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Como o general Mark Milley e outros lidaram com a ameaça à segurança nacional representada por Trump após a derrota

Reportagem
1 de dezembro de 2022
12:00
Este artigo tem mais de 1 ano

Assim como Jair Bolsonaro, Donald Trump não reconheceu a sua derrota na disputa pela reeleição em 2020, e incentivou protestos para tentar interromper a transição de poder. Ele também colocou enorme pressão sobre os militares. Agência Pública publica com exclusividade essa reportagem da revista The New Yorker sobre como nos Estados Unidos os militares atuaram para manter a ordem democrática. Este texto não pode ser republicado. Leia o original em inglês, aqui

No verão de 2017, apenas um ano e meio após sua chegada à Casa Branca, Donald Trump foi a Paris para as comemorações do Dia da Bastilha, promovidas por Emmanuel Macron, então presidente recém-empossado da França. Macron organizou uma espetacular exibição militar para celebrar o centenário da entrada norte-americana na Primeira Guerra Mundial. Tanques antigos desfilaram pela famosa avenida Champs Elysées enquanto caças cruzavam o céu. O evento parecia ter sido calculado para encantar Trump e atiçar seu senso de exibicionismo e grandiosidade – ele ficou visivelmente encantado. O general francês encarregado de organizar o desfile disse a um de seus colegas americanos: “no ano que vem será a sua vez”. 

De fato, Trump retornou a Washington determinado a fazer com que seus generais organizassem para ele a maior e mais grandiosa parada militar de 4 julho, dia da independência dos Estados Unidos. Mas os generais, para sua perplexidade, reagiram à ideia com repulsa. “Prefiro engolir ácido”, disse James Mattis, seu secretário de Defesa. Para dissuadir Trump, argumentaram que o desfile custaria milhões de dólares e obstruiria o trânsito na capital.

Mas o abismo entre Trump e seus generais não era causado exatamente por questões financeiras ou de ordem prática, assim como suas intermináveis batalhas políticas não eram apenas sobre opiniões conflitantes a respeito da retirada das tropas do Afeganistão ou sobre como combater a ameaça nuclear representada pela Coreia do Norte e pelo Irã. A discordância era também uma questão de valores, de como eles enxergavam seu país. 

Isso nunca ficou mais claro do que quando Trump contou a seu novo chefe de gabinete, John Kelly – um general aposentado dos Marine Corps, divisão do Exército americano, assim como Mattis – o que esperava para o Dia da Independência. “Eu não quero nenhum cara ferido no desfile”, afirmou o mandatário. “Não vou causar uma boa impressão assim”. Ele explicou com repugnância que no desfile do Dia da Bastilha havia várias fileiras de veteranos ex-combatentes feridos, incluindo soldados em cadeiras de rodas, que perderam braços e pernas em combate.

Kelly não podia acreditar no que estava ouvindo. “Esses são os heróis”, disse ele a Trump. “Em nossa sociedade, há apenas um grupo de pessoas mais heroicas do que eles – aqueles que estão enterrados em Arlington”. Kelly não mencionou que seu próprio filho Robert, um tenente morto em ação no Afeganistão, estava entre os enterrados no local, onde fica o cemitério nacional do Exército.

“Eu não os quero”, repetiu Trump, “Não vou causar uma boa impressão”.

O assunto voltou à tona durante uma reunião no Salão Oval entre Trump, Kelly e Paul Selva, general da Força Aérea e vice-presidente do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas. Kelly brincou sobre o “desfile”, mantendo seu costumeiro semblante impassível. “O General Selva vai se encarregar da organização do desfile de 4 de julho”, disse ele ao presidente. Trump não percebeu o sarcasmo de Kelly. “Então, o que você acha do desfile?”, perguntou o presidente a Selva. Em vez de lhe dizer o que ele queria ouvir, Selva foi direto ao ponto.

“Eu não cresci nos Estados Unidos, cresci em Portugal”, disse Selva. “Portugal era uma ditadura e o objetivo das paradas militares era mostrar ao povo quem detinha as armas. Neste país, não fazemos isso”. E acrescentou: “Não é isso que nós somos”. 

Mesmo após esse discurso acalorado, Trump ainda não entendeu. “Então, você não acha uma boa ideia?”, perguntou, incrédulo.

“Não”, declarou Selva. “Isso é o que fazem os ditadores.”

♦♦♦

Os quatro anos da presidência de Trump foram caracterizados por um imenso grau de instabilidade: acessos de raiva, tuítes bombásticos no meio da noite, demissões repentinas. A princípio, o presidente, que se esquivou do alistamento militar alegando uma exostose óssea – crescimento ósseo exagerado – , parecia apaixonado pela posição de Comandante Supremo das Forças Armadas e pelos funcionários da segurança nacional que ele havia nomeado ou herdado. Mas o caso de amor de Trump com “meus generais” foi breve e, em uma declaração para este artigo, ele confirmou o quanto o relacionamento azedou ao longo do tempo. “Eram pessoas sem talento e, quando percebi isso, passei a não confiar neles e a contar com os verdadeiros generais e almirantes do sistema”, afirmou.

Os generais, afinal, seguiam regras e padrões específicos e orientavam-se pela experiência em vez da lealdade cega. A reclamação feita pelo presidente em altos brados a John Kelly certo dia foi uma típica amostra do relacionamento entre eles: “Malditos generais, por que vocês não podem ser como os generais alemães?”

“Quais generais?”, perguntou Kelly.

“Os generais alemães da Segunda Guerra”, respondeu o mandatário.

“Você sabia que eles tentaram matar Hitler três vezes e quase conseguiram?”, rebateu Kelly.

Mas, Trump, é claro, não sabia disso. “Não, não, não, eles eram totalmente leais”, respondeu o presidente. Em sua versão da História, os generais do Terceiro Reich tinham sido completamente subservientes a Hitler e esse era o modelo que ele queria para suas forças armadas. Kelly disse a Trump que não havia generais americanos assim, mas o presidente estava determinado a testar a proposição.

No final de 2018, Trump queria escolher a dedo seu próprio Chefe do Estado-Maior Conjunto. Ele estava cansado de Joseph Dunford, um general da Marinha que havia sido nomeado à presidência do órgão por Barack Obama e que trabalhava em estreita colaboração com Mattis, resistindo a algumas das mais bizarras ideias de Trump. Pouco importava que Dunford ainda tivesse quase um ano pela frente em seu mandato. Durante meses, David Urban, um lobista que comandou a campanha vencedora de Trump em 2016 na Pensilvânia, instou o presidente e seu círculo íntimo a substituir Dunford por alguém mais compatível e menos alinhado com Mattis, que havia comandado Dunford e Kelly na Marinha.

O candidato de Mattis para suceder Dunford era David Goldfein, um general da força aérea e ex-piloto de caças F-16 que foi abatido nos Balcãs e escapou com sucesso da captura. Até aquele momento, não havia nenhum histórico de um presidente da República selecionar o presidente do Estado-Maior Conjunto passando por cima da opinião de seu secretário de Defesa, mas o Pentágono recebeu a notícia que de jeito nenhum Trump aceitaria a indicação de apenas um nome. Dois candidatos óbvios do Exército, no entanto, se recusaram a ser considerados: o general Curtis Scaparrotti, Comandante das Forças Aliadas da Otan na Europa, confidenciou a colegas oficiais que “não havia mais gasolina no meu tanque” para trabalhar com Trump. O general Joseph Votel, chefe do Comando Central, também se escusou, alegando que não era a pessoa certa para trabalhar tão próxima a Mattis. 

Urban, que havia frequentado a Academia Militar de West Point com o secretário de Estado de Trump, Mike Pompeo, e era um militar de corpo e alma, apoiava Mark Milley, chefe do Estado-Maior do Exército. Milley, então com sessenta anos, era filho de um oficial da Marinha e havia servido na 4ª Divisão de Fuzileiros Navais em Iwo Jima. Ele cresceu nos arredores de Boston e jogou hóquei pela Universidade de Princeton. Como oficial do Exército, Milley comandou tropas no Afeganistão e no Iraque, liderou a 10ª Divisão de Montanha e supervisionou o Comando das Forças do Exército. Estudante autônomo de História que costumava carregar uma pilha dos livros mais recentes sobre a Segunda Guerra Mundial, Milley não era membro da fraternidade de fuzileiros navais que dominou a política de segurança nacional nos primeiros dois anos de Trump. Urban disse ao presidente que ele se relacionaria melhor com Milley, que era falador e direto a ponto de ser rude, e tinha o pedigree da Ivy League, grupo das melhores universidades americanas, que sempre impressionou o mandatário.

