A política indígena do governo de Jair Bolsonaro (PL) rendeu frutos eleitorais – só que para seu adversário. Em 48 urnas localizadas em territórios indígenas, espalhadas por 11 estados, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi unanimidade. Esse número de seções eleitorais representa cerca de ⅓ das 143 urnas em que o candidato do PT recebeu 100% dos votos válidos, de acordo com levantamento da Agência Pública.
As urnas unânimes viraram notícia na última semana por conta de notícias falsas disseminadas pela rede de desinformação bolsonarista, que apontavam as seções eleitorais com zero votos para Bolsonaro como “prova” de que a eleição foi fraudada. Em alguns casos, o resultado eleitoral de uma seção em que o candidato do PL passou em branco era distorcido e apontado como se representasse toda uma cidade, o que não ocorreu em nenhum local do país. A narrativa falsa foi reforçada por uma live do jornalista argentino Fernando Cerimedo, que é ligado ao deputado federal e filho do presidente Eduardo Bolsonaro (PL). O vídeo, em que ele mencionava um “dossiê” sobre as fraudes, foi retirado do ar pelo YouTube.
A Pública ouviu lideranças de algumas das comunidades que deram 100% dos votos válidos para Lula. Eles citam justamente a política anti-indígena do atual presidente como principal justificativa para o resultado eleitoral dessas seções.
No “coração do agro”, indígenas dizem não a Bolsonaro
Somadas, as cidades de Confresa e de Porto Alegre do Norte, ambas no Mato Grosso, deram 67,5% dos votos válidos para Jair Bolsonaro (PL), candidato derrotado nas eleições de 2022. Foram 14.547 os eleitores que escolheram o número do presidente não reeleito. Nenhum desses votos, porém, saiu das duas urnas localizadas no interior da Terra Indígena (TI) Urubu Branco, que ocupa cerca de 168 mil hectares das duas cidades e da vizinha Santa Terezinha.
Uma das seções, localizada em Confresa, foi alvo de ao menos duas fake news disseminadas por redes bolsonaristas. Em uma, um suposto eleitor afirmava em áudio ter viajado 1.600 km para votar em Bolsonaro, justamente na seção 28, localizada na Escola Estadual Tapi’Itawa, na Urubu Branco. Na outra, um apoiador do atual presidente questionava como era possível o candidato do PL não ter recebido nenhum voto em uma urna do Mato Grosso, “coração do agro”, estado onde ele venceu com cerca de 65% dos votos válidos.
Mas não há fraude: nas duas seções, uma em Confresa e a outra em Porto Alegre do Norte, Lula recebeu 383 e 55 votos, respectivamente, por decisão conjunta da comunidade, de acordo com o cacique Elber Ware’i Tapirapé. “Nós assistimos o presidente Jair Messias Bolsonaro durante a sua campanha, durante a sua gestão, falar sobre os povos indígenas. E a gente percebeu muito bem que ele não tinha interesse de lutar na questão indígena, principalmente na questão territorial. Ele deixou bem claro que não haveria, no governo dele, um centímetro de demarcação indígena e, durante quatro anos, ele não demarcou nenhum território indígena”, diz o cacique.
Os Tapirapé, que conquistaram a demarcação de seu território em 1998, mas ainda hoje sofrem com invasões, quase foram extintos nos anos 1950, quando chegaram a ter apenas 50 indivíduos. Hoje sua população se aproxima de 1.000 indígenas. “Também não teve nenhum projeto de apoio na questão da agricultura familiar indígena. E Bolsonaro vem acabando, sucateando a Funai, sucateando a Sesai [responsável pela saúde indígena]. Então a comunidade discutiu, todo mundo junto, e tanto no primeiro turno quanto no segundo turno o povo da comunidade votou 100% no presidente eleito”, resume Elber Tapirapé.
Além das urnas da Urubu Branco, mais dois territórios indígenas matogrossenses não deram nenhum voto para Bolsonaro. Em uma urna na TI Capoto/Jarina, em Peixoto de Azevedo, Lula recebeu todos os 116 votos válidos. O cenário se repetiu em seção de Santa Terezinha, onde o povo da Tapirapé/Karajá deu ao presidente eleito todos os 248 votos válidos.
