasil. E da qual na verdade ele é herdeiro, que é atrelar a imagem ao militarismo, a dignidade do soberano e do herói branco. E tentar se consagrar como um grande herdeiro, que defende a família brasileira, cristã. Então ele vai recuperar de forma grotesca esses aspectos, esses mitos, né? Os baluartes desse Brasil e sua elite que mandaram nos últimos 200 anos.

Arquivo pessoal
Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Pedro Américo/Wikimedia Commons

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