O general Mark Milley é um homem branco com cabelos grisalhos e olhos claros, na imagem ele usa uniforme militar, e posa em frente a bandeira dos Estados Unidos.
General Mark Milley. Foto do DoD, Departamento de defesa dos EUA

Milley já havia demonstrado essas qualidades em reuniões com Trump como Chefe de Gabinete do Exército. “Milley ia direto ao ponto, explicando por que era importante para o presidente saber determinadas coisas sobre o Exército e por que o Exército é a Força que vence todas as guerras do país. Ele tinha uma coleção de frases de efeito engraçadas”, lembrou um alto funcionário da defesa. “Com aquele tom de voz alto e grave, ficava soltando aquelas frases espirituosas, e então respirava e dizia: ‘Sr. Presidente, nosso Exército está aqui para servi-lo. Porque você é o Comandante Supremo.’ Era uma abordagem muito diferente, e Trump gostou disso. Além disso, como Trump, Milley não se curvava à lenda de “Mad Dog Mattis” (Mattis, o Cachorro Louco), a quem ele considerava um “maníaco por controle”.

Mattis, por sua vez, acreditava que Milley estava fazendo uma campanha inapropriada para assumir o cargo e, conforme Milley lembraria mais tarde, Mattis o confrontou em um evento, dizendo: “Você não deveria concorrer a esse cargo. Você não deveria concorrer ao Comando.” Mais tarde, Milley disse que havia respondido duramente a Mattis: “Não estou fazendo lobby porra nenhuma. Eu não faço esse tipo de coisa.” Milley acabou levando a questão a Dunford. “Mattis enfiou essa ideia na cabeça”, Milley lhe disse. “Estou dizendo que não sou eu.” Milley chegou a afirmar que implorou a Urban para que parasse de promover sua candidatura.

Em novembro de 2018, um dia antes da entrevista marcada entre Milley e Trump, houve outra troca de farpas com Mattis no Pentágono. Conforme Milley relatou mais tarde, Mattis o encorajou a dizer a Trump que queria ser o próximo Comandante das Forças Aliadas na Europa, em vez de Chefe do Estado-Maior Conjunto. Milley disse que não faria isso, mas esperaria para ouvir o que o presidente queria que ele fizesse. O diálogo acabaria com o relacionamento entre os dois generais.

Quando Milley chegou à Casa Branca no dia seguinte, foi recebido por Kelly, que demonstrava uma agitação fora do comum. Antes de se dirigirem ao Salão Oval para o encontro com Trump, Milley pediu a Kelly sua opinião.

“Você deveria ir para a Europa e cair fora de Washington”, disse Kelly. A Casa Branca tinha virado uma latrina: “Vá para o mais longe que puder.”

No Salão Oval, Trump disse sem rodeios que estava considerando Milley para a Chefia do Estado-Maior Conjunto. Quando Trump lhe ofereceu o emprego, Milley respondeu: “Sr. Presidente, farei tudo o que me pedir”.

A seguir, eles conversaram sobre a situação mundial. Imediatamente, surgiram pontos de profundo desacordo. Sobre o Afeganistão, Milley disse acreditar que uma retirada completa das tropas norte-americanas, como Trump queria, causaria um novo conjunto de sérios problemas. E Milley já havia se manifestado publicamente contra a proibição de tropas de pessoas transgêneras, na qual Trump estava insistindo.

“Mattis me disse que você é fraco quando o assunto são os trans”, disse Trump.

“Não, eu não sou fraco”, respondeu Milley. “Eu só não me importo com quem dorme com quem”.

Havia outras diferenças também, mas no final Milley assegurou a ele: “Presidente, é você quem vai tomar as decisões. De minha parte, garanto que vou lhe dar respostas honestas e não vou falar sobre isso na primeira página do Washington Post. Vou lhe dar respostas honestas sobre tudo o que puder. As decisões serão suas e, desde que sejam legais, receberão todo o meu apoio”.

Desde que sejam legais. Não está claro o quanto essa ressalva foi registrada por Trump. A decisão de nomear Milley foi uma chance rara, na visão de Trump, de se vingar de Mattis. Trump confirmaria isso anos depois, depois de se desentender com ambos, dizendo que havia escolhido Milley apenas porque Mattis “não o suportava, não tinha respeito por ele e não o recomendaria”.

No final da noite de 7 de dezembro, Trump anunciou que revelaria uma grande decisão relacionada à equipe do Estado-Maior Conjunto no dia seguinte, na Filadélfia, no jogo anual de futebol americano entre o Exército e a Marinha. Isso foi tudo que Dunford soube a respeito de sua iminente humilhação pública. Na manhã seguinte, Dunford esperava com Milley a chegada do mandatário ao jogo quando Urban, o lobista, apareceu. Urban abraçou Milley. “Conseguimos!” comemorou Urban. “Conseguimos”!

Mas a nomeação de Milley nem foi a maior notícia do dia. Enquanto Trump dirigia-se a seu helicóptero para chegar ao jogo, soltou outra bomba. “John Kelly vai sair no final do ano”, contou ele a repórteres. Kelly durou dezessete meses no que ele chamou de “a pior merda de trabalho do mundo”.

Para Trump, a decisão foi um ponto de virada. Em vez de colocar na Casa Branca outro resoluto Chefe de Gabinete que poderia lhe dizer “não”, o presidente gravitou em direção a alguém que basicamente concordaria com o que ele quisesse. Uma semana depois, Kelly fez um último esforço malsucedido para persuadir Trump a não substituí-lo por Mick Mulvaney, um ex-congressista da Carolina do Sul que atuava como diretor de orçamento de Trump. “Não é uma boa ideia contratar um homem que diga amém para tudo”, disse Kelly ao presidente. “Estou me lixando”, respondeu Trump. “Eu quero um homem que diga amém para tudo”.

Pouco mais de uma semana depois disso, Mattis também estava fora, tendo se demitido em protesto contra a retirada abrupta das tropas norte-americanas da Síria por ordem de Trump, logo após seu encontro com aliados que lutavam ao lado dos EUA. Foi a primeira vez em quase quatro décadas que um importante secretário de gabinete renunciou devido a uma disputa de segurança nacional com o presidente da República.

Ex-Secretário de Defesa Jim Mattis é um homem branco com cabelos grisalhos, ele usa terno e gravata prata.
Ex-Secretário de Defesa Jim Mattis espera a chegada do presidente Donald Trump em 18 de janeiro de 2018, no Pentágono em Washington, D.C. (Foto fdo DOD por Dominique A. Pineiro)

O chamado “eixo dos adultos” acabou ali. Nenhum deles fez tanto para conter Trump quanto os críticos do presidente achavam que deveriam. Mas todos eles –Kelly, Mattis, Dunford, além de H. R. McMaster, o Conselheiro de Segurança Nacional, e Rex Tillerson, o primeiro Secretário de Estado de Trump – tinham servido como um muro de contenção de uma forma ou de outra. Trump esperava substituí-los por figuras mais maleáveis. Como diria Mattis, Trump estava tão profundamente submerso em dificuldades que decidiu esvaziar a piscina.

No dia 2 de janeiro de 2019, Kelly enviou um e-mail de despedida à equipe da Casa Branca. Ele disse que essas eram as pessoas de quem sentiria falta: “Os abnegados, que trabalham duro para o povo americano e nunca se rebaixaram para lutar na lama com os porcos. Aqueles que ficam acima do dramalhão, deixam de lado a ambição pessoal e a política e simplesmente trabalham para o nosso grande país. Aqueles que foram éticos, morais e sempre disseram ao seu chefe o que ele ou ela PRECISAVA ouvir, e não o que queria ouvir”.

Na mesma manhã, Mulvaney chegou à Casa Branca para seu primeiro dia oficial como Chefe de Gabinete Interino. Ele convocou uma reunião geral e fez um anúncio: OK, vamos fazer as coisas de maneira diferente. John Kelly se foi e vamos deixar o presidente ser o presidente.