A gota d’água e o copo d’água
Em Barreirinha, no Amazonas, o presidente eleito Lula recebeu uma de suas mais expressivas votações em termos percentuais, vencendo com 91,39% dos votos válidos, sendo escolhido por um total de 14.079 eleitores. Em uma das urnas do município, o candidato do PT foi unanimidade, recebendo todos os 237 votos válidos depositados na Escola Municipal Marechal Cândido Rondon. A urna está localizada na Aldeia Simão e é uma das sete seções onde votam os moradores da Terra Indígena Andirá-Marau, que ocupa cerca de 789 mil hectares distribuídos entre três cidades do Amazonas e três do Pará. Em todas elas, Lula venceu com ampla vantagem.
Durante a pandemia, os Sateré-Mawé perderam a sua principal liderança, que ocupava o cargo de Tuxaua Geral do povo. Amado Menezes Filho morreu aos 64 anos, em outubro de 2020, após passar mais de 20 dias internado devido a complicações da covid-19. Ele era uma das principais vozes na luta contra a disseminação do vírus em territórios indígenas, e havia denunciado o enfraquecimento de uma barreira sanitária pelo órgão responsável pela saúde indígena na TI em que vivia.
“Nós temos o sentimento de que fomos massacrados durante esses anos de governo Bolsonaro. As chamadas ‘minorias’ – que não são minoria, se nos unirmos –, especialmente as populações indígenas, foram alvo de uma política de extermínio, que já vem há alguns anos, mas que esse governo Bolsonaro foi o pior”, resume Jecinaldo Sateré, morador de Barreirinha e liderança do povo Sateré Mawé. Ele aponta a “política de destruição dos territórios” como a gota d ‘água.
Jecinaldo conhece bem a retórica anti-indígena de Bolsonaro, e não é de hoje. Em maio de 2008, quando o político de extrema-direita ainda era apenas um deputado do baixo clero, o atual secretário-geral do Conselho Geral da Tribo Sateré-Mawé (CGTSM) ganhou as manchetes nacionais ao arremessar o líquido de um copo d’água contra Bolsonaro durante audiência pública que discutia a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Na ocasião, o então deputado do PP-RJ discutia com o ministro Tarso Genro, da Justiça, atacando os povos indígenas. Jecinaldo, que era membro da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), reagiu. “Joguei água porque não tinha uma flecha”, disse na época.
Para ele, apesar dos erros cometidos ao longo dos anos do PT à frente do governo, o projeto apresentado por Lula é completamente distinto do de Bolsonaro, e representa “esperança”. “Com as propostas, com o aprendizado [dos mandatos anteriores], a gente espera ser ouvido. E espera que a criação do Ministério dos Povos Originários, seja um marco na criação de uma política de Estado, não apenas de assistencialismo, não apenas de distribuir o Bolsa Família. Que seja parte de uma política que busque a sustentabilidade, principalmente dos territórios e a garantia na prática dos direitos”, diz.
Kanelas dizem não a Bolsonaro
Em julho deste ano, reportagem da Pública revelou que 239 mil hectares de fazendas foram certificadas em cima de terras indígenas não homologadas, graças à Instrução Normativa n° 9 da Funai (IN 09), de abril de 2021, que passou a desconsiderar as áreas indígenas que não tiveram a demarcação finalizada no cadastro do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) federal. Graças a dezenas de ações movidas pelo Ministério Público Federal (MPF), a normativa da Funai foi derrubada em vários estados, mas seus efeitos ainda são sentidos em diversos territórios.
O estado mais afetado é o Maranhão, onde mais de 138 mil hectares de terras indígenas estavam sobrepostos por fazendas em julho, a despeito da normativa estar suspensa no estado desde fevereiro. A resposta dos indígenas maranhenses à medida do governo Bolsonaro veio nas urnas: em oito seções localizadas em TIs no estado, Lula recebeu todos os votos válidos, em um total de 1.843 eleitores. O Maranhão, aliás, lidera a lista de seções eleitorais, indígenas ou não, em que o candidato do PT foi unânime: foram 47. Além disso, Lula teve 71,14% dos votos válidos no estado todo.