♦♦♦

No outono de 2019, quase um ano após ter sido nomeado Chefe do Estado-Maior Conjunto por Trump, Milley finalmente assumiu o cargo de Dunford. Depois de duas semanas na posição, Milley sentou-se ao lado de Trump em uma reunião na Casa Branca com líderes do Congresso para discutir uma crise iminente no Oriente Médio. Trump havia ordenado novamente a retirada das forças norte-americanas da Síria, colocando em perigo os aliados curdos dos Estados Unidos e efetivamente entregando o controle do território ao governo sírio e às forças militares russas. A Câmara dos Deputados – em meio a um processo de impeachment contra o presidente por reter quase 400 milhões de dólares em assistência de segurança à Ucrânia como moeda de troca para exigir uma investigação de seu oponente democrata, Joe Biden – aprovou uma resolução não-vinculativa repreendendo Trump pela retirada das tropas. Até mesmo os republicanos – dois terços deles –votaram a favor da resolução na Câmara.

Durante a sessão, a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, destacou o voto contrário ao presidente. “Parabéns”, disparou Trump com sarcasmo. Ele ficou ainda mais irritado quando o líder democrata do Senado, Chuck Schumer, leu um comunicado de Mattis afirmando que deixar a Síria poderia resultar no ressurgimento do Estado Islâmico. Em resposta, Trump ridicularizou seu ex-Secretário de Defesa como “o general mais superestimado do mundo”, acrescentando: “Sabem por que eu o demiti? Eu o demiti porque ele não era forte o suficiente”.

Por fim, Pelosi, tomada pela frustração, levantou-se e apontou para o presidente. “Todos os caminhos com você levam a Putin”, protestou ela. “Você entregou a Ucrânia e a Síria à Rússia”.

“Você é apenas uma política, uma política de terceira categoria!” Trump atirou de volta.

Steny Hoyer, o líder da maioria na Câmara e número dois de Pelosi, estava farto. “Isso não está servindo para nada,” declarou, e levantou-se para deixar o recinto ao lado da congressista democrata.

“Nos vemos nas urnas”, vociferou Trump quando eles saíram.

Quando deixou a Casa Branca, Pelosi disse aos repórteres que saiu porque Trump estava tendo um “surto”. Algumas horas depois, Trump tuitou uma fotografia da Casa Branca com Pelosi de pé, apontando para ele, aparentemente pensando que isso provaria que era ela quem estava tendo um colapso. No entanto, a imagem se tornou viral como um exemplo de Pelosi confrontando Trump.

Foto publicada por Trump na rede social Twitter, podemos ver Nancy Pelosi em pé vestindo um blazer azul apontando para Donald Trump.

Milley também pode ser visto na fotografia, apertando as próprias mãos, com a cabeça baixa, parecendo querer afundar no chão. Para Pelosi, isso foi um sinal de fraqueza inexplicável, e ela diria mais tarde que nunca entendeu por que Milley não enfrentou Trump naquela sessão. Afinal, ele era o líder apartidário das Forças Armadas, não um dos bajuladores de Trump. “Seria de se esperar que Milley tivesse mais independência”, declarou Pelosi, “mas ele apenas abaixou a cabeça”.

Na verdade, Milley já estava com o pé atrás em relação a Trump. Naquela noite, ele ligou para o deputado Adam Smith, um democrata de Washington e presidente do Comitê das Forças Armadas da Câmara, que também esteve presente na sessão. “Costuma ser sempre assim?” Milley perguntou. Como Smith afirmou mais tarde: “Foi nesse momento que Milley percebeu que seu chefe poderia ter um ou dois parafusos soltos”. Não houve lua de mel. “Desde seu primeiro dia de trabalho como Chefe do Estado-Maior Conjunto”, afirmou Smith, “Milley estava ciente do fato de que tinha um desafio pela frente que não era o desafio normal com um Comandante Supremo”.

No início da noite de 1º de junho de 2020, Milley falhou no que ele entendeu mais tarde ter sido o maior teste de sua carreira: uma curta caminhada da Casa Branca até a Praça Lafayette, minutos depois de manifestantes do movimento Black Lives Matter terem sido dispersados de forma violenta do local. Paramentado com uniforme de combate, Milley marchou atrás do presidente com um grupo de assessores para uma sessão fotográfica, a mais infame da Presidência de Trump, que pretendia projetar uma resposta contundente aos protestos que estavam ocorrendo em frente à Casa Branca e em todo o país desde o assassinato, na semana anterior, do jovem negro George Floyd pela polícia de Mineápolis. A maioria das manifestações foi pacífica, mas também houve erupções de saques, violência nas ruas e incêndios criminosos, incluindo um pequeno incêndio na Igreja de Saint John, em frente à Casa Branca.

Na manhã anterior à sessão fotográfica na Praça Lafayette, Trump entrou em conflito com Milley, com o secretário do Departamento de Justiça, o procurador-geral  William Barr e com o secretário de Defesa, Mark Esper, exigindo uma demonstração de força militarizada. “Parecemos fracos”, disse Trump a eles. O presidente queria invocar uma lei de 1807, a Lei da Insurreição, e usar militares da ativa para reprimir os protestos. Ele queria dez mil soldados nas ruas e a 82ª Divisão Aerotransportada convocada. E exigiu que Milley assumisse o comando pessoalmente.

Quando Milley e os outros resistiram, afirmando que a Guarda Nacional seria suficiente, Trump gritou: “Vocês são todos perdedores! Vocês são todos perdedores de merda!” E, virando-se para Milley, questionou: “Você não pode simplesmente atirar neles? Só atirar nas pernas deles ou algo assim”?

Finalmente, Trump foi persuadido a não enviar militares contra cidadãos americanos. Barr, como ministro que dirige as forças de segurança nacionais, recebeu o papel de responder aos protestos, e a Guarda Nacional foi destacada para ajudar a polícia. Horas depois, Milley, Esper e outros funcionários foram convocados de volta à Casa Branca e marcharam pela Praça Lafayette. Enquanto caminhavam, o cheiro de gás lacrimogêneo ainda no ar, Milley percebeu que não deveria estar ali e saiu, dirigindo-se silenciosamente para seu carro Chevy Suburban preto. Mas o estrago estava feito. Ninguém se importaria ou mesmo lembraria que ele não estava presente quando Trump ergueu uma Bíblia em frente à igreja depredada; ele já tinha sido visto caminhando em seu uniforme de combate com o presidente ao vivo na televisão, uma imagem que parecia sinalizar que os Estados Unidos sob Trump eram, finalmente, uma nação em guerra consigo mesma. Milley sabia que esse fora um erro de julgamento que o perseguiria para o resto da vida, um “ponto de inflexão”, como diria mais tarde. O que faria ele a respeito?

Nos dias que se seguiram ao ocorrido na Praça Lafayette, Milley sentou-se em seu escritório no Pentágono, escrevendo e reescrevendo rascunhos de uma carta de demissão. Havia versões curtas da carta; havia versões longas. Sua versão preferida era a que dizia, na íntegra:

Lamento informar que pretendo renunciar ao cargo de Comandante do Estado-Maior Conjunto. Agradeço pela honra de me nomear como oficial sênior. Os eventos das últimas duas semanas me levaram a fazer um profundo exame de consciência e não posso mais apoiar e executar fielmente suas ordens como Comandante do Estado-Maior Conjunto. É minha convicção que você vem causando um dano grande e irreparável ao meu país. Acredito que você fez um esforço concentrado ao longo do tempo para politizar as forças armadas dos Estados Unidos. Achei que poderia mudar isso. Cheguei à conclusão de que não posso e preciso me afastar e deixar outra pessoa tentar.

Em segundo lugar, você está usando os militares para criar medo na mente das pessoas – e estamos tentando proteger o povo americano. Não posso ficar de braços cruzados e participar desse ataque, verbal ou não, ao povo americano. O povo americano confia em seus militares e confia em nós para protegê-lo de todos os inimigos, estrangeiros e domésticos, e nossos militares farão exatamente isso. Não vamos virar as costas ao povo americano.

Em terceiro lugar, fiz um juramento à Constituição dos Estados Unidos e nessa Constituição está presente a ideia de que todos os homens e mulheres são criados iguais. Todos os homens e mulheres são criados iguais, não importa quem você seja, se é branco ou negro, asiático, indiano, não importa a cor da sua pele, não importa se você é gay, hétero ou algo entre os dois. Não importa se você é católico, protestante, muçulmano, judeu ou não possui crença religiosa. Nada disso importa. Não importa de que país você veio, qual é o seu sobrenome – o que importa é que somos americanos. Somos todos americanos. Isso sob as cores vermelho, branco e azul – as cores pelas quais meus pais lutaram na Segunda Guerra Mundial – significa algo no mundo todo. É óbvio para mim que você não pensa nessas cores da mesma maneira que eu. É óbvio para mim que você não respeita os valores e a causa à qual eu sirvo.

E, finalmente, acredito profundamente que você está arruinando a ordem internacional e causando danos significativos ao nosso país no exterior, que foi tão duramente defendido pela Grande Geração instituída em 1945. Entre 1914 e 1945, 150 milhões de pessoas foram massacradas pela guerra. Elas foram massacradas por tiranias e ditaduras. Essa geração, como todas as gerações, lutou contra isso, lutou contra o fascismo, lutou contra o nazismo, lutou contra o extremismo. Agora ficou evidente para mim que você não entende essa ordem mundial. Você não entende do que se tratava a guerra. Na verdade, você concorda com muitos dos princípios contra os quais lutamos. E eu não posso fazer parte disso. É com profundo pesar que apresento minha carta de renúncia.

A carta estava datada de 8 de junho, exatamente uma semana depois do ocorrido na Praça Lafayette, mas Milley ainda não tinha certeza se deveria entregá-la a Trump. Ele estava enviando sinais, buscando conselhos em círculos variados. Procurou Dunford e outros mentores, como o general aposentado do Exército James Dubik, um especialista em ética militar. Também ligou para contatos políticos, incluindo membros do Congresso e ex-funcionários dos governos Bush e Obama. A maioria contou a ele o que Robert Gates, ex-secretário de Defesa e chefe da CIA, havia feito: “Faça com que eles o demitam. Não se demita”.

“Minha impressão é que Mark teve uma avaliação bem precisa do homem muito rapidamente”, recordou Gates mais tarde. “Ele ia me contando aos poucos, bem antes de 1º de junho, algumas das ideias completamente insanas que circulavam no Salão Oval, ideias loucas do presidente sobre o uso ou não da força militar, a retirada imediata do Afeganistão, a saída da Coreia do Sul. Não acabava nunca”.

Milley não foi o único funcionário de alta patente a aconselhar-se com Gates. Vários membros da equipe de segurança nacional de Trump fizeram a peregrinação à sua casa no estado de Washington nos dois anos anteriores. Gates servia uma bebida para eles, grelhava um salmão e os ajudava a lidar com o último desafio de Trump. “O problema com a demissão é que você só pode disparar essa arma uma vez”, dizia. Todas as conversas eram variações do mesmo tema: “’Como faço para nos afastar do precipício?’ ‘Como faço para evitar que isso aconteça, porque seria terrível para o país’”?

Depois da Praça Lafayette, Gates disse a Milley e Esper que, devido ao comportamento cada vez mais errático e perigoso de Trump, eles precisavam permanecer no Pentágono o máximo que pudessem. “Se vocês renunciarem, é uma história de um dia”, argumentou Gates. “Se forem demitidos, ficará claro que estavam defendendo a coisa certa”. Gates lembrou a Milley que ele tinha outra importante carta na manga e incentivou-o a jogá-la: “Mantenha os Comandantes ao seu lado e deixe claro que, se você sair, todos saem, para que a Casa Branca saiba que não se trata apenas de demitir Mark Milley. Trata-se da demissão de todo o Estado-Maior Conjunto em retaliação”.

Publicamente, sua presença na Praça Lafayette foi um fiasco para Milley. Vários generais aposentados condenaram sua participação, apontando que o líder de um Exército racialmente diverso, com mais de duzentos mil soldados negros na ativa, não podia ser visto se opondo a um movimento por justiça racial. Até Mattis, que se absteve de criticar abertamente Trump, emitiu uma declaração sobre a “bizarra sessão de fotos”. O jornal Washington Post publicou que a fala de Mattis foi motivada pela sua revolta pela imagem de Milley desfilando pela praça usando a farda.

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Quaisquer que fossem suas diferenças pessoais, Mattis e Milley sabiam que havia uma inevitabilidade trágica. Ao longo de seu mandato, Trump procurou redefinir o papel dos militares na vida pública norte-americana. Em sua campanha de 2016, ele havia se manifestado em apoio ao uso da tortura e de outras práticas que os militares consideravam crimes de guerra. Pouco antes das eleições de meio de mandato de 2018, ele ordenou que milhares de soldados se dirigissem à fronteira sul para combater uma falsa “invasão” de uma caravana de migrantes. Em 2019, em uma ação que passou por cima da Justiça Militar e da cadeia de comando, concedeu clemência a um soldado da Marinha considerado culpado por posar para uma foto com o cadáver de um prisioneiro no Iraque.

Muitos consideraram a decisão de Trump em 2018 de usar as Forças Armadas em sua exibição pré-eleitoral na fronteira como “a base – ou o prenúncio – de 2020”, nas palavras de Peter Feaver, especialista em relações civis-militares da Universidade de Duke, na Carolina do Norte, que lecionou para generais na Escola de Comando. Quando Milley, que foi aluno de Feaver, aconselhou-se com o professor após o ocorrido na Praça Lafayette, ele concordou que Milley deveria se desculpar, mas o encorajou a não renunciar. “Teria sido um erro”, argumenta Feaver. “Não temos tradição de renúncia como protesto entre os militares”.

Milley decidiu se desculpar em um discurso de formatura na Universidade de Defesa Nacional que ele faria na semana seguinte. Feaver aconselhou-o a assumir o erro e a deixar claro que o equívoco fora dele e não de Trump. Afinal, presidentes “têm permissão para fazer acrobacias políticas”, disse Feaver. “Isso faz parte de ser presidente.”

O pedido de desculpas de Milley foi inequívoco. “Eu não deveria ter estado lá”, afirmou no discurso. Ele não mencionou Trump. “Minha presença naquele momento e naquele ambiente criou uma percepção de envolvimento dos militares na política interna”. E acrescentou: “foi um erro com o qual aprendi”.

Ao mesmo tempo, Milley finalmente chegou a uma decisão. Ele não pediria demissão. “Foda-se”, disse ele a sua equipe. “Eu vou lutar contra ele”. O desafio, a seu ver, era impedir Trump de causar maiores estragos, ao mesmo tempo em que seguia sua obrigação de cumprir as ordens do Comandante Supremo. No entanto, a Constituição não oferecia um guia prático para um general confrontado com um presidente sem princípios. Nunca antes, desde a criação do cargo, em 1949 – ou pelo menos desde os últimos dias da presidência de Richard Nixon, em 1974 – um Chefe do Estado-Maior Conjunto se deparara com tal situação. “Se eles quiserem me levar à corte marcial ou me colocar na prisão, que o façam”, declarou Milley à sua equipe. “Mas eu vou lutar a partir de dentro”.

O pedido de desculpas de Milley foi tanto privado quanto público. Com a próxima eleição alimentando o senso de urgência frenética de Trump, Milley procurou passar aos democratas a mensagem de que não concordaria com nenhuma outra ação do presidente para usar a máquina de guerra para fins políticos internos. Ele ligou para Pelosi e Schumer. “Depois do que houve na Praça Lafayette, Milley ficou extremamente arrependido e comunicou a várias pessoas que não tinha mais intenção de jogar o jogo de Trump”, disse Bob Bauer, ex-conselheiro da Casa Branca de Obama, que assessorou a campanha de Joe Biden e ficou sabendo dos telefonemas. “Ele ficou realmente marcado por essa experiência. Foi um choque. Ele desculpou-se, deixando bem claro que estava convicto de sua posição”.

No Capitólio, entretanto, alguns democratas, incluindo Pelosi, permaneceram céticos. Para eles, o ocorrido na Praça Lafayette provava que Milley sempre fora trumpista. “Houve um grande mal-entendido sobre Milley”, lembra Adam Smith, presidente do Comitê de Serviços Armados da Câmara. “Muitos dos meus colegas democratas, particularmente depois de 1º de junho, estavam preocupados com ele”. Smith tentou garantir a outros democratas que “não haveria um momento sequer em que Milley ajudaria Trump a fazer algo que não deveria ser feito”.

Pelosi e outros, porém, também desconfiavam de Milley devido a um incidente no início daquele ano em que Trump ordenou a morte do comandante iraniano Qassem Suleimani sem informar os líderes do Congresso com antecedência. Smith afirmou que Pelosi acreditava que o presidente fora “evasivo” e desrespeitoso com o Congresso. Milley, por sua vez, achou que não podia desconsiderar a insistência de Trump de que os legisladores não fossem notificados – uma violação que se deveu ao ressentimento do presidente sobre o processo de impeachment contra ele. “A navegação pelo mundo de Trump foi mais difícil para Milley do que Nancy imagina”, pondera Smith. Ele saiu em defesa do Chefe do Estado-Maior Conjunto, mas nunca conseguiu convencer Pelosi.