Três das urnas indígenas em que Bolsonaro passou em branco no estado estão localizadas na TI Kanela/Memortumré, que tem cerca de 100 mil hectares e fica quase inteira na cidade de Fernando Falcão (MA), sendo duas delas na Aldeia Escalvado. Somadas, as três seções deram a Lula 662 votos. Segundo Carloman Koganon Canela, liderança da TI Kanela/Memortumré com quem a Pública já tinha conversado em julho, as certificações em cima de seu território estão entre os principais motivos para a unanimidade contra Bolsonaro na terra indígena.
“O governo do Bolsonaro não está olhando os povos indígenas e não está [trabalhando pelo] clima do Brasil e do mundo. [Nós também] tivemos problemas de massacre, de invasores dos territórios e o governo Bolsonaro certificou também algumas áreas dentro da nossa terra indígena. É por isso que os Kanela votaram no Lula”, afirma.
Além da Kanela Memortumré, Lula também foi unânime em seções localizadas na TIs Urucu-Juruá, Alto Turiaçu, Krikati (em duas seções) e Arariboia. Essa última, em especial, viu a violência, as invasões e o desmatamento dispararem durante o governo Bolsonaro. Era na Arariboia que vivia a liderança Paulo Paulino Guajajara, assassinado por madeireiros ilegais em novembro de 2019.
Terras que viram invasão aumentar também dão 100% para Lula
O Amazonas é o estado em que mais urnas localizadas em áreas indígenas deram vitória unânime para Lula, com 21 seções no total. Boa parte delas estão localizadas na cidade de São Gabriel da Cachoeira, que concentra o maior percentual de população indígena do país. No município, seis seções destinadas aos moradores da TI Alto Rio Negro não renderam um voto sequer a Jair Bolsonaro.
A outra seção de São Gabriel em que Lula teve 100% dos votos está localizada na Terra Indígena Yanomami, que foi unânime no candidato petista em outras duas urnas, ambas no município de Santa Isabel do Rio Negro. O território dos Yanomami viu as invasões de garimpeiros ilegais aumentarem exponencialmente durante o governo de Bolsonaro, atingindo inclusive indígenas isolados e provocando altos indíces de desnutrição infantil, além de outras moléstias.
Ainda no Amazonas, quatro seções da Terra Indígena Vale do Javari também deram 100% dos seus 547 votos para Lula. Foi na região da TI, localizada em Atalaia do Norte, que o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira foram assassinados, em junho deste ano. Fora as já citadas, o Amazonas também teve seções em que Bolsonaro foi completamente rechaçado nas TIs Betânia, Evaré I e Kulina do Médio Juruá.
Além de Amazonas (21), Maranhão (8) e Mato Grosso (5), Lula também alcançou 100% dos votos em urnas em terras indígenas de Pará (3), Minas Gerais (3), Roraima (2), Acre (2), Tocantins (1), Rio Grande do Sul (1), Mato Grosso do Sul (1) e Ceará (1). As seções unanimemente petistas incluem áreas como a TI Raposa Serra do Sol, em Roraima, e a TI Kayapó, no Pará.
Além das urnas indígenas, a maior parte das vitórias unânimes de Lula ocorreu em territórios quilombolas, em assentamentos – alguns deles ligados ao MST –, em povoados e em unidades prisionais.
As seções eleitorais indígenas totalmente petistas renderam a Lula um total de 9.125 votos, 0,015% dos mais de 60,3 milhões de eleitores do ex-presidente. Considerando todas as urnas em que o candidato petista foi unânime, foram 16.455 votos.
Já Jair Bolsonaro foi unanimidade em quatro seções eleitorais. Uma delas fica na Ilha Viçosa, na cidade de Chaves (PA), onde ele teve 39 votos. Lá, os candidatos do PT também não receberam votos em 2014 e em 2018. Outra seção fica em Charrua (RS), onde Bolsonaro teve 79 votos, enquanto as outras duas são originalmente de Caracas, na Venezuela, mas foram transferidas para Bogotá, na Colômbia, já que o Brasil não tem representação no país atualmente. Essas duas seções renderam 1 e 5 votos para o candidato derrotado. Ao todos, as urnas 100% bolsonaristas renderam 124 votos para o candidato do PL. O fenômeno de urnas unânimes também ocorreu em outras eleições.