Quanto tempo podia durar esse impasse entre o Pentágono e o presidente? Nos meses seguintes, Milley acordou todas as manhãs sem saber se seria demitido até o fim do dia. Sua esposa lhe disse que ficou chocada por ele não ter sido mandado embora imediatamente depois das desculpas públicas.

Esper também estava de sobreaviso. Dois dias depois da Praça Lafayette, o secretário de Defesa foi à sala de imprensa do Pentágono e ofereceu seu próprio pedido de desculpas, revelando até mesmo sua oposição às exigências de Trump de invocar a Lei da Insurreição e usar as Forças Armadas da ativa. Tal passo, afirmou Esper, devia ser reservado apenas para “as situações mais urgentes e terríveis”. Mais tarde, Trump explodiu com Esper no Salão Oval sobre essas críticas, no que Milley lembraria como “a pior bronca” que ele já presenciara na vida.

No dia seguinte, o novo chefe de gabinete de Trump, Mark Meadows, ligou para o secretário de Defesa em sua casa – três vezes – para fazê-lo se retratar de sua oposição à invocação da Lei da Insurreição. Quando ele se recusou, Meadows adotou “a abordagem de Tony Soprano”, como Esper disse mais tarde, e passou a ameaçá-lo, antes de finalmente recuar. (Um porta-voz de Meadows contestou o relato de Esper.) Esper resolveu ficar no cargo o máximo que pudesse, “para suportar toda a merda e esgotar o tempo”, como afirmou. Ele se sentia pessoalmente responsável por se segurar no cargo. Por lei, a única pessoa autorizada a mobilizar tropas além do presidente é o secretário de Defesa. Esper estava determinado a não entregar esse poder a puxa-sacos como Robert O’Brien, que se tornou o quarto e último conselheiro de segurança nacional de Trump, ou Ric Grenell, um ex-relações públicas que atuava como diretor interino da Inteligência Nacional. 

Tanto Esper quanto Milley encontraram um novo propósito em não abandonarem o navio com o leme nas mãos de Trump. Eles resistiram durante todo o verão, enquanto o mandatário exigia repetidamente que as tropas da ativa reprimissem os protestos nas ruas, ameaçava invocar a Lei da Insurreição e tentava impedir os militares de renomear suas bases que tinham nomes dos generais confederados [criticados por serem defensores da escravidão]. “Ambos esperavam, literalmente, ser demitidos diariamente”, lembra Gates. Milley “me ligava e basicamente dizia: ‘Talvez eu não dure até amanhã à noite’. E ele se sentia confortável com isso. Sabia que estava apoiando a Constituição e não havia outra maneira de fazer isso”.

Milley guardou sua carta de demissão na gaveta e elaborou um plano, um guia de como enfrentar os meses seguintes. Estabeleceu quatro objetivos: primeiro, garantir que Trump não iniciasse uma guerra desnecessária no exterior. Segundo, certificar-se de que os militares não seriam usados nas ruas contra o povo americano com o objetivo de manter Trump no poder. Terceiro, manter a integridade dos militares. E, quarto, manter sua própria integridade. Nos meses seguintes, Milley voltaria ao plano mais vezes do que poderia imaginar.

♦♦♦

Já no mês de junho, entendeu que não era apenas uma questão de segurar Trump até o final da eleição presidencial, em 3 de novembro. Ele sabia que o dia da eleição poderia marcar apenas o começo, não o fim, dos desafios que Trump apresentaria. Os presságios eram preocupantes. Apenas uma semana antes da Praça Lafayette, Trump postou um tuíte que logo se tornaria um refrão. A corrida presidencial de 2020, afirmou ele pela primeira vez, seria “a eleição mais fraudulenta da história”.

Na noite de segunda-feira, 9 de novembro, os temores de Milley sobre um período pós-eleitoral instável, diferente de tudo que os Estados Unidos já haviam visto, pareciam estar se tornando realidade. Agências de notícias anunciaram a vitória de Biden, mas Trump se recusou a reconhecer que havia perdido por milhões de votos. A transição pacífica de poder — pedra angular da democracia liberal — estava sendo colocada em dúvida. Naquela noite, por volta das nove horas, Milley recebeu um telefonema urgente do secretário de Estado, Mike Pompeo. Com a possível exceção do vice-presidente Mike Pence, ninguém havia sido mais servilmente leal a Trump em público, ou mais obsequioso em particular, do que Pompeo. Mas nem ele aguentava mais.

“Precisamos conversar”, disse Pompeo a Milley, que estava em casa na chamada Quarters Six, a construção de tijolos vermelhos que tem sido a residência oficial dos Comandantes do Estado-Maior Conjunto desde o início dos anos sessenta. “Posso passar por aí?”

Milley aceitou a visita imediatamente.

“Os malucos assumiram o controle”, declarou Pompeo quando se sentaram à mesa da cozinha. Trump não apenas estava cercado de loucos, mas eles estavam se proliferando na Casa Branca e, a partir daquela tarde, no próprio Pentágono. Apenas algumas horas antes, no primeiro dia útil após a confirmação da vitória de Biden, Trump finalmente havia demitido Esper. Milley e Pompeo ficaram alarmados com o fato de o Secretário de Defesa estar sendo substituído por Christopher Miller, até então um obscuro oficial de contraterrorismo de nível médio no Conselho de Segurança Nacional que havia chegado ao Pentágono escoltado por uma equipe que parecia ser de assessores políticos de Trump.

Para Milley, este foi um acontecimento sinistro. Desde o início, ele tinha entendido que “se a ideia era tomar o poder”, como disse a seus assessores, “não havia como fazer isso sem os militares”. Milley havia estudado a história dos golpes. Eles invariavelmente requerem a tomada do que ele chama de “ministérios do poder” – os militares, a polícia nacional e as forças de segurança interna.

Assim que soube da demissão de Esper, Milley correu escada acima até o escritório do Secretário. “Isso é completamente ridículo”, disse a Esper. E afirmou que renunciaria em protesto. “Você não pode sair,” Esper insistiu. “Você é o único que sobrou”. Quando finalmente se acalmou, Milley concordou.

Nas semanas seguintes, Milley convocaria diversas vezes a equipe do Estado-Maior Conjunto, para reforçar sua determinação de resistir a quaisquer esquemas políticos perigosos vindos da Casa Branca, agora que Esper estava fora. Ele citou uma frase de Benjamin Franklin, um dos fundadores da república norte-americana, sobre as virtudes de se manterem unidos e não separados. E disse ainda que, se necessário, tanto ele quanto todos os Comandantes estavam preparados para “vestir suas fardas e atravessar o rio juntos”, ameaçando uma renúncia coletiva, de modo a evitar que Trump tentasse usar os militares para permanecer no poder ilegalmente.

Assim que Miller chegou ao Pentágono, Milley reuniu-se com ele. “Vamos às prioridades”, disse Milley ao novo Secretário de Defesa, que havia passado os meses anteriores dirigindo o Centro Nacional de Contraterrorismo. “Agora você é uma das únicas duas pessoas nos Estados Unidos que pode lançar armas nucleares”.

Um oficial do Pentágono que trabalhou com Miller ouviu um boato sobre ele estar sendo cotado para substituir Esper pouco mais de uma semana antes da eleição. “Meu primeiro instinto foi achar que essa era a coisa mais absurda que eu já tinha ouvido na vida”, lembrou o oficial. Mas então ele recordou como Miller havia se transformado desde que entrara na Casa Branca de Trump. “Ele tende a ser um pouco velejador e, conforme o vento sopra, ele se move na mesma direção”, afirmou. “Não é um ideólogo. É apenas um cara disposto a cumprir ordens”. Por coincidência, o oficial estava entrando no Pentágono no momento da chegada de Miller – um vídeo deste tropeçando nas escadas logo passou a circular. Miller estava acompanhado de três homens que teriam, pelo menos por algumas semanas, imensa influência sobre a força militar mais poderosa do mundo: Kash Patel, o novo chefe de gabinete de Miller; Ezra Cohen, que ascenderia a subsecretário interino de Defesa para Inteligência e Segurança; e Anthony Tata, um general aposentado e comentarista na Fox News, que se tornaria chefe interino de políticas do Pentágono.

Era um trio extraordinário. Em busca de seus quinze minutos de fama, Tata havia chamado Obama de “líder terrorista” – afirmação pela qual retratou-se mais tarde – e alegado que um ex-diretor da CIA ameaçara assassinar Trump. Patel, ex-assessor de Devin Nunes, o republicano mais importante no Comitê de Inteligência da Câmara, fora acusado de espalhar teorias da conspiração alegando que a Ucrânia, e não a Rússia, havia interferido nas eleições de 2016. Tanto o terceiro conselheiro de segurança nacional de Trump, John Bolton, quanto o vice de Bolton, Charles Kupperman, opuseram-se veementemente à presença de Patel na equipe do Conselho de Segurança Nacional, recuando apenas quando informados de que era uma ordem pessoal do presidente e sua contratração era “obrigatória”. 

Esquivando-se de seus opositores, Patel encontrou seu caminho para lidar diretamente com Trump, alimentando-o com informações sobre a Ucrânia que estavam fora de sua alçada, de acordo com depoimentos fornecidos durante o primeiro impeachment de Trump. (Em resposta a esta reportagem, Patel chamou as alegações de “invenção total”.) Mais tarde, Patel foi enviado para ajudar Ric Grenell a realizar um expurgo da comunidade de inteligência sob ordens da Casa Branca.

Cohen, que no início da carreira havia trabalhado na Agência de Inteligência de Defesa subordinado a Michael Flynn, foi inicialmente contratado para o Conselho de Segurança Nacional de Trump em 2017, sendo afastado após a rápida implosão de Flynn como o primeiro Conselheiro de Segurança Nacional. Quando houve uma tentativa de recontratar Cohen na Casa Branca, o vice de Bolton prometeu “colocar meu distintivo na mesa” e pedir demissão. “Não vou contratar alguém que será outro câncer na organização, e Ezra é um câncer”, disse Kupperman a Trump de maneira contundente. Na primavera de 2020, Cohen desembarcou no Pentágono e, após o abalo pós-eleitoral de Trump, assumiu o principal posto de inteligência no Pentágono.

Milley tinha informações de primeira mão que o levavam a desconfiar dos novos conselheiros do Pentágono. Pouco antes da eleição, ele e Pompeo ficaram furiosos quando uma missão ultrassecreta de resgate da força de elite da Marinha, Seal Team 6, para libertar um refém norte-americano mantido na Nigéria quase precisou ser cancelada no último minuto. Os nigerianos não haviam aprovado formalmente a missão com antecedência, conforme exigido, apesar das garantias dadas por Patel. “Os aviões já estavam no ar e não tínhamos as aprovações”, lembrou um funcionário de alta patente do Departamento de Estado. A equipe de resgate foi mantida circulando no ar enquanto diplomatas tentavam rastrear seus colegas nigerianos. Conseguiram encontrá-los apenas alguns minutos antes que as aeronaves tivessem que retornar. Como resultado, afirmou o funcionário, tanto Pompeo quanto Milley, que acreditava terem mentido para ele, “atribuíram má vontade a essa trama toda”. A CIA recusava-se a trabalhar próxima a Patel, Pompeo lembrou à sua equipe do Departamento de Estado, e eles também precisavam ser cautelosos. “O secretário achava-os desequilibrados, malucos e perigosos”, afirmou outro oficial do Departamento de Estado. (Patel negou sua participação no caso, declarando: “Não causei nenhum atraso [na missão]”.)

♦♦♦

Após a demissão de Esper, Milley convocou Patel e Cohen separadamente ao seu escritório para uma conversa séria. Seja lá o que estiver tramando, alertou-os, “a vida realmente parece uma merda atrás das grades. E, quer tenha percebido ou não, haverá um novo presidente exatamente às 12h do dia 20 e seu nome é Joe Biden. Se fizer algo ilegal, não me importo de colocá-lo na prisão”. Cohen negou que Milley tenha lhe dito isso, insistindo que tiveram uma “conversa muito amigável e positiva”. Patel também negou, afirmando: “Ele trabalhava para mim, não o contrário.” Mas Milley contou à sua equipe que advertira Cohen e Patel de que estavam sendo observados: “Não faça isso, nem tente fazer isso. Eu estou de olho em você e consigo farejá-lo de longe. E muitas outras pessoas também conseguem. A propósito, os militares não farão parte dessa merda”.

Parte da agenda da nova equipe ficou clara rapidamente: garantir que Trump cumprisse sua promessa de campanha de 2016 de retirar as tropas americanas das “guerras sem fim” no exterior. Dois dias após a demissão de Esper, Patel colocou uma folha de papel sobre a mesa de Milley durante uma reunião com ele e Miller. Era uma ordem, com a assinatura de Trump em caneta preta, decretando que os quatro mil e quinhentos soldados restantes no Afeganistão fossem retirados até 15 de janeiro de 2021 e que um contingente de menos de mil soldados em uma missão de contraterrorismo na Somália fosse retirado até 31 de dezembro.

Milley ficou atordoado. “De onde saiu isso?”, indagou.

Patel disse que acabara de chegar da Casa Branca.

“Você aconselhou o presidente a tomar essa decisão?” ele perguntou a Patel, que negou.

“Você aconselhou o presidente a tomar essa decisão?” ele perguntou a Miller, que negou.

“Então, quem aconselhou o presidente a tomar essa decisão?”, questionou Milley. “Por lei, eu sou o conselheiro do presidente em ações militares. Como isso pôde acontecer sem que eu tenha dado minha opinião e conselho militar?”

Com isso, ele anunciou que iria pôr seu traje militar e dirigiu-se à Casa Branca, onde faria uma reunião no escritório do conselheiro de Segurança Nacional, Robert O’Brien.

“De onde veio isso?”, indagou Milley, colocando a ordem de retirada sobre a mesa de O’Brien.

“Não sei. Nunca vi isso antes”, afirmou O’Brien. “Não parece um memorando da Casa Branca”.

Keith Kellogg, um general aposentado que atuava como conselheiro de segurança nacional do vice-presidente Mike Pence, pediu para ver o documento. “Isso não é do presidente”, disse ele. “O formato não está correto”.

“Keith, você deve estar de brincadeira”, disse Milley. “Você está me dizendo que alguém está falsificando a assinatura do presidente dos Estados Unidos?”

A ordem, porém, não era falsa. Era o resultado de uma operação desonesta dentro da Casa Branca supervisionada por Johnny McEntee, o assistente pessoal de Trump de trinta anos de idade, e apoiada pelo próprio presidente. A ordem foi redigida por Douglas Macgregor, um coronel aposentado e um dos favoritos de Trump por suas aparições na televisão, trabalhando com um assessor júnior de McEntee. O documento foi levado diretamente ao presidente, passando por cima do aparato de segurança nacional e dos oficiais sêniores de Trump, para que ele o assinasse.

Macgregor aparecia com frequência na rede de televisão Fox News exigindo uma saída do Afeganistão e acusava os conselheiros de Trump de impedir o presidente de fazer o que queria. “Ele precisa mandar para fora do Salão Oval todos que vivem lhe dizendo: ‘Se você fizer isso e algo ruim acontecer, a culpa será sua, senhor Presidente’”, disse Macgregor ao apresentador da Fox Tucker Carlson em janeiro. “Ele precisa dizer: ‘Eu estou me lixando’”.

No dia em que Esper foi demitido, McEntee chamou Macgregor ao seu escritório, ofereceu-lhe um emprego como conselheiro sênior do novo secretário de Defesa interino e entregou-lhe uma lista manuscrita de quatro prioridades que, segundo relato de Axios, alegou terem vindo diretamente de Trump:

1. Tire-nos do Afeganistão.

2. Tire-nos do Iraque e da Síria.

3. Conclua a retirada da Alemanha.

4. Tire-nos da África.

Assim que a ordem do Afeganistão foi descoberta, os assessores de Trump persuadiram-no a recuar, lembrando-o de que ele já havia aprovado um plano de saída nos próximos meses. “Por que precisamos de um novo plano?” questionou Pompeo. Trump cedeu e O’Brien informou ao restante da abalada liderança da segurança nacional que a ordem era “nula e sem efeito”.

O acordo, porém, era uma nova ordem que requeria a redução para 2.500 soldados no Afeganistão em meados de janeiro, à qual Milley e Esper vinham resistindo, e também uma redução no contingente de três mil soldados restantes no Iraque. O Departamento de Estado teve uma hora para notificar os líderes desses países antes que o documento fosse divulgado.

Dois cenários de pesadelo se revezavam na cabeça de Milley. Um deles era que Trump poderia desencadear uma crise externa, como uma guerra contra o Irã, a fim de desviar a atenção ou criar um pretexto para uma tomada de poder. O outro era que Trump fabricaria uma crise doméstica para justificar o emprego de militares nas ruas, impedindo a transferência de poder. Milley temia que a aceitação “à la Hitler” de Trump de suas próprias mentiras sobre a eleição o levasse a buscar um “momento Reichstag”. Em 1933, Hitler aproveitou-se de um incêndio no parlamento alemão para assumir o controle do país. Milley temia uma declaração de lei marcial ou uma invocação presidencial da Lei da Insurreição, com milícias trumpistas fomentando a violência.

♦♦♦

No final de novembro, em meio aos crescentes ataques de Trump ao resultado da eleição, a cooperação entre Milley e Pompeo aprofundou-se – um fato que o secretário de Estado revelou ao procurador-geral Bill Barr durante um jantar na noite de 1º de dezembro. Barr acabara de romper publicamente com Trump, dizendo em entrevista à agência de notícias Associated Press que não havia evidências suficientes de fraude eleitoral para anular os resultados. Enquanto comiam em um restaurante italiano em um shopping da Virgínia, Barr relatou a Pompeo o que chamou de “um dia agitado”. E Pompeo contou a Barr sobre o arranjo excepcional que havia proposto a Milley para garantir que a estabilidade fosse assegurada no país até a posse: eles fariam ligações diárias pela manhã para Mark Meadows. Pompeo e Milley logo passariam a chamar essas ligações de “telefonemas de aterrissagem”.

“Nosso trabalho é pousar este avião com segurança e fazer uma transferência pacífica de poder no dia 20 de janeiro”, disse Milley a sua equipe. “Esta é a nossa obrigação perante esta nação.” Havia um problema, porém. “Ambos os motores estão quebrados, o trem de pouso está travado. Estamos em situação de emergência”.

Em público, Pompeo permaneceu fielmente pró-Trump. No dia seguinte à sua visita secreta à casa de Milley para lamentar que “os malucos” tinham assumido o controle, ele se recusou a reconhecer a derrota do republicano, dizendo ardilosamente aos repórteres: “Haverá uma transição suave – para um segundo governo Trump”. Nos bastidores, porém, Pompeo aceitou que a eleição havia acabado e deixou claro que não ajudaria a reverter o resultado. “Ele era totalmente contra”, lembrou um alto funcionário do Departamento de Estado. Pompeo justificou com cinismo o contraste chocante entre suas falas em público e em particular. “Era importante para ele não ser demitido no final e permanecer até o amargo fim”, disse o oficial.

Tanto Milley quanto Pompeo estavam agastados com a desajeitada equipe de ideólogos que Trump colocou no Pentágono após a demissão de Esper, colega de classe de Pompeo na academia militar de West Point. Os dois, que “já estavam unidos como companheiros de viagem”, nas palavras de um funcionário do departamento de Estado, trabalharam ainda mais próximos à medida que crescia a apreensão sobre a conduta pós-eleitoral de Trump, embora Milley não tivesse ilusões sobre o secretário de Estado. Ele acreditava que Pompeo, um apoiador de longa data de Trump que aspirava a concorrer à presidência, queria “uma segunda vida política”, mas que a descida final de Trump ao negacionismo era a linha que ele não cruzaria. “No final, ele não faria parte dessa loucura”, disse Milley a sua equipe. No início de dezembro, enquanto faziam seus “telefonemas de aterrissagem” às 8 da manhã, Milley estava confiante de que Pompeo estava genuinamente tentando conseguir uma transferência pacífica de poder para Joe Biden. Mas ele nunca teve a mesma certeza a respeito de Meadows. O chefe de gabinete estaria tentando pousar o avião ou sequestrá-lo?

Milley também ligava praticamente todos os dias para o conselheiro da Casa Branca Pat Cipollone, que não era um interlocutor usual para um chefe do Estado-Maior Conjunto. Nas derradeiras semanas do governo, Cipollone, um verdadeiro adepto da agenda conservadora trumpista, foi um dos atores principais do drama quase diário que se desenrolava, envolvendo os vários esquemas de Trump na tentativa de reverter sua derrota eleitoral. Depois de fazer uma ligação a Cipollone, Milley disse a um visitante que o advogado da Casa Branca era “construtivo”, “não louco” e uma força para “tentar manter barreiras em torno do presidente”.

Milley continuou a procurar democratas próximos a Biden a fim de assegurar-lhes que não permitiria que os militares fossem utilizados para manter Trump no poder. Um de seus contatos regulares era Susan Rice, a ex-assessora de segurança nacional de Obama, apelidada pelos democratas de Rice Channel (“Canal de Arroz”, em referência ao seu sobrenome, que quer dizer arroz). Ele também falou várias vezes com o senador independente do estado do Maine, Angus King. “Nossas conversas foram sobre o perigo de alguma tentativa de uso dos militares para declarar lei marcial”, afirmou King, que assumiu a responsabilidade de tranquilizar os colegas senadores. “Não posso dizer por que sei disso”, mas os militares certamente farão a coisa certa, King lhes garantia, citando o “caráter e a honestidade” de Milley.

Milley tinha cada vez mais motivos para temer que essa decisão pudesse realmente ser imposta a ele. No final de novembro, Trump concedeu indulto a Michael Flynn, que se declarou culpado das acusações de mentir para o FBI sobre seus contatos com a Rússia. Logo depois, Flynn sugeriu publicamente a Trump diversas opções extremas: ele poderia invocar a lei marcial, nomear um conselheiro especial e autorizar os militares a “refazerem” a eleição nos estados nem marcadamente democratas nem republicanos. Em 18 de dezembro, Trump recebeu Flynn e um grupo de negacionistas da eleição no Salão Oval, onde, pela primeira vez na História norte-americana, um presidente consideraria seriamente usar os militares para melar uma eleição. 

Eles trouxeram consigo o rascunho de uma proposta de ordem presidencial exigindo que o secretário de Defesa em exercício, Christopher Miller, “apreendesse, coletasse, retivesse e analisasse” as urnas e fornecesse uma avaliação final em sessenta dias, bem depois da posse de Biden. Mais tarde naquela noite, Trump publicou um tuíte encorajando seus seguidores a se dirigirem à capital para ajudá-lo a se manter no cargo. “Grande protesto em Washington no dia 6 de janeiro”, escreveu ele à 1h42. “Esteja lá, vai ser selvagem!”

Os temores de Milley sobre um golpe de Estado não tinham mais nada de infundados.

Enquanto Trump estava sendo pressionado pelos “malucos” a ordenar uma intervenção militar interna, Milley e seus colegas generais estavam preocupados com a possibilidade dele autorizar um ataque contra o Irã. Durante grande parte de seu mandato, os falcões da política externa de Trump incitaram um confronto com o Irã; quando perceberam que o republicano poderia perder a eleição, aceleraram seus esforços. No início de 2020, quando Mike Pence defendeu a adoção de medidas duras, Milley perguntou por quê. “Porque eles são maus”, respondeu Pence. Milley se lembra de ter respondido: “Sr. Vice-presidente, há muito mal no mundo, mas não declaramos guerra contra todos os males”. Milley ficou ainda mais preocupado do que antes da eleição, quando ouviu um alto funcionário dizer a Trump que, caso perdesse, deveria atacar o programa nuclear do Irã. Na época, Milley disse a sua equipe que aquele era um momento do tipo “Que porra esses caras estão falando?”. Agora parecia assustadoramente possível.

Robert O’Brien, o conselheiro de segurança nacional, era outro líder de torcida para medidas duras: “Sr. Presidente, devemos atingi-los com força, com tudo o que temos.” Esper, em suas memórias, chamou a expressão “atingi-los com força” de o “bordão entendiante” de O’Brien. (O’Brien contestou Esper, afirmando que “a citação atribuída a mim não é precisa”.)

Na semana da demissão de Esper, Milley foi chamado à Casa Branca para apresentar opções militares para atacar o Irã e se deparou com uma atuação perturbadora de Miller, o novo secretário de Defesa interino. Mais tarde, Miller disse a Jonathan Karl, da rede de televisão ABC, que havia agido intencionalmente como um “puta louco” na reunião, apenas três dias após assumir o cargo, instigando vários cenários de escalada bélica para responder às capacidades nucleares iranianas.

O comportamento de Miller pareceu a Milley menos intencional do que inútil, já que Trump continuou pedindo alternativas, incluindo um ataque no interior do Irã em locais de armamento balístico. Milley explicou que isso seria um ato preventivo ilegal: “Se atacar o continente do Irã, estará iniciando uma guerra”. Durante outro confronto com os conselheiros mais radicais de Trump, quando este não estava presente, Milley foi ainda mais explícito. “Se fizermos o que vocês estão propondo”, advertiu, “seremos todos julgados como criminosos de guerra [no Tribunal de] Haia”.

Trump frequentemente ladrava, mas não mordia, e o alto escalão do Pentágono ainda acreditava que ele não queria uma guerra total, embora seguisse pressionando por um ataque com mísseis ao Irã mesmo depois da reunião de novembro. “O que mais o preocupava era o Irã”, lembrou um conselheiro sênior de Biden que conversou com Milley. “Mais de uma vez, Milley teve a experiência de ter que afastar o presidente da beira do precipício quando se tratava de retaliação [militar]”.

O medo maior era que o Irã provocasse Trump e, usando uma série de canais diplomáticos e militares, autoridades norte-americanas advertiram os iranianos a não explorar a instável situação doméstica dos EUA. “Havia uma clara preocupação de que o Irã aproveitaria a situação para nos atacar de alguma forma”, reiterou Adam Smith, presidente do Comitê de Serviços Armados da Câmara de Deputados dos Estados Unidos.

Entre os que pressionavam o presidente a atacar o Irã antes da posse de Biden, Milley acreditava, estava o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu. Em 18 de dezembro, mesmo dia do encontro entre Trump e Flynn para discutir a instituição da lei marcial, Milley se reuniu com Netanyahu em sua casa, em Jerusalém, para convencê-lo pessoalmente a recuar perante Trump. “Se fizer isso, vai iniciar uma maldita guerra”, alertou-o Milley.

Dois dias depois, em 20 de dezembro, milícias apoiadas pelo Irã no Iraque dispararam quase duas dúzias de mísseis contra a embaixada norte-americana em Bagdá. Trump respondeu culpando publicamente o Irã e ameaçando uma grande retaliação se um único cidadão americano fosse morto. Foi o maior ataque à Zona Verde em mais de uma década – exatamente o tipo de provocação que Milley temia.

No final do ano, as tensões com o Irã aumentavam ainda mais à medida que o primeiro aniversário do assassinato do general Suleimani pelos norte-americanos se aproximava. O aiatolá Ali Khamenei alertou que “aqueles que ordenaram o assassinato do general Soleimani” seriam “punidos”. No final da tarde de 3 de janeiro, um domingo, Trump se reuniu com Milley, Miller e seus outros conselheiros de segurança nacional para o Irã. Pompeo e Milley discutiram um novo preocupante relatório da Agência Internacional de Energia Atômica. Mas, no final, até mesmo Pompeo e O’Brien, os grandes falcões inimigos do Irã, opuseram-se a um ataque militar no final do mandato de Trump. “Ele entendeu que o tempo acabara”, disse Milley à sua equipe. Trump, consumido por seu combate eleitoral, recuou.

No final da reunião com seus chefes de segurança, o presidente chamou Miller de lado e perguntou se ele estava pronto para o pŕoximo protesto, em 6 de janeiro. “Vai ter grandes proporções”, Milley ouviu Trump dizer a Miller. “Você tem gente suficiente para garantir que seja seguro para o meu pessoal, certo?” Miller garantiu que sim. Esta foi a última vez que Milley encontrou Trump.

No dia 6 de janeiro, Milley estava em seu escritório na reunião do Pentágono com Christine Wormuth, o principal nome da equipe de transição de Biden para o Departamento de Defesa. Desde a eleição, Milley passara a assistir quatro canais de TV ao mesmo tempo em um grande monitor em frente à mesa redonda onde ele e Wormuth estavam sentados: CNN, Fox News e os pequenos veículos pró-Trump Newsmax e One America News Network., que vinham transmitindo desinformação eleitoral do tipo que nem mesmo a Fox divulgaria. “Você precisa saber o que o inimigo está fazendo”, brincou Milley quando Wormuth notou seu novo hábito em uma reunião.

Na agenda de Milley e Wormuth daquele dia estava a discussão dos planos do Pentágono para a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão, bem como as esperanças da equipe de Biden de estabelecer locais de vacinação contra a Covid em grande escala em todo o país. Mas, ao descobrir horrorizado o que estava acontecendo na tela à sua frente, Milley foi convocado para uma reunião urgente com Miller e Ryan McCarthy, o secretário do Exército. No fim das contas, eles não haviam aterrissado o avião. A aeronave estava caindo.

Milley entrou no escritório do secretário de Defesa às 14h30 e eles discutiram o envio da Guarda Nacional de Washington e a mobilização de unidades da Guarda Nacional de estados próximos e de agentes federais sob ordens do Departamento de Justiça. Às 15h04 Miller emitiu uma ordem para o envio da Guarda de Washington.

Mas era tarde demais para evitar a humilhação: o Congresso havia sido dominado por uma multidão de negacionistas das eleições, membros da milícia supremacista branca, teóricos da conspiração e partidários de Trump. Milley temia que este fosse realmente o “momento Reichstag” de Trump, a crise que permitiria ao presidente invocar a lei marcial e se manter no poder.

Da instalação segura na base de Fort McNair, para onde foram levados por seus destacamentos de proteção, os líderes do Congresso pediram ao Pentágono que enviasse tropas ao Capitólio imediatamente. Nancy Pelosi e Chuck Schumer suspeitavam de Miller: de que lado estaria esse desconhecido indicado por Trump? Milley tentou tranquilizar a liderança democrata de que os militares uniformizados estavam cuidando do caso, e não para cumprir as ordens de Trump. A Guarda, ele asseverou, estava chegando.

Já passava das três e meia, porém, e os líderes do Congresso estavam furiosos com a demora. Eles falaram com Mike Pence, que também se ofereceu para ligar para o Pentágono. Ele alcançou Miller por volta das 16h, com Milley ainda em seu escritório ouvindo. “Evacue o Capitólio”, ordenou Pence.

Embora quem estivesse defendendo o Capitólio fosse o vice-presidente, Meadows queria fingir que as ordens eram de Trump. Ele ligou para Milley, orientando-o: “Temos que sufocar a narrativa de que o vice-presidente está tomando todas as decisões. Precisamos estabelecer a narrativa de que o presidente ainda está no comando”. Milley mais tarde rejeitou Meadows, cujo porta-voz negou o relato de Milley, acusando-o de estar apenas fazendo “política, política, política”.

A Guarda finalmente chegou ao Capitólio por volta das 17h40, “velocidade de corrida” para os militares, nas palavras de Milley, mas não rápido o suficiente para alguns membros do Congresso, que passariam meses investigando as causas do retardamento. Por volta das 19h, um perímetro foi estabelecido em volta do Capitólio e agentes do FBI e da ATF (Agência de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos), vasculharam os muitos esconderijos e corredores estreitos do edifício, em busca de quaisquer agitadores remanescentes.

Naquela noite, esperando que o Congresso retornasse e ratificasse formalmente a derrota eleitoral de Trump, Milley ligou para um de seus contatos na equipe de Biden. Ele explicou que havia conversado com Meadows e Pat Cipollone na Casa Branca e que também estivera ao telefone com Pence e com os líderes do Congresso. Mas Milley não ouviu nem uma palavra do Comandante Supremo no dia em que o Capitólio foi invadido por uma força hostil pela primeira vez desde a Guerra da Independência de 1812. Trump, afirmou ele, era “vergonhoso” e “cúmplice”.

Posteriormente, Milley pensaria com frequência naquele dia terrível. “Foi por um fio”, diria, com sua bagagem de estudante de História, invocando a famosa frase do duque de Wellington após a estreita vitória contra Napoleão em Waterloo. Trump e seus homens falharam na execução da conspiração, falharam em parte por não entender que Milley e os outros nunca tinham sido generais de Trump e nunca seriam. Mas seu ataque à eleição expôs um sistema com fraquezas gritantes. “Eles abalaram a própria República até o âmago”, refletiria Milley. “Você imagina o que um grupo de pessoas muito mais competentes poderia ter feito?” 

Tradução de Luana Villac.

Shealah Craighead/Official White House Photo